Delegada afirma que PMs em São Sebastião (SP) cometeram fraude processual, mas coronel da reserva discorda
Dois policiais militares que se envolveram em uma suposta troca de tiros com suspeito interferiram na cena do crime antes de apresentar o caso à Polícia Civil de São Sebastião, litoral norte de São Paulo. A ação ocorreu às 14h40 do dia 13 de agosto, mas a dupla de policiais levou a ocorrência ao 1ºDP (Distrito Policial) da cidade apenas às 23h, quase 10 horas depois.
De acordo com o B.O. (Boletim de Ocorrência), o soldado Fábio José Tonda e o tenente Rodolfo de Oliveira Quirino viram um homem com uma sacola na mão ao rondarem a Travessa Onofre Santos e suspeitaram que ele traficava drogas. Segundo a dupla, o homem resistiu à abordagem, derrubou o tenente em “luta corporal” e tentou pegar sua arma, o que fez Quirino atirar. O homem, Adonai Bispo dos Santos, 19 anos, foi baleado no tórax.
Os PMs ainda explicam que acionaram o Samu para socorrer o homem, mas a ambulância estava “em outro atendimento e a própria equipe policial realizou o socorro”, ato contrário às normas da SSP (Secretaria da Segurança Pública) de SP (leia aqui a Resolução nº 5, de 7 de janeiro de 2013). Os dois o levaram ao pronto socorro da cidade e dizem ter encontrado dois celulares, três colares, R$ 902, 42 pinos com “substância aparentando ser cocaína” e 15 trouxinhas “aparentemente de crack” com o suspeito.
No entanto, em vez de os PMs acionarem a Polícia Civil, corporação responsável por investigações criminais, os policiais decidiram acionar diretamente a perícia da Polícia Científica, conforme destacado no B.O. pelo delegado Carlos Eduardo Nascimento. Após prestarem socorro e solicitarem a presença da perícia, Tonda e Quirino voltaram para o seu batalhão e apenas às 23h apresentaram a ocorrência para o delegado.
Segundo Nascimento, ele requisitou a apreensão da arma do tenente Quirino, mas não foi atendido pois o policial entregou sua arma calibre .40 no batalhão para seu superior, identificado no documento como “Aquino”, que disse ter, de fato, apreendido o armamento. “Disse ainda o PM Aquino que somente estava apresentando a ocorrência relativa ao tráfico de drogas e que o disparo de arma de fogo não seria apresentado, pois era seu entendimento”, explica o delegado.
Carlos Eduardo então questionou o perito acionado o motivo dele ter ido ao local do suposto tiroteio sem o aval da Polícia Civil. Após explicar que existe uma norma que autoriza tal ação, o perito explicou que, na ocorrência, “não foram informados pelos Policiais Militares que o acionaram de que se tratava de disparo de arma de fogo contra civil, mas sim de lesão corporal em PM”.
Segundo a presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo, Raquel Kobashi Gallinati, PMs que se envolvem em ocorrência com troca de tiros “obrigatoriamente devem apresentá-la ao delegado de polícia e ele que deliberasse as providências a serem tomadas, inclusive solicitação de perícia”. Para ela, neste caso “houve, no mínimo, fraude processual”
“Há a necessidade legal, processual, que crimes sejam apresentados ao delegado. Poderia até ser situação de um flagrante delito, não sabemos o que ocorreu, até porque houve alteração das provas e da cena dos fatos e uma desobediência. A ordem legalmente dada pelo delegado não foi cumprida”, analisa, criticando também o fato da dupla ter socorrido o homem, alterando a cena do crime, caso ele venha a falecer. “Deve ser verificado. Será que realmente foi resistência? Não sabemos”, complementa.
Gallinati argumenta que os crimes cometidos pelas polícias contra a vida de civis são julgados pelo Tribunal de Justiça comum, e não a Justiça Militar, o que impossibilita que militares investiguem estes casos. “Temos ainda a usurpação de função pública, prevaricação. O que espanta são os peritos, que são policiais civis, terem atendido uma requisição dos patrulheiros. A função da PM é patrulhamento ostensivo, de forma alguma é investigar. Em lugar algum está escrito que PM pode investigar crimes” explica.
O entendimento é diferente do que tem o ex-secretário nacional de segurança e coronel reformado da PM paulista, José Vicente da Silva Filho. Segundo ele, o crime cometido pelos policiais deveria ser apresentado no batalhão e não na delegacia. “A troca de tiros, se feriu uma pessoa, é um crime militar e, como militar, é apurado pelo Código de Processo Penal Militar. Isso obriga que o chefe do PM tome as providências. Se é um crime comum, é atribuição do delegado. Essa autoridade militar é irrenunciável na hipótese de crime militar, se é o caso de morte, aí é na Justiça comum”, justifica Vicente.
O coronel reformado explica que “cansou de fazer portaria para abrir inquéritos” quando comandava batalhões. “Às vezes as pessoas estranham. O comandante tem atribuição de policial judiciária militar. Todo comandante de unidade tem essa incumbência também para crimes especificamente militares, não pode simplesmente levar para a delegacia, estaria descumprindo uma norma legal”, emenda, dizendo que existem casos que demoram 20, 40 horas quando há crime em flagrante, quando questionado sobre a demora de quase 10 horas entre a troca de tiros e a ida dos PMs à delegacia.
Para ele, os PMs do caso de São Sebastião agiram corretamente também quanto ao socorro do homem baleado. “A única justificativa é na impossibilidade ou demora da equipe do Samu ou do resgate de bombeiro. Eventualmente o centro de operações da PM informou que não haveria veiculo de remoção hospitalar de emergência e teriam que fazer por meios próprios”, afirma. “Isso tudo é verificado. Em caso de periclitação de vida, o PM tem que resgatar, senão pode ser acusado de omissão de socorro”, finaliza.
A Ponte tentou contato com a delegacia de São Sebastião e o batalhão local da PM, mas os policiais solicitaram que a reportagem falasse oficialmente com a SSP SSP (Secretaria da Segurança Pública de São Paulo). Segundo a pasta, comandada pelo general João Camilo Pires de Campos neste governo de João Doria (PSDB), “todos os fatos relativos ao caso são apurados pelo 1º DP de São Sebastião e pela Polícia Militar, que instaurou um inquérito policial militar (IPM). As armas envolvidas na ocorrência foram encaminhadas à perícia”, diz nota enviada pela assessoria de imprensa terceirizada, InPress, à reportagem.
A reportagem também solicitou à Secretaria de Saúde do município de São Sebastião, chefiada pelo secretário Wilmar Ribeiro do Prado no governo do prefeito Felipe Augusto (PSDB), detalhes da situação do homem baleado. No entanto, a pasta não explicou se Adonai Bispo dos Santos recebeu alta, se continua internado ou se morreu.
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