Periferia segue sangrando: acolhimento e elo de confiança entre mulheres na zona sul de SP

    Com a provocação ‘Onde eu me sinto presente?’, quinto ano do Periferia Segue Sangrando reúne mulheres periféricas para partilhar as experiências de vida e do território no Bloco do Beco, no Jardim Ibirapuera, zona sul de SP

    Todas sangramos: na caminhada de ser mulher e no processo de lutar contra o machismo que ataca nossas existências | Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte Jornalismo

    A garoa fina no céu do Jardim Ibirapuera, na zona sul de São Paulo, deixa o domingo cinza e com certo ar de tristeza. Mas dentro da casa localizada na rua Bento Barroso Pereira tem cores, sorriso, abraço e um convidativo cheiro de café. Há cinco anos, Periferia Segue Sangrando reúne mulheres em um encontro baseado em afeto, construção de confiança, rede de apoio e identificação.

    Cheguei num misto de timidez com a sensação de que aquele não é meu território: estou a 20 quilômetros da minha casa. “Oi, sou a Maria, vim participar do evento”. Portas, braços e coração abertos por mulheres que, até a tarde deste domingo (2/6), nunca havia visto na vida.

    Ver a beleza, se fazer bonita a nosso modo: autoestima | Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte Jornalismo

    A mesa posta tem bolo, pão, manteiga, biscoitos. “Esse pão é de beterraba. Experimenta, tá uma delícia”, me diz uma sorridente mulher que eu acabara de conhecer. Débora Silva, fundadora das Mães de Maio e quem me convidou para estar lá, me dá também as boas-vindas e me conta da atividade que aconteceu pouco antes da minha chegada.

    “Foi lindo, forte. É o processo de cura pelo movimento o que elas fizeram [Mulheres de Pedra, coletivo do RJ que veio participar do evento]”, conta, reforçando o desejo de fazer atividades desse tipo com mais frequência junto a outras mães que perderam filhos vítimas de violência do Estado. “As mães estão morrendo, estão caindo doente”.

    Débora Silva leva a bandeira das Mães de Maio para evento Periferia Segue Sangrando | Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte Jornalismo

    A atividade da tarde do domingo, a partir da metodologia do círculo de paz, é justamente essa: a criação de um local seguro, confortável e acolhedor para que mulheres se conheçam e se reconheçam nas alegrias, dores, frustrações, medos, esperanças e sonhos.

    Se pudesse definir uma palavra o que vivi é partilha. Um farto e delicioso almoço feito por muitas mãos foi servido, onde também é um momento para estabelecer vínculos.

    O útero que nos une | Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte Jornalismo

    Em seguida, faixas começam a ser dispostas nas paredes da sala onde ocorrerá a vivência. Dois desenhos de útero me chamam atenção. “Agradecida as minhas irmãs por me ensinarem a lutar” é uma frase escrita em espanhol em um desses grandes murais de pano. Irmandade.

    Aqueles rostos e corpos, incluindo o meu, trazem tantas e distintas histórias de vida, mas há um elemento de convergência: o útero. Eu sangro, tu sangras, nós sangramos. A pulsão das nossas existências como mulher. O quanto o machismo e o patriarcado nos atravessa e nos marca no nosso caminhar.

    Eu sou o que eu desejo e faço dos meus desejos morada | Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte Jornalismo

    Sorrio e sinto que aquele pode ser também o meu lugar.

    As facilitadoras do encontro pedem que tranquilamente a gente ocupe o espaço formando um círculo. No centro, a frase: “Onde habita a sua presença?”. Folhagens, uma boneca de pano, um vaso revestido de chita, Mamãe Oxum e um espelho. Dois livros. Um cesto com mais folhas, algumas de feijão.

    “O que a gente fala aqui é sigiloso”, diz uma das manas que vai conduzir a atividade. Essa é uma das premissas para a criação de um lugar seguro e acolhedor, onde o julgamento fica do lado de fora e o exercício de escuta é a base de tudo. Somos convidadas a lembrar da infância, da menina que existe dentro da gente. Sinto alegria e depois uma vontade imensa de chorar. Acho que a palavra certa é transbordar. Fico pensando quando foi que me tornei tão rígida comigo mesmo e deixei de lado o ato de brincar na vida e com a vida?

    Palavras são ditas em voz alta sobre essas memórias e escritas nas folhas, que são colocadas dentro de um pequeno recipiente, uma espécie de cabaça: aquela é a chamada peça de fala. Quem estiver com ela nas mãos fala e todas as outras escutam.

    As memórias da infância nas folhas de feijão | Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte Jornalismo

    “Sou o intervalo entre o meu desejo e aquilo que os desejos dos outros fizeram de mim”, declama Álvaro de Campos lindamente uma das guerreiras da roda. As palavras me atravessam, sinto um arrepio e depois a sensação é de conforto porque aquela mulher que eu nunca vi na vida sabe exatamente como me sinto.

    Pego a peça de fala nas mãos. Respiro. Gratidão, inconformismo e escolha são as minhas presenças. E um certo incômodo por ter passado tanto tempo a sombra daquilo que queriam que eu fosse, sem considerar aquilo que eu queria ser como mulher, como ser humano. Choro contido.

    Obrigada irmãs por me ensinarem a lutar | Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte Jornalismo

    Feminismo, maternagem, relações afetivas, representatividade, negritude, sexualidade, violências, desejos, dúvidas. Tem espaço para tudo na roda, que abraça toda e qualquer manifestação daquelas mulheres que estão ali para partilhar, curar e fortalecer.

    O evento se encerra com um cortejo de maracatu Baque Atitude, que caminha pelas ruas do extremo sul. “Acorda, Maria Bonita”, elas cantam. Eu sou bonita dentro das minhas qualidades e defeitos.

    O desconforto físico que cheguei sentindo se esvai e dá lugar a uma espécie de tranquilidade. É tão bom não se sentir sozinha num mundo que a todo momento está mostrando para aquelas que não se calam que essa é quase uma sina.

    Quantas presenças cabem naquele círculo? Múltiplas. Que se encontram, que divergem, que se completam. São existências que cabem dentro de uma compreensão coletiva, quase uma utopia em tempos bicudos como os que estamos vivendo.

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