Pesquisadora é banida do Twitter após publicar artigo sobre neonazismo na Ponte

Letícia Oliveira foi banida por “assédio direcionado” em polêmica após texto em que explicava as origens ideológicas do autor do atentando contra a vice-presidente da Argentina

A jornalista e pesquisadora Letícia Oliveira | Foto: Arquivo pessoal

ATUALIZAÇÃO: às 15h14 desta terça-feira, um dia após a publicação desta reportagem, Letícia anunciou que voltou com a sua conta no Twitter.

A jornalista e pesquisadora Letícia Oliveira, 44 anos, especializada em monitorar as ações online e na vida real de diferentes grupos de extrema-direita brasileiros, teve suas contas banidas do Twitter após publicar o artigo Hitlerismo esotérico: a ideologia do brasileiro que tentou matar Cristina Kirchner na Ponte e ser atacada por indivíduos que dizem não concordar com o conteúdo do texto.

O artigo foi publicado no dia 4 de setembro, poucos dias depois da tentativa de assassinato da vice-presidente da Argentina por Fernando André Sabag Montiel, cidadão nascido no Brasil, filho de pai chileno e mãe argentina, e que vive na Argentina desde 1993. Ele aproximou uma pistola perto do rosto da Kirchner, mas a arma acabou não disparando.

Logo que a notícia começou a circular, alguns perfis brasileiros em redes sociais se apressaram a apontar Fernando como um apoiador do presidente brasileiro Jair Bolsonaro (PL), baseados em um perfil homônimo, mas Letícia conseguiu chegar aos perfis verdadeiros de Montiel nas redes sociais para verificar que ele não nutria publicamente nenhuma simpatia pelo candidato brasielrio à reeleição, mas pertencia a uma casta mais exótica da extrema-direita, o chamado “hitlerismo esotérico”.

Em seu artigo, Letícia explica, baseada em citações de estudiosos respeitados do tema, como Nicholas Goodrick-Clarke e Julian Strube, que o “hitlerismo esotérico” é um desenvolvimento posterior ao nazismo histórico, ou seja, se inscreve entre os movimentos neonazistas do pós-Guerra, e detalhou algumas das simbologias utilizadas por seus seguidores, como o “sol negro” que Montiel tem tatuado no braço.

No dia seguinte, 5 de setembro, o streamer Ian Neves realizou uma live em seu canal na Twitch “História Pública”, cujo corte foi publicado em seu canal no YouTube, onde apresentava o artigo de Letícia sem dar os devidos créditos à autora e nem à Ponte, se referindo a ela usando um pronome masculino e ainda finalizou dizendo que o texto “passa um panão” (gíria que significa “justificar”, “minimizar”) para o nazista.

Indignada ao ter contato com o conteúdo do vídeo, Letícia passou a madrugada do dia 6 para o dia 7 de setembro (data das manifestações golpistas dos apoiadores de Bolsonaro) no Twitter tentando fazer com que Ian se manifestasse sobre o vídeo, exigindo direito de resposta e discutindo com apoiadores de Ian, que estariam fazendo comentários misóginos e transfóbicos contra a pesquisadora e pessoas que a apoiaram, como a ativista Pedra Esp.

Em silêncio sobre o ocorrido, Ian apagou o vídeo do seu canal no YouTube durante a tarde do dia 7 de setembro, e só ofereceu um esboço de pedido de desculpas após a Ponte publicar um tuíte em apoio a Letícia. Em sua thread, o streamer não explica os motivos de ter declarado em seu vídeo que iria omitir deliberadamente a autoria do texto, diz que não sabia se tratar de uma autora mulher (apesar de o nome dos autores da Ponte figurarem logo abaixo do título dos artigos assinados por eles) e voltou a dizer que o texto “relativiza” o nazismo de Fernando, apesar de Ian admitir ter sido “leviano”, porém sem elaborar sobre o que seria tal relativização.

Letícia considerou o pedido de desculpas insuficiente e voltou a reclamar no Twitter. Em poucas horas, sua conta principal na rede social, @bicicreta, foi suspensa. Dois dias depois, foi a vez de sua conta reserva, @letioliveirajor. Nesse meio tempo, relata ter recebido mais ataques misóginos no Twitter.

Apesar de uma campanha de diferentes personagens do Twitter na tentativa de ajudar Letícia a reaver suas contas, um comunicado da rede social no dia 12 de setembro informou que ela foi banida da rede por “violar regra contra assédio direcionado”.

A jornalista, que usava a rede como meio de trabalho e mantinha ali seu contato exclusivo com outros ativistas antifascistas do resto do mundo, afirma que está estudando que medidas pode tomar contra o Twitter. “Eu acho muito estranho ser denunciada logo após esse caso”, diz Letícia em entrevista à Ponte. “Eu já tomei ‘gancho’ do Twitter por responder ataques da Nova Resistência (leia mais abaixo), mas nunca havia sido banida. E nesse caso eu estava sendo claramente atacada, não usei palavrões para me defender, mas me sinto no direito de não ficar calada quando invisibilizam e questionam o meu trabalho que é sério.”

Bastarda Inglória

Como praticamente todo jovem que frequentou a cena punk, Letícia tem um longo rol de encontros nada amigáveis com trogloditas de extrema-direita. “Uma das vezes que não esqueço foi no show do Ramones em São Paulo em 1996. Estava cheio de ‘careca’ (versão brasielira dos “skinheads” britânicos, primariamente nacionalistas de direita), eu passei o show inteiro fugindo da violência e uma amiga apanhou muito” (as apresentações do grupo no país desde 1987 atraíam bastante violência, com relatos de pessoas esfaqueadas e brigas entre gangues e a polícia).

Letícia lembra também de outros amigos que sofreram com violência e ameaças, como uma amiga clubber de Niterói (RJ) que ficou um mês sem sair de casa com medo, já que os alvos de skinheads e carecas incluíam, além de punks, incluíam nordestinos e pessoas LGBT. Outro episódio que a marcou foi em uma noite de 2002 no extinto clube paulistano Orbital, nos Jardins, onde “um bonehead (gíria para skinhead assumidamente neonazista) ficou me perseguindo a noite toda, fazendo saudações nazistas na minha direção, e na saída ficou gritando que ia me matar”.

Hoje Letícia é editora da revista eletrônica El Coyote e assina reportagens em veículos como Carta Capital, UOL Congresso em Foco e Revista Sabiá, além da própria Ponte, mas sua militância online contra a extrema-direita começou em 2012, quando o movimento Femen (grupo pseudofeminista ligado à extrema-direita da Ucrânia que usava protestos com nudez feminina para atrair a atenção da imprensa) apareceu no Brasil.

“Eu ajudei a denunciar o passado da Sara Winter quando ela apareceu. Depois grupos antifascistas de países europeus, como a França, me procuraram para ajudar a denunciar a presença da extrema-direita no movimento”, lembra. A militante de extrema-direita Sara Giromini, que seria presa em junho de 2020 por liderar atos antidemocráticos contra o Supremo Tribunal Federal (STF), era a líder do Femen no país, mas contava com uma vida pregressa ligada à extrema-direita — o nome “Winter” seria uma homenagem à espião nazista britânica Sarah Winter, e ela tinha uma cruz de ferro tatuada, outro símbolo associado ao nazismo alemão.

Mas Letícia ganhou dos amigos o apelido de “bastarda inglória” por sua cruzada com o grupo de viés neofascista Nova Resistência (NR). Adeptos da chamada “quarta teoria política” ou QTP, delineada por Alexander Dugin — o “guru” do presidente russo Vladimir Putin e forte apoiador da invasão à Ucrânia —, a Nova Resistência tentou se infiltrar em diversos partidos políticos e conseguiu uma sólida base no PDT. Letícia vem denunciando a tática de “entrismo” há anos, diz já ter conseguido retirar membros da NR de partidos como o PT, e desde sempre sofre ataques de seus membros. “É um trabalho difícil, mas a esquerda não pode deixar o fascismo entrar em suas fileiras.”

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Apesar de não estar formalmente ligada a nenhuma universidade ou centro de pesquisa, o trabalho de Letícia é bastante valorizado por acadêmicos que estudam a extrema-direita no país. Odilon Caldeira Neto, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora e um dos coordenadores do Observatório da Extrema Direita, diz que o trabalho de Letícia “é de grande importância, e se enquadra no esforço de diversas e diversos profissionais, não acadêmicos, e inclusive militantes antifascistas, na busca por esmiuçar os fenômenos mais recentes da extrema direita, o que auxilia a compreender, com propriedade, as tramas e conexões destes grupos, no Brasil e no exterior”.

Apesar das ameaças e do revés com o Twitter, Letícia não deixa de lado a sua missão. Na semana passada, assinou no UOL uma longa reportagem ao lado da jornalista Marie Declercq sobre as táticas e a ideologia da Nova Resistência.

Outro lado

A Ponte procurou o Twitter por e-mail mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem. Procurado através de mensagem no Twitter, Ian Neves também não respondeu a tempo. Caso se manifestem, o texto será atualizado com seus posicionamentos.

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