Primeiro homem trans a realizar cirurgia de redesignação sexual no Brasil, ativista faleceu na sexta-feira (26/10) em decorrência de um câncer no pulmão
“O mais trágico de perdermos ele agora é que justamente ele entra em cena no regime militar e vive toda uma vida na clandestinidade. É muito louco ele sair de cena às vésperas de um momento histórico em que o Brasil está, nesse impasse político em que nós não sabemos se a democracia vai sofrer mais um golpe e se ela vai sobreviver.” Esse é o sentimento do ator Leo Moreira de Sá, 59 anos, sobre a morte do amigo João W. Nery.
Pioneiro na causa trans, João é uma das figuras mais importantes do movimento LGBT. Em 1977, durante a ditadura militar e de maneira clandestina, ele realizou a cirurgia de resignação sexual, tornando-se o primeiro homem trans do país a realizar o procedimento no Brasil.
Entre as cirurgias, estavam a mamoplastia masculinizadora (retirada dos seios) e a histerectomia (remoção do útero). Secretamente, João também realizou a retificação dos documentos, perdendo, assim, todos os seus direitos, incluindo o seu diploma de psicólogo.
Essa e outras histórias vieram à tona na sua autobiografia, Viagem solitária – memórias de um transexual 30 anos depois, publicada em 2011. Do lançamento do livro até o seu último dia em vida, João foi um militante assíduo dos direitos das pessoas trans e principalmente dos homens trans.
“A vida dele era a militância. Ele se torna para sempre o maior ícone que a comunidade transmasculina já teve. João é um grande símbolo e nós temos que lutar, por ele”, reforça Leo.
Além da autobiografia, João escreveu Erro de pessoa – Joana ou João e estava escrevendo seu terceiro livro, que se chamará Velhice Transviada. Também participou do livro Vidas Trans – A Coragem de Existir, escrito ao lado de outros nomes conhecidos no movimento trans: Amara Moira, T. Brant e Márcia Rocha.
O jornalista Luiz Fernando Uchoa, 34 anos, que também é integrante da rede Família Stronger, contou à Ponte que João o ajudou a se conhecer enquanto homem trans e militante. “Ele foi muito importante no meu processo de reconhecimento. Ele falava que eu devia pegar o meu conhecimento e distribuir, dizer que nós somos uma força, que nós somos uma irmandade e que existem várias possibilidades de sermos homens, independente da expressão de gênero e da orientação sexual”, relembra Uchoa.
O sorriso de Nery entregava o seu humor. Se o sorriso era largo, ele estava feliz. Mas, quando era um sorriso de canto, algo o incomodava. “Ele era muito doce, mas também sabia ser muito duro. A vida dele foi uma vida de muita luta. Muitas vezes, pra ele falar de outra coisa, a gente tinha que brincar com ele, pedir pra ele respirar um pouco”, conta Luiz Fernando.
Desde 2013, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 5002/13, lei de identidade de gênero conhecida como Lei João W. Nery. A autoria é dos deputados federais Jean Wyllys (Psol-RJ) e Erika Kokay (PT-DF). A proposta pede a garantia dos direitos civis de pessoas trans e nunca foi votada. Em abril de 2018, a proposta foi avaliada pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM), sob os cuidados da deputada Luiza Erundina (Psol-SP).
A militância era tão importante na vida de João que ele chegou a fazer um mapeamento de quantos homens trans havia no Brasil, incluindo todos os estados. Luiz Fernando o ajudou nisso. “Eu ajudei a fazer o mapeamento dos homens trans, construindo a planilha e ajudando nas apresentações. Ele não era muito de tecnologia, ele gostava mais da questão humana”, conta Uchoa.
Mesmo sem conhecer o ativista pessoalmente, o psicólogo Pedro Martins, 28 anos, contou a importância de Nery em sua vida. “João Nery é uma figura de luta, de resistência, de muito desbravamento e conquista, não só para minha vida, mas na militância. Eu olho para história dele, tudo que ele fez e vejo que precisamos dar continuidade. Ele é um ícone que inspira, é um tipo de masculinidade que eu fico feliz de saber que existe. Eu vejo ele nesse sentido como um herói muito particular, um representante do movimento trans”, revela Pedro.
Martins se espelha na figura de João Nery e acredita que é importante dizer que é um homem trans para diminuir a invisibilidade. “João era um cara sem pudor, ele dizia abertamente que era um homem trans. Eu vejo na minha geração um pouco de receio de falar abertamente em determinados espaços, inclusive a passabilidade [quando a pessoa trans é lida pela sociedade como se fosse cis] ajuda nesse sentido de nos colocar mais na invisibilidade e da gente se mostrar menos. Isso não resolve, não que seja ruim, mas se esconder atrás disso é ruim. Eu vejo ele como esse representante, é uma inspiração. A representatividade dele dá sentido a tudo”, explica Pedro.
Para Leo, a morte de João precisa se tornar uma bandeira de luta. “A gente precisa lutar muito para que a luta dele não seja em vão. Para que a luta de todas as pessoas que lutam por direitos humanos, LGBTs, mulheres e negros, toda população de excluídos não seja em vão. Nós conquistamos muito. Todas as conquistas que nós tivemos, principalmente a população trans, são conquistas que sofreram golpes muito duros. A morte do João é uma bandeira de luta nesse momento”, defende o ator.
Ao longo do dia, dezenas de postagem foram feitas em redes sociais para homenagear o ativista. Nomes importantes do movimento trans e da política se manifestaram. Em nota, a Rede Trans Brasil e a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) também se manifestaram sobre o falecimento de Nery.
https://www.facebook.com/redtransbrasil/posts/2373430486217720
Entre as homenagens estava a de Jaqueline Gomes de Jesus, professora, psicóloga e também militante trans. Em um relato emocionado, Jesus relembrou a amizade e identificação que tinha com João.
“João deixa um legado inestimável para a população trans brasileira, em especial para os homens trans que se reconhecem e se fortalecem com sua estória de coragem e superação. Não tinha como não me identificar com João, por sermos pessoas trans, escritores e psicólogos, mas principalmente por ele ser um ser humano de amor, pura alegria e fé inquebrantável na vida”, escreveu Jaqueline.
A professora também contou no relato que leu os manuscritos do terceiro livro de João e que fará de tudo para publicá-lo. “Li os manuscritos do seu novo livro, sobre idosos trans, que farei tudo que puder para que seja publicado. João sabia da urgência que sua situação de saúde trazia. Por isso não deixou de nos exortar a todas, todos e todes nós a seguirmos lutando pelas nossas vidas, pelo orgulho de sermos trans. São referências como ele que fortalecem a nossa comunidade! Hoje nosso amigo se juntou aos ancestrais, para continuar nos fortalecendo, ainda mais nestes tempos de luta contra o ódio que vivemos”, finalizou Jaqueline.
[…] vieram antes da gente, porque não existe histórico sobre a transmasculinidade. A gente conhece o João Nery e ponto”, finaliza […]
[…] para o João, sempre vejo coisas antigas dele com camisas e sapatos meus”, brinca ao lembrar de João W. Nery, psicólogo e pioneiro na luta dos homens trans e pessoas […]
[…] Fonte: http://ponte.org/pioneiro-trans-a-trajetoria-de-joao-w-nery/ […]