Dez anos após passar 54 dias presa por ter pixado um andar vazio na Bienal de Arte de São Paulo, Carolina Pivetta voltou ao local com a filha; documentário lançado nos EUA conta essa história
O documentarista Diógenes Muniz levava uma câmera emprestada na mão e tinha uma ideia na cabeça sobre a história que pretendia contar, em 2018, quando viajou da cidade de São Paulo para Alvorada, na região metropolitana de Porto Alegre (RS), para mostrar o cotidiano da pixadora Caroline Pivetta. Mas o que encontrou na casa de Caroline resultou num filme totalmente diferente do que tinha imaginado.
Para Diógenes, filmar Caroline significava reencontrar a protagonista da primeira grande história que ele havia contado como jornalista, dez anos antes, quando ainda era pouco mais do que um foca (repórter iniciante) trabalhando no site da Folha de S.Paulo. O primeiro encontro com ela ocorreu em 2008, quando Diógenes a entrevistou atrás dos muros da Penitenciária Feminina de Santana, na zona norte da capital paulista, onde Pivetta passou 54 dias sob prisão preventiva, acusada de destruição de patrimônio cultural. O crime dela havia sido pixar as paredes vazias de um dos andares do Pavilhão Ciccillo Matarazzo, sede da Bienal de Arte de São Paulo.
Embora a ação tivesse envolvido cerca de 40 pixadores, Caroline foi a única a ser presa. A base para a sua detenção foi um boletim de ocorrência registrada por um funcionário da Fundação Bienal, que alegava a necessidade de “preservar o patrimônio tombado” do pavilhão. “Uma artista transgressora ficou presa por causa de um B.O. assinado pela principal instituição de arte do país”, resume Diógenes.
“Eu achei muito chocante uma artista passar quase dois meses presa por pintar uma parede branca, isso mexeu comigo”, relata Diógenes. O andar alvo da pichação não tinha nenhuma obra de arte, porque o evento daquele ano se propunha a ser a “Bienal do vazio”. Ele acredita que a ação dos pixadores teria sido celebrada como uma interação artística válida, e não tratada como crime, se praticada por pessoas de outra origem social. “Se fossem estudantes de arte da USP jogando tinta nas paredes da Bienal do Vazio, ninguém teria ido parar na Penitenciária de Santana”, compara.
Quando levou sua câmera emprestada para filmar Caroline, Diógenes pretendia mostrar o cotidiano da pixadora e a primeira visita dela ao prédio da Bienal após sua prisão. Assim que ligou a câmera, porém, o que encontrou mudou suas ideias sobre o que seria o filme. Caroline estava totalmente absorvida pela convivência com a filha, Isis, de 3 anos, e a criança, muito esperta e encantadora, acabou roubando a cena. Quando o cineasta Douglas Lambert viu o material filmado e deu início ao roteiro e à montagem, junto com Diógenes, logo deixou claro que a história que merecia ser contada não deveria focar apenas a pixadora: aquele seria um filme sobre mãe e filha.
O resultado é o curta Pivetta, que estreia em um festival dos EUA, o Mammoth Lakes Film Festival, e fica disponível on-line até 5 de dezembro. Dirigido por Diógenes Muniz e Douglas Lambert, com produção executiva de Tereza Novaes, o filme teve um orçamento próximo de zero, com seus responsáveis trabalhando com a cara e a coragem. A trilha sonora, embalada com a canção “Sem Remorso”, de Nego Gallo, foi cedida gratuitamente pelo rapper.
“Você está fazendo um filme dela? É o meu filme que devia fazer”, diz a pequena Ísis para a câmera logo nas primeiras imagens. E é o que acontece. A menina permanece em cena na maior parte do filme, revelando os dilemas e contradições de Caroline, que segue sendo uma transgressora, já que nunca abandonou o pixo e continua a espalhar ilegalmente a grife Susto’s nos muros por onde passa, mas ao mesmo tempo precisa lidar com o papel de autoridade por ter se tornado uma mãe. “Ao mesmo tempo em que é uma artista contraventora, ela é uma mãe que precisa impor limites para a filha”, explica Diógenes. Assim, o título do curta se refere tanto a Caroline quanto a Ísis.
O jogo de papéis entre a mãe e a rebelde fazem a riqueza do documentário, como nas imagens em que Pivetta fala para Ísis “não aprontar” enquanto passam cenas da sua prisão ou na sequência da visita à Bienal, em que Caroline tem que lidar com as regras rígidas da segurança do prédio, ora instruindo a filha a seguir as ordens, ora mostrando à pequena como quebrá-las sem ser pega. “Esse filme vai ser uma lembrança bonita para Ísis rever quando for mais velha”, imagina Diógenes.
Diógenes, que ano passado venceu o Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade com seu primeiro longa, Libelu – Abaixo a Ditadura, vem adotando uma estratégia própria para divulgar o filme. Está distribuindo panfletos com links em QR Code para o documentário na própria Bienal de Arte, que em 2021 completa 70 anos. Nos impressos, está escrito Uma artista foi presa aqui. “Quis levar a história para o palco a que ela pertence. A Carol está ligada à história da Bienal e não vão conseguir apagar isso.”