Pesquisadora de dossiê sobre lesbocídio denuncia perseguições em redes sociais

    Em defesa de docente, responsável pela primeira pesquisa sobre lesbocídio e suicídio de mulheres lésbicas, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais lança nota de apoio

    Desde a criação de um site que apresenta dossiê sobre o lesbocídio (assassinatos de lésbicas pelo fato de se relacionarem com mulheres), em fevereiro de 2018, a pesquisadora Maria Clara Dias, 54 anos, professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e coordenadora do NEA (Núcleo de Ética Aplicada) e do NIS (Núcleo de Inclusão), tem sido alvo de perseguições e ameaças em redes sociais. Segundo ela, a motivação é justamente sua pesquisa, a ‘Lesbocídio – As histórias que ninguém conta’, primeira pesquisa acadêmica sobre assassinatos e suicídios de mulheres lésbicas, lançada em março deste ano.

    Em entrevista à Ponte, a professora contou que as perseguições começaram com perfis falsos. “Na véspera do lançamento do livro, um rapaz fez uma convocação e algumas pessoas falaram no nosso site “amanhã vai rolar sangue”. A gente até estava com um certo medo por não imaginar quem era, estávamos esperando um grupo grande de pessoas no evento, mas apareceu uma pessoa só”, explica Maria Clara.

    A pessoa em questão é Daniel Barbosa Reynaldo, de 39 anos, que cuida da página “Quem a homofobia não matou hoje”, mesmo nome do blog que gerencia. Na visão de Maria Clara, o site é “um espaço de ódio, racista e homofóbico” e não deveria estar no ar.

    De acordo com a pesquisadora, logo após a palestra de lançamento, quando as perguntas do público começaram, Daniel levantou uma questão provocativa sobre a veracidade das informações da pesquisa, principalmente em relação aos números de suicídios, o que exaltou as mulheres presentes no evento.

    “Depois ele começou a ironizar e rir das perguntas e tudo mais. Pedimos para que ele se retirasse e ele disse que só sairia com a polícia, chamamos a segurança e ele disse a mesma coisa. Quando acabou o evento, eu tentei garantir a segurança das mulheres que estavam presentes e o diretor administrativo ficou aguardando a polícia com o Daniel, já que era o que ele queria”, narra a pesquisadora.

    Desse dia em diante, as perseguições e acusações se intensificaram, principalmente no blog de Daniel. “Até a semana passada, embora isso tivesse sendo muito estressante, nós tínhamos achado que era melhor não responder, simplesmente ignorar, porque a sensação era que ele queria visibilidade e achamos que não fazia muito sentido entrar nesse jogo. Só que foram mais de 100 acusações e chegou a fazer um abaixo-assinado”, relata Maria Clara. Para docente, o que mais a incomodou foi ser exposta por Daniel, que publicou uma foto dela em seu blog.

    Para além da atuação no mundo virtual, Daniel Barbosa Reynaldo entrou em contato com órgãos educacionais para confrontar a veracidade da pesquisa: CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e a própria UFRJ (através da reitoria, ouvidoria e diretoria), alguns dos lugares procurados pelo autor das acusações. Duas queixas foram enviadas por Daniel para o MP (Ministério Público), uma no âmbito criminal, arquivada em março, mas reaberta no começo de agosto.

    No dia do lançamento, a professora conta que tentou explicar a Daniel que falar de mortes de mulheres lésbicas foi uma escolha das pesquisadoras, o que não anula a importância das outras mortes. “O mais impressionante é que é uma pesquisa acadêmica. Entre as questões que ele levantou, dizia que o número de pessoas que se suicidava era muito grande e ele não conseguia entender porque a gente tinha achado relevante aquele número de lésbicas que se suicidaram” diz a professora, explicando que indicou que ele fizesse uma pesquisa com o tema cobrado.

    Sobre a criação do dossiê, Maria Clara explica que partiu de uma indignação de Milena Cristina Carneiro Peres, que assina a pesquisa ao lado de Dias e Suane Felippe Soares. Entre os dados levantados está a percepção de dois tipos de lesbofobia: entre as lésbicas feminilizadas e as lésbicas não feminilizadas, com maiores casos de suicídios no primeiro grupo.

    “A gente tenta fazer uma explicitação do porquê isso ocorre. A reação às lésbicas não feminilizadas em diversos ambientes é muito impressionante, muito chocante como a sociedade acha insuportável isso. Inclusive nos meios de pessoas LGBT, na verdade é uma categoria sempre jogada para o escanteio. É uma coisa que a sociedade não quer nem ouvir falar, esse que é um dos principais problemas do dossiê”, pondera a docente.

    ‘Falsa conclusão’ de morte por preconceito

    Procurado pela Ponte, Daniel Barbosa Reynaldo, autor das acusações, explicou as motivações das denúncias contra a pesquisa. Para ele, uma vez que o projeto se propõe a falar de crimes motivados pela lesbofobia, qualquer outra causa de morte não deveria estar na pesquisa.

    “O erro central que enxergo não reside na pesquisa estar focada nas lésbicas, mas em apresentar a falsa conclusão de que houve muitas dezenas de mortes motivadas por preconceito contra lésbicas no Brasil e nos últimos anos com base em dados que não suportam esta afirmação. A limitação demográfica da pesquisa é passível de discussões, mas não é esse o meu incômodo”, defende Daniel.

    Barbosa faz questão de dizer que acredita que existam crimes de ódio contra lésbicas e que algumas lésbicas podem ter se suicidado devido a pressões que sofressem por serem lésbicas, mas “o que esta pesquisa faz é estabelecer o preconceito como default, como se em toda a morte de lésbica notificada a explicação tivesse que ser preconceito”, explica.

    Sobre o dia do lançamento do dossiê, Daniel afirma que o evento correu bem, até a rodada de perguntas ser aberta ao público. “Eu me inscrevi, esperei minha vez. Fiz duas questões sobre o que tinha sido dito na palestra. No meio das minhas perguntas já comecei a ser xingado. Até aí, não fiquei surpreso”, conta Daniel, explicando que é muito tímido e estava nervoso durante as perguntas, mas as fez de “maneira educada”.

    A partir das perguntas, segundo ele, uma tensão começou a pairar sob o evento. “Iniciou-se uma queixa generalizada que passou para agressões físicas contra mim, por parte de várias mulheres. Eu fui detido por um funcionário, encaminhado à Polícia Civil, onde fui acusado de agressão. Passei por duas delegacias, na 5ª DP os meus acusadores (duas professoras, um funcionário, um aluno e uma outra mulher) tentaram convencer o delegado a me prender em flagrante, mas ele rejeitou e me encaminhou pra 4ª DP. O delegado desta também não aceitou as denúncias e não viu razão para abrir do Boletim de Ocorrência [B.O.], e me liberou para casa”, relata Barbosa.

    Já em relação às denúncias, ele conta que enviou uma ao MP e uma à Polícia federal, ambas no dia 04 de março, por causa do ocorrido no lançamento, e em outros órgãos públicos, como CGU (Controlaria-Geral da União), CAPES e CNPq. À CGU, Barbosa solicitou os dados usados na pesquisa e que, segundo ele, foram apagados por Maria Clara, pois “ela não tem obrigação de mantê-los disponíveis em site, mas tem obrigação de fornecer informações aos cidadãos interessados, com base na Lei de Acesso à Informação [LAI]”, defende.

    Na CAPES, a denúncia foi por má-conduta acadêmica baseada na afirmação de que as mortes, para Daniel, não ocorreram exclusivamente por lesbofobia. “A CAPES me respondeu dizendo que analisou o mérito das minhas alegações e que – preliminarmente – parecem proceder. Todavia negou ter competência sobre o caso e me indicou procurar outras instâncias, como o CNPq. Do CNPq ainda não obtive resposta”, salienta.

     

    Em nota, Susana de Castro, diretora do IFCS (Instituto de Filosofia e Ciências Sociais), da UFRJ, salientou que repudia toda e qualquer ação difamatória contra a pesquisa da professora Maria Clara Dias. Segundo ela, a professora “ao longo de 30 anos de carreira acadêmica tem dado imensa contribuição à pesquisa filosófica brasileira em trabalhos sobre populações vulneráveis”. “Maria Clara Marques Dias está sendo alvo de ataques conservadores e de denúncias caluniosas que visam levantar suspeição sobre o resultado de sua pesquisa e assim desqualificar sua impecável trajetória acadêmica”, sustenta.

    No mesmo e-mail, a direção do instituto alega que é evidente a vinculação da pesquisa ao ataque recebido pela professora, uma vez que o alvo principal é o preconceito. “Devemos colocar esses ataques dirigidos a nossa colega no contexto nacional no qual a cada dia surgem campanhas difamatórias contra pesquisadores e pesquisadoras que ousam enfrentar temas ligados aos direitos humanos, direitos sexuais, ao racismo e a todo tipo de discriminação”, continua.

    A direção do IFCS destacou que se “orgulha de ser a casa de uma profissional comprometida com questões ligadas ao combate da desigualdade social brasileira e expressa seu apoio incondicional ao seu trabalho. Esperamos que sua pesquisa, que vem sendo conduzida com rigor científico e transparência acadêmica, continue a contar com o apoio institucional irrestrito que merece”, finaliza Susana.

    Também procurada pela reportagem, a CAPES informou em nota que “os dados de envolvidos em denúncia via e-OUV não podem ser disponibilizados, conforme prescreve o artigo 31 da Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011). “Como a CAPES não tem competência para atuar no caso apontado na denúncia, que retrata uma possível situação de fraude em pesquisa, tendo em vista que a denunciada não é bolsista desta fundação, a CAPES apenas orientou o denunciante a procurar os locais corretos a fazer a denúncia. Caso acatada, a denúncia será averiguada pelos órgãos que a acatarem”, prosseguiu.

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