Sindicato da categoria afirma não entender motivo de iminente mudança de sede para dentro da Polícia Civil e pediu mediação à OAB-Bahia. Governo Jerônimo Rodrigues (PT) argumenta que integração não compromete independência

Peritos que atuam na Coordenação de Crimes contra a Vida deverão passar a trabalhar nas instalações do Departamento de Homicídio e Proteção à Pessoa (DHPP) na Bahia. A mudança, confirmada pela Ponte após publicação do jornal Correio nesta segunda-feira (26/5), preocupa a categoria, que teme prejuízos à autonomia do trabalho pericial.
Atualmente, a Coordenação de Crimes contra a Vida está instalada em um complexo que abriga órgãos como o Instituto Médico Legal (IML) e o Instituto de Criminalística. Para Leonardo Fernandes, presidente do Sindicato dos Peritos da Bahia (ASBAC), essa estrutura favorece a dinâmica das investigações.
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“O perito tem total autonomia e independência funcional. Então, ele vai para a perícia, coleta projétil, coleta material de DNA, faz as coletas dele. Se tiver alguma dúvida, por exemplo, a coordenação de balística fica do lado da coordenação de crimes contra a vida. Ou, se ele quiser assistir à necropsia da vítima, vai no IML, é só atravessar o estacionamento, assiste à necropsia da vítima. Então, a gente tem uma integração muito boa aqui com os peritos”, diz Leonardo.
A proposta de transferência é vista com desconfiança pelo sindicato, que teme interferências no trabalho técnico. “Vamos ter os peritos lotados dentro do prédio da Polícia Civil enquanto nossa estrutura toda, nosso laboratório, corpo técnico, está do outro lado da cidade. Isso nós não entendemos porque funciona bem como está, não tem atrasos no atendimento”, afirma o presidente.
“Você perde a autonomia. Eles não vão ser subordinados diretamente a delegados, mas vão estar lá dentro, cercados de policiais civis, delegados, que fazem a investigação”, complementa. “É prudente que você tenha uma separação física, como já acontece aqui em Salvador. Esse é o nosso receio.”
Investigação da polícia sobre a própria polícia
A Secretaria da Segurança Pública da Bahia (SSP-BA), da gestão Jerônimo Rodrigues (PT), defende a medida. Segundo a pasta, a chamada “integração física” não compromete a imparcialidade, mas reforça a capacidade do Estado em oferecer respostas mais rápidas e seguras aos crimes, “sem jamais ferir a autonomia dos peritos criminais” (leia nota na íntegra no final do texto).
O ASBAC manifesta especial preocupação com investigações envolvendo policiais civis. “É essa a nossa preocupação. Pode acontecer que alguma das equipes na investigação tenha um auto de resistência, que você tenha, por exemplo, uma vítima fatal. E aí, assim, pode acontecer do delegado que está investigando ou da equipe que foi envolvida naquele auto estar no mesmo prédio ou na sala ao lado ou próxima da equipe que fez o laudo pericial”, exemplifica Leonardo.
“Isso não é saudável para ninguém, nem para a perícia nem para a investigação. O ideal, nós entendemos, é que tenha a completa separação, inclusive de estrutura física, para poder você manter a autonomia e a independência do perito”, defende Leonardo. Diante da situação, o sindicato oficiou a seccional baiana da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por meio da Comissão de Direitos Humanos, solicitando mediação. Também pediu uma reunião com o secretário de Segurança Pública da Bahia, Marcelo Werner, para apresentar sua posição oficialmente.
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Em 2004, a perícia foi reorganizada pela lei estadual 9.289/2004, reafirmando a estrutura do Departamento de Polícia Técnica com diretores no mesmo nível hierárquico de outras chefias da segurança pública. “O importante dessa lei é que lá cria o cargo, além de dar a nossa autonomia, tem lá no primeiro artigo, já dizendo a autonomia, cria o cargo de diretor-geral, a gente tem uma pessoa que responde no mesmo nível hierárquico do delegado-chefe, comandante-geral da Polícia Militar, bombeiro militar, ou seja, fica todo mundo no mesmo nível hierárquico”, relata um perito, sob condição de anonimato.
Esse modelo de autonomia é adotado por outros 19 estados brasileiros. Em alguns casos, os órgãos periciais estão vinculados diretamente às Secretarias de Segurança Pública ou aos governos estaduais. A desvinculação completa, como recomendada pela Comissão Nacional da Verdade, ainda é exceção.
No Rio de Janeiro, onde a perícia está sob a Polícia Civil, apenas 21,2% dos homicídios ocorridos em 2018 foram elucidados até 2020, segundo o Instituto Sou da Paz. “No contexto do processo da perícia criminal do Rio de Janeiro, o delegado de polícia desempenha um papel fundamental na investigação de crimes e na condução do processo. Ele é responsável por solicitar a perícia criminal, que, por sua vez, realiza a coleta de provas e a análise técnica para ajudar na identificação do criminoso e na reconstituição dos fatos. Mas o delegado tem o poder de não aceitar os laudos”, explica Fransérgio Goulart, diretor executivo da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR).
Separação física e logística
Hoje, os delegados solicitam as perícias, mas não escolhem quem as realiza. “Quando um delegado solicita uma perícia, é o meu chefe que diz qual é o perito que vai. O delegado não escolhe qual é o perito que vai fazer. Claro que, por exemplo, se for uma perícia de veículo, vai ser um perito de veículo. Mas não se escolhe o perito. E o que estão tentando fazer é mais ou menos assim, é subordinar a gente a uma equipe da delegacia”, afirma outro perito, também em anonimato.
“O perito não pode ter lado, ele não está do lado de ninguém. Nós sempre falamos sobre isso. O perito está do lado da verdade, independente de quem a produziu. Não podemos estar perto de um delegado, do ponto de vista técnico”, acrescenta.
A logística também preocupa. Um dos pontos levantados é o impacto na cadeia de custódia — a documentação completa do percurso de uma prova. “Ficam questionamentos que os peritos fazem e ninguém sabe responder. Por exemplo, quando eu coletar, eu volto para a base que eles estão me forçando ou volto para a base que é a nossa, a nossa casa de verdade? Onde eu tenho que entregar o material para poder fazer a cadeia de custódia cumprir? Ninguém sabe, ninguém pensou nessas coisas”, questiona.
Autonomia pericial e decisões internacionais
Para Marcos Secco, presidente da Associação Brasileira de Criminalística (ABC), a mudança em curso na Bahia contraria normas nacionais e decisões internacionais. Em 2017, a Corte Interamericana de Direitos Humanos responsabilizou o Brasil por violações no caso da Favela Nova Brasília, onde 26 jovens foram mortos e três mulheres estupradas por policiais. A Corte destacou que a independência do órgão investigador é essencial, tanto institucional quanto prática.
A Resolução nº 15/2024 do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) também destaca que “a autonomia referida neste artigo consiste na ausência de interferências políticas ou administrativas na realização das perícias […] A autonomia é essencial para garantir a qualidade, imparcialidade e a disciplina judiciária prevista no artigo 280 do CPP.”
Em 2024, o Supremo Tribunal Federal (STF) reafirmou a constitucionalidade da lei 12.030/2009, que assegura a autonomia técnica, científica e funcional aos peritos. Também reconheceu a possibilidade de investigações criminais conduzidas pelo Ministério Público, sem necessidade de participação da polícia.
“A partir do momento em que eu estou vinculado a você, eu já tenho que mitigar uma análise de risco e essa análise pode ter interferência sim, porque a perícia está ali para levantar o vestígio real ali, o que está acontecendo, ela não está ali para fazer defesa de hipótese criminal. Eu não estou ali para fazer uma prova, você chega numa linha investigativa e eu estou ali para fazer uma prova para a sua linha investigativa, eu estou para levantar ali, se a minha prova não serve para a sua linha investigativa, o que tem de errado é a sua linha investigativa. Contra fatos não há argumentos”, afirma Secco.
“Você pode ter uma equipe especializada de local de crime de morte violenta pronta para atendimento. Por que isso tem que estar dentro da DHPP? Para andar mais rápido? Não, é justamente para fazer uma pressão psicológica e fazer um direcionamento no entendimento do profissional”, completa.
Reconhecimento constitucional
A ausência de regulamentação específica para os órgãos de perícia autônomos gera entraves legais e operacionais. A ABC defende a aprovação da PEC 76/2019, que inclui a Polícia Científica no artigo 144 da Constituição Federal. O texto já foi aprovado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) e aguarda votação no plenário do Senado. Já a PEC 37/2022, entregue ao Senado pelo então ministro Ricardo Lewandowski, não prevê menção à autonomia pericial.
O dossiê “Perícia e Direitos Humanos: recomendações para o aperfeiçoamento da Perícia Criminal”, lançado em abril pelo Instituto Vladimir Herzog e a Fundação Friedrich Ebert – Brasil, aponta a autonomia como essencial para a melhoria da formação dos peritos.
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Secco argumenta ainda que a centralização da perícia em um único órgão também reduz custos. “Imagina, você tem três forças policiais e cada uma acha que tem o direito de ter um órgão de perícia dentro dela. Não é barato a atividade, tem que ter laboratórios caríssimos. Então, em vez de gastar, por exemplo, R$ 20 milhões em cada força policial, teria R$ 60 milhões, poderia gastar R$ 40 milhões e montar uma senhora estrutura para um órgão de perícia que preste serviço para todos. Tem o princípio da eficiência e economicidade. Porque vai chegar ao ponto que, se você é uma força policial tendo o seu próprio órgão de perícia, ele não vai ter demanda suficiente para investir”, conclui.
O que diz a SSP-BA
A Secretaria da Segurança Pública ressalta que a independência da perícia é perfeitamente compatível com a integração da atividade de segurança pública, como de fato vem ocorrendo atualmente com a participação de equipes de perícia nas grandes operações.
Enfatiza ainda que o delegado de polícia conduz a investigação policial e o perito exerce atividade eminentemente técnica e científica, buscando vestígios e produzindo provas. A integração das instituições acelera a elucidação dos crimes contra a vida, com a identificando e prisão dos envolvidos de forma mais rápida.
Por fim, a SSP retira que a integração física entre DPT e DHPP, longe de ameaçar a imparcialidade, reforça a capacidade do Estado de responder com qualidade, rapidez e segurança aos crimes, sem jamais ferir a autonomia dos peritos criminais.