PM atira em mulher que diz não ter ouvido ordem de parada e MP afirma que policial agiu certo

Rose Soares da Silva, 37, teve sequelas após tiro, em Jussara (GO). Caso foi arquivado após a Justiça concordar com o promotor que escreveu que o policial agiu no “estrito cumprimento do dever legal”

A assistente jurídica Rose Soares da Silva usou bolsa de colostomia por sete meses após tiro de PM | Foto: Arquivo pessoal

A assistente jurídica Rose Soares da Silva, 37 anos, ainda sofre as consequências do tiro que levou em novembro de 2022. Na ocasião, ela visitava a mãe no município de Jussara, no interior de Goiás. O disparo foi feito por um policial militar que disse, em depoimento, ter atirado contra o veículo em que ela estava após os ocupantes não terem obedecido à ordem de descida. Rose diz não ter ouvido nenhuma solicitação, nem sequer sirenes e/ou visto as luzes do giroflex. O caso foi arquivado em maio após o Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO) concordar com a avaliação do Ministério Público de Goiás (MP-GO) de que o PM agiu certo. A situação revolta Rose.

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“Acho bizarro que uma pessoa seja prejudicada e fique por isso mesmo. Por que é policial, ele não será punido?”, diz. O caso ocorreu em 22 de novembro de 2022, na Avenida Marechal Rondon, por volta das 23h45. Rose foi para Jussara, no interior de Goiás, visitar a mãe. Fazia dois anos que a conversa entre elas ocorria apenas por telefone. A saudade bateu e a filha partiu para o Centro-Oeste. A assistente jurídica mora no Rio de Janeiro com o marido.

No dia em que foi ferida, Rose foi assistir ao jogo do Brasil contra a Sérvia pela Copa do Mundo. Na volta para a casa, ela pediu a um amigo que a acompanhava, um policial militar, para dirigir o carro dele. O veículo era automático e Rose nunca tinha pego um carro assim para pilotar. 

Ela conta que o carro morreu ao fazer uma mudança na marcha. O amigo instruiu Rose e ela passou a dirigir o veículo bem devagar, diz. Um barulho assustou a motorista. O amigo pensou que fosse um galho de árvore, mas o som se repetiu. “Parece um estouro”, teria dito Rose.

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A assistente jurídica sentiu as costas arderem e desesperou-se ao perceber que estava sangrando. “Para mim, tinha sido um bandido”, lembra. Em função do tiro, Rose teve que usar bolsa de colostomia por sete meses. Outra consequência é que ela não pode mais ter filhos naturalmente por ter um dos ovários prejudicados após o disparo.

Rose contesta a versão dos policiais. Ela diz que estava em baixa velocidade e que não ouviu ordem de parada, como contou o policial. “Foi uma abordagem totalmente inadequada”, diz.

Ordem de parada

Em depoimento, os policiais disseram que o veículo tinha película escura, não sendo possível verificar quem estava no interior. Eles disseram ter parado ao lado da retaguarda do carro e descido da viatura em direção a ele. 

O sargento Cléber Padilha Silvestre disse ter pedido que os ocupantes desembarcassem, o que não foi atendido. O veículo teria acelerado bruscamente e neste momento foi efetuado pelo sargento Wesley Vieira Cordeiro dois disparos com uma pistola. 

Cordeiro contou que ele e o colega saíram na base naquela noite para atender um chamado em um posto de gasolina. Enquanto estavam no local, foram avisados via rádio que havia uma solicitação de monitoramento na unidade do Banco do Brasil do município. As câmeras internas haviam parado de funcionar, mas o alarme tocava.

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O acionamento da PM era para checar o que estava havendo. O sargento disse que o giroflex estava ligado. Na lateral do banco, os policiais teriam visto um carro parado. Wesley contou que, pelo histórico em cidades vizinhas de roubo a agências bancárias, o nível de atenção à abordagem foi aumentado.

A viatura teria parado atrás do carro e o sargento Cléber ordenado por várias vezes que os ocupantes descessem. Disse que, sem a obediência à ordem, correu pela lateral esquerda do veículo e atirou no intuito de acertar os pneus do carro, mas que “não conseguiu visualizar onde havia atingido o veículo”. 

A testemunha, que estava com a assistente jurídica e também é policial militar, disse em depoimento que Rose dirigia em baixa velocidade quando ouviu um barulho pela primeira vez. Afirmou também não ter ideia de que estava sendo alvo de uma abordagem policial, que o som do carro não estava ligado e que Rose não fez manobras bruscas com o veículo.

A perícia mostrou que o carro de Rose foi atingido por dois tiros. Um deles no pneu dianteiro direito e o outro na porta traseira esquerda.

Lesão corporal

O inquérito policial militar concluiu que houve transgressão disciplinar e o crime de lesão corporal culposa cometido pelo PM Wesley. No caso de Cléber Padilha Silvestre, o entendimento foi de que não houve transgressão. A decisão de encaminhar o processo para a Justiça Militar foi assinada pelo Capitão da PM Daniel Lopes da Luz em 2 de janeiro de 2023.

Já na Polícia Civil, o delegado Gilvan Borges Oliveira indicou o PM Wesley por lesão corporal culposa em março do ano passado. Para o delegado, o policial agiu parcialmente na legalidade. Ao imaginar que enfrentaria uma situação grave, o PM incorreu em erro do tipo essencial, o qual exclui o dolo (intenção de matar ou causar dano), mas responde pelo excesso culposo, escreveu Borges Oliveira.

O promotor Edmilton Pereira dos Santos pediu o arquivamento do inquérito. Para Pereira dos Santos, o PM agiu no “estrito cumprimento do dever legal” ao atirar contra o carro de Rose. No pedido, ele escreveu que não verificou a prática do crime. Mesmo com a lesão corporal, fica para o promotor “cabalmente comprovado que a conduta do agente está abarcada pela excludente de ilicitude”.

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Para o promotor, houve “nítida intenção de fuga” de Rose, o que fez com que a ação do policial fosse legal. No entendimento do promotor, o tiro que fez Rose não poder mais ter filhos naturalmente, “não passou de uma fatalidade”.

A juíza Bárbara Fernandes Barbalho acatou o pedido do MP em 22 de maio e decretou o arquivamento sob argumento de que “o investigado agiu no estrito cumprimento de dever legal ao efetuar disparos de arma de fogo em direção à vítima”.

Arquivamentos recorrentes

Bartira Miranda, pesquisadora associada do Fórum Brasileiro da Segurança Pública (FBSP) e professora do mestrado em Direito e Políticas Públicas da Universidade Federal de Goiás, explica que cada polícia no Brasil tem um Procedimento Operacional Padrão (POP). Nele estão contidos comandos de como os policiais devem agir em diversos tipos de situações.

No caso de Goiás, o POP mais recente não está público. A Ponte teve acesso à versão de 2014 do documento. Nela é dito que, em caso de veículo em fuga, os policiais devem acionar luz intermitente e sinais sonoros e sinalizar para o condutor parar o veículo. 

O mesmo documento diz que a conduta esperada pelo policial seja segura e legal e que seja usada energia estritamente necessária para a contenção do possível agressor. 

O mesmo POP descreve como possível erro a precipitação do uso da força letal e a efetuação de tiro de advertência ou intimidação.

Para Bartira, a conduta do PM está em desacordo com os padrões impostos à polícia. O uso da força tem que ser gradual, defende. “A polícia deve evitar meios agressivos se ela pode usar de mecanismos menos violentos”, afirma. Ela diz que o carro da vítima poderia ter sido parado de outra maneira, como, por exemplo, bloqueando a passagem dele.

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Ela destaca ainda que a posição do Ministério Público neste caso não é incomum. No livro Violência Estatal: o arquivamento de inquéritos nas mortes por intervenção policial (Tirant Lo Blanch, 2022), o autor Alan Kardec Cabral Jr. examinou 268 inquéritos analisados pelo MP-GO, entre 2017 e 2019, envolvendo policiais em Goiás. Do total, apenas 12 foram processados. Ou seja, 95,5% foram arquivados.

“Vemos uma predisposição muito grande do Ministério Público de promover o arquivamento de inquéritos que envolvem a polícia. Sempre que a polícia está respondendo ao crime de homicídio, lesão corporal, tentativa de homicídio, o MP-GO pede arquivamento em 95% dos casos”, afirma.

O que dizem as autoridades 

A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública de Goiás (SSP-GO), a Polícia Militar, o Ministério Público (MP-GO) e o Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO) solicitando entrevistas com os agentes públicos citados. Não houve retorno ao pedido. 

Em nota, a PM de Goiás disse que o inquérito Policial Militar foi remetido à Auditoria da Justiça Militar. “A Polícia Militar segue colaborando com a justiça e reitera o compromisso de cumprir as decisões emanadas do Poder Judiciário”, diz o texto assinado pela Major Dayse Pereira Vaz Veiga.

Já o MP-GO, enviou uma posição do promotor Edmilton Pereira dos Santos. Sobre o arquivamento, Santos explicou que o fundamento da decisão de arquivamento foi a ausência de justa causa para o início da ação penal. 

“O promotor esclarece que a ausência de justa causa para o início da ação penal não produz coisa julgada material. Por esse motivo, se forem apresentadas novas provas relativas ao fato, a suposta vítima pode requerer a reabertura das investigações, conforme previsto no artigo 18 do Código de Processo Penal”, aponta a nota. 

A SSP-GO e o TJ-GO não responderam até a publicação do texto. O espaço segue aberto.

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