‘Pensei que entraria na cadeia como advogado, não como preso’

Kauan Oliveira Santos, 20, conta que retomou a faculdade de Direito após ficar 11 dias preso com base em reconhecimento irregular e por estar em uma área comercial próxima de um carro roubado na Grande SP; um ano após acusação, jovem espera ser absolvido

Kauan Oliveira Santos mora na Vila Sacadura Cabral, na periferia de Santo André, e foi acusado de roubo quando estava em bairro comercial com amigos, em janeiro de 2020 | Foto: Jeniffer Mendonça/Ponte Jornalismo

Por ver o namorado de uma prima vestir terno, o estudante Kauan Oliveira Santos, 20, passou a ter interesse pela advocacia. “Eu sempre o via muito elegante, então quis ser advogado”, conta. Depois, passou a trabalhar como jovem aprendiz no Fórum de São Bernardo (Grande SP) e como assistente em um escritório de advocacia onde a tia trabalha como secretária ao ingressar em uma faculdade particular quando fez 18 anos. Chegou a marcar no corpo uma balança da justiça quando começou os estudos, que tiveram de ser interrompidos no segundo semestre de curso por causa do valor da mensalidade. “Eu sempre gostei de ajudar as pessoas daqui da minha comunidade, então o Direito se encaixa nisso”, explica.

O que não se encaixava era como seria visto depois quando foi detido em janeiro de 2020, com um outro rapaz que afirma não conhecer, por causa de um reconhecimento irregular. “Eu pensei que eu entraria na cadeia como advogado, não como preso”, lamenta. Kauan e Lucas Andrei Nascimento Dias, 22, ficaram presos por 11 dias ao serem acusados de cometerem dois roubos em São Bernardo e em Santo André, na Grande São Paulo. A Ponte contou a história dos rapazes que, agora, aguardam uma audiência agendada para 10 de agosto. “Tenho fé que eu vou ser absolvido”, torce Kauan.

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A versão da polícia coloca Kauan junto de um veículo Chevrolet Spin, de cor preta, que acabara de ser roubado e usado em outro crime, no dia 2 de janeiro de 2020. Dois suspeitos, um deles armado, abordaram uma família e levaram o carro para a rua Rio Feio, em São Bernardo do Campo. Menos de dois quilômetros depois, usaram o carro para roubar um homem na rua Las Palmas, já em Santo André, município vizinho. Levaram sua aliança, chave da casa e o celular.

Segundo os PMs Wellinson Luciano Viola e Claudinei Pereira, eles receberam pelo rádio a informação dos roubos e buscavam o veículo citado. Por volta de 21h, encontraram o carro na rua Cambuci, na Vila Sobral, cerca de 1 quilômetro de onde o segundo crime ocorreu. Segundo eles, Kauan dava indícios de que tinha acabado de se desvencilhar do carro e caminhava perto de Lucas.

Os policiais descreveram que Kauan e Lucas estavam juntos, andando lado a lado a 10 metros do veículo, que ainda estava com luz interna acesa. Consideraram a atitude suspeita e decidiram abordá-los. Os jovens teriam dito que eram amigos de trabalho. Ao revistarem o carro, os PMs recuperaram a chave da casa do homem, optando por levar a dupla para o 1º DP de Santo André.

Na delegacia, três vítimas reconheceram Kauan como um dos criminosos “sem qualquer dúvida”, enquanto uma não soube precisar sobre Lucas, mas confirmou ter suspeita dele, mesmo que nenhum item roubado e nenhuma prova os ligasse ao crime. O reconhecimento foi “informal”, como diz o registro, porque não foram colocadas outras pessoas de aparência semelhante para as vítimas reconhecerem. Kauan foi apontado com base em uma blusa cuja cor não é descrita e o “bigode ralo”. De Lucas, não há informação sobre descrição.

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O reconhecimento feito na delegacia, comandado pelo delegado Dimitrius Moraes Costa, não seguiu o padrão do artigo 266 do Código de Processo Penal (CPP), como consta no termo de declaração, pois não colocou pessoas de características físicas próximas para a vítima apontar quem seria o suspeito. Ainda assim o Ministério Público acusou os dois por roubo.

O estudante conta que não conhecia Lucas e que no local em que estavam, onde há um bar, um mercado e uma tabacaria, serve de ponto de encontro para quem mora na região confraternizar. Ele havia combinado com um amigo de passar em uma churrascaria às 20h, conforme mensagens trocadas no WhatsApp. “A viatura passou e abordou, se não me engano, cinco ou sete rapazes, entre eu e o Lucas”, lembra. “Ninguém me agrediu, mas achei estranho quando disseram que iam levar a gente para averiguação”.

Picanha de Ouro é o nome da churrascaria que Kauan afirma que iria com o amigo em São Bernardo do Campo, próximo ao bairro onde moram em Santo André, durante troca de mensagens. | Fotos: Reprodução.

De acordo com ele, os policiais tiraram fotos de todos e ficaram apenas com os dois. Na época que a Ponte denunciou o caso, um amigo de Lucas, Mateus Araujo, então com 18 anos, que também foi abordado, confirmou que não conheciam Kauan e que também foram abordados de forma aleatória. Mateus também disse que ficou com Lucas o dia todo e que não participaram do crime.

“Até hoje eu não uso mais bigode fino, deixei a barba crescer por trauma”, diz Kauan. “É muito absurdo porque aqui na comunidade todo mundo tem um corte de cabelo parecido, usa bigode fino”, lamenta o estudante.

Ele ainda aponta que, na delegacia, “fizeram eu e o Lucas trocar de blusa na hora que cada pessoa reconhecia”. Ele usava uma blusa cinza e Lucas, uma preta. “Isso é completamente ilegal”, critica. “Eu não estava com advogado presente na hora e tive que assinar os papéis sem querer, mesmo eu dizendo que não fui eu que fiz aquilo”.

Kauan mostra a tatuagem da balança da justiça que fez quando entrou na faculdade de Direito, em 2019 | Foto: Jeniffer Mendonça/Ponte Jornalismo

No CDP (Centro de Detenção Provisória) de Santo André, Kauan afirma que passou seus piores dias. “Eu fiquei sem comer uma semana, só com água, tanto que nas fotos de quando eu saí, eu estava bem magro”, lembra. “Eu vi gente que precisava de atendimento médico e não tinha lá o mínimo, e conversei com pessoas que também estavam presas por aquilo que não fizeram. Foi muito difícil porque mostra que a prisão não melhora ninguém e por isso eu penso em atuar com direitos humanos”.

O estudante também disponibilizou o celular para perícia para comprovar que não estava no local do crime. Em agosto do ano passado, a Polícia Científica fez laudos tanto das trocas de mensagens quanto da geocalização pelo Google Maps. Sobre as trocas de mensagens, não fez ressalvas, mas sobre a localização, a perita informou que apenas a análise pela linha telefônica poderia esclarecer com precisão a localização porque o Google Maps poderia ser editado.

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Kauan, que trabalha como jovem aprendiz num hospital, conta que não perdeu o emprego, mas se sentiu julgado. “Aqui na minha comunidade o pessoal me conhece, tanto que fizeram protesto na época, mas em outros espaços as pessoas não dizem nada, só olham, e com o olhar você entende que passam a duvidar de você quando é preso”.

O rapaz conta que conseguiu retomar a faculdade logo após ter sido solto, no ano passado, e conseguiu um desconto para cursar o quatro semestre. “Eu fui acusado porque vim da periferia, fui colocado como bandido e feriram a minha dignidade porque eu percebi, na própria pele, que quem é pobre não tem a voz ouvida e a gente tem que correr atrás para fazer a diferença”, critica Kauan. “Tem muita gente na periferia que só com uma oportunidade poderia ir longe, com estudo, e não tem, por isso não posso parar, quero ser um grande advogado para ajudar as pessoas daqui”.

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