Jovens foram detidos a 500 metros de onde acontecia manifestação sob alegação de associação criminosa e tentativa de abolir Estado Democrático de Direito; 7 ficaram presos e foram soltos após audiência de custódia nesta quinta-feira (11)
Enquanto a imprensa acompanhava a concentração do ato convocado pelo Movimento Passe Livre (MPL) em frente ao Theatro Municipal, a cerca de 500 metros dali 25 jovens, incluindo adolescentes, foram detidos pela Polícia Militar na saída da estação República do Metrô, no centro da capital paulista, na tarde desta quarta-feira (10/1).
Sete deles foram indiciados por tentativa de abolir violentamente o Estado Democrático de Direito, associação criminosa e por corrupção de menores. Seis adolescentes foram detidos e autuados por atos infracionais análogos. As penas desses crimes variam de um a oito anos de prisão e pagamento de multa.
O grupo passou por audiência de custódia nesta quinta-feira (11/1) e, segundo o Tribunal de Justiça, os sete adultos, sendo duas mulheres e cinco homens, tiveram a liberdade provisória concedida e terão de cumprir medidas cautelares até o encerramento da investigação: utilização de tornozeleira eletrônica, proibição de comparecer a manifestações com aglomeração de pessoas, permanecer em casa no período das 22h às 6h, não se ausentar da cidade sem autorização, manter endereço atualizado e comparecer mensalmente ao fórum. Já sobre os adolescentes, a assessoria disse que “não há informações a serem compartilhadas”.
O protesto havia sido convocado contra o reajuste da tarifa de metrôs e trens, que passou de R$ 4,40 para R$ 5 e começou a valer no dia 1º de janeiro por determinação do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos). Os jovens detidos estariam a caminho da manifestação.
Segundo o boletim de ocorrência, policiais do 7º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano (BPM/M), sob a coordenação do capitão De Lucas, localizaram na Praça da República “um grupo de jovens reunidos, todos com vestimentas na cor preta, com máscaras, encapuzados, portando mochilas, típicas de atuação de manifestantes ‘BLACKBLOCKS’ (sic)”, sendo que aqueles com máscaras estariam violando a Constituição Federal que veda o anonimato e que por isso decidiram abordá-los.
No texto, os policiais informam que estavam fazendo trabalho “preventivo” para “evitar danos ao patrimônio” por conta da convocação do ato e da disseminação de uma “cartilha de conduta” pelas redes sociais de como os manifestantes deveriam se portar diante das forças de segurança pública, “pois além de manifestantes ordeiros, poderiam haver indivíduos que obedecendo aos mandamentos estimulados pelas redes sociais desejassem a desordem e o caos social”.
Contudo, a única postagem que a reportagem localizou sobre como se portar diante da polícia é do próprio MPL, mas com orientações sobre procedimentos de segurança que não são ilegais, como registrar uma abordagem policial, levar documentos, itens para aliviar possível efeito de gás lacrimogêneo, dentre outros.
Os policiais Thiago Moreira de Carvalho e Luiz Felipe Floco de Freitas disseram que uma jovem de 21 anos se apresentou como “líder daquelas pessoas reunidas” querendo saber o motivo da abordagem, o que os PMs explicaram, e as policiais femininas, que não são identificadas no boletim de ocorrência, passaram a fazer as buscas pessoais. Segundo o BO, o que teria sido encontrado com 13 deles era:
Jovem negro de 23 anos: gaze;
Jovem negro de 20 anos: um porrete com pregos, dois canivetes, uma corrente, uma tesoura, uma faca, um soco inglês adaptado, um gatilho de metal;
Jovem branco de 21 anos: um martelo;
Jovem negra de 21 anos: um canivete e um soco inglês adaptado;
Jovem branco de 25 anos: uma pedra, uma faca e um canivete;
Jovem negro de 19 anos: um estilete e um alicate de corte;
Jovem branca de 21 anos: uma garrafa de gasolina, uma garrafa de álcool e duas garrafas de vinagre;
Adolescente branca de 17 anos: um canivete;
Adolescente branco de 16 anos: um soco inglês adaptado;
Adolescente negro de 17 anos: um canivete e uma faca de costura;
Adolescente negro de 17 anos: uma corrente, uma faca e um soco inglês adaptado;
Adolescente negro de 16 anos: um isqueiro, um soco inglês adaptado, uma lata de spray e um objeto metálico diverso;
Adolescente branca de 17 anos: dois canivetes.
A Ponte não identificou os adultos detidos pois não conseguiu localizar defesas nem familiares. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) proíbe identificação de menores de idade em situação de conflito com a lei.
Ainda de acordo com o registro, a jovem que seria a liderança do grupo com a qual teriam sido apreendidas as garrafas de gasolina, álcool e vinagre teria dito aos policiais “vocês (polícia) têm granadas e nós temos gasolina, vamos pra cima contra esse aumento de tarifa abusivo e contra esse governador autoritário”, o que teria feito os PMs conduzirem todos à delegacia.
O delegado Alexandre Henrique A. Dias, do 3º DP (Campos Elíseos), argumentou que gasolina, álcool, gazes e garrafas “são comumente utilizados por transgressores da lei como arma química incendiária que combinada com líquidos inflamáveis é utilizada em protestos contra agentes públicos, visando incapacitar a atuação dos agentes públicos, podendo causar inclusive lesões permanentes e até a morte e também atentar aos manifestantes que estavam no local de forma ordeira e pacífica”.
Ele justificou os indiciamentos ao escrever que mensagem de rede social, não explicitando qual, convocando o protesto que “evolui para um chamado de que se não tiver seus anseios atendidos irão ‘parar a cidade’ alimenta por si só um sentimento de enfrentamento” porque o horário marcado para a caminhada do ato começar coincidia com a saída das pessoas do trabalho, o que motivaria, para ele, “caos e desordem urbana” e causaria “um genuíno atentado contra o Estado Democrático de Direito no seu viés de aplicação de políticas públicas prevista na Constituição Federal, não sendo a violência a forma adequada e legal para solução de lides”.
Os seis adolescentes foram encaminhados à Fundação Casa e não há detalhamento se os sete adultos permaneceram na carceragem até a audiência de custódia. O boletim de ocorrência não informa se os policiais usavam câmeras nas fardas nem consta solicitação de imagens por parte do delegado.
A advogada Maíra Pinheiro, que acompanhou a ocorrência na delegacia e os depoimentos de ao menos cinco jovens que foram liberados pois não estariam portando nenhum dos objetos, disse que o enquadramento de associação criminosa e de tentar abolir de forma violenta o Estado Democrático de Direito são tentativas de criminalizar o direito ao protesto.
“É uma forma que as polícias têm de punir esses jovens pelo mero fato de eles estarem fazendo manifestação. Todas as vezes que eu acompanhei em delegacia, sem exceção, presenciei falas individuais de policiais que expressam uma rejeição à mera existência do protesto e sempre com o discurso de que é um ‘bando de vagabundo’ que não faz nada, não trabalha, que não tem o que fazer, que está lá na rua para destruir o patrimônio e bater nos policiais, que coloca a vida dos policiais em risco. É sempre marcado esse estigma que por sua vez cria um ciclo vicioso de animosidade porque é uma forma muito agressiva de lidar com o protesto”, afirma.
Segundo ela, o ambiente na delegacia estava “hostil” e que, por estar atuando de forma voluntária, não conseguiu acompanhar a situação de todos, sendo que foram chamados familiares dos adolescentes. Ela aponta que, pelo o que conversou com os detidos, parte se conhecia e outros não, sendo que o delegado e os escrivães, de acordo com ela, tentavam buscar vínculos entre si nos depoimentos para configurar o crime de associação criminosa.
“Tem um adolescente que foi levado junto que estava em situação de rua, viu a movimentação para ir ao protesto, queria ver o que estava acontecendo e acabou sendo levado junto. Estava numa situação vulnerável, ninguém achava contato da família”, disse. Esse seria o adolescente negro que estaria, segundo a polícia, com um isqueiro, um soco inglês adaptado, uma lata de spray e um “objeto metálico diverso” que não é especificado.
Portar esse tipo de objeto, explica a advogada, não é crime. “É uma tática usual da Polícia Militar do estado de São Paulo especificamente em relação ao Movimento Passo Livre de adotar essas ações, de tentar sabotar a saída da manifestação através da realização de abordagens e aí sempre tem essa tônica da busca dos ‘objetos proibidos’, que é uma categoria bastante ampla, que vai desde uma garrafa, uma máscara contra Covid, uma camiseta que usou para cobrir o rosto, o vinagre que podem estar relacionados com autoproteção, autodefesa e que são criminalizados, como faca, estilete. Às vezes é do pessoal que está na manifestação mesmo, às vezes não”, afirma.
No Theatro Municipal, a conduta da PM foi diferente em relação a um rapaz que estava portando um soco inglês improvisado e um nunchaku, um tipo de bastão de madeira. A reportagem foi impedida de acompanhar a busca pessoal dele e de outro rapaz que estariam sem documentos. Ali, o capitão De Lucas propôs não levá-lo à delegacia para uma possível investigação de abolir violentamente o Estado Democrático de Direito se permitisse apreender os objetos, o que foi aceito pelo rapaz. No momento, além da Ponte, diversos fotojornalistas também acompanhavam a abordagem.
Antes mesmo da concentração, eu, que passei a registrar as revistas pessoais, tive a mochila revistada pela soldado Letícia, que estava ao lado do capitão De Lucas e perguntou quem eu era, apesar de estar identificada como jornalista. A justificativa da policial foi “por segurança”, apesar de nenhum outro jornalista ter sido revistado, já que fui perguntar aos colegas se passaram pela mesma situação. Meu intuito, além de registrar a ação da polícia, que é pública, era de questionar os critérios da abordagem, pois nem todos os manifestantes foram alvo de revista.
Também flagramos parte dos policiais da Força Tática e da Ronda Ostensiva Com Apoio de Motocicletas (Rocam), que estavam portando escudos e balaclavas no rosto, sem a identificação obrigatória na farda. Apesar de questioná-los, não me responderam. Comuniquei o tenente Lucas, que estava atuando como representante da assessoria da PM para a imprensa, que disse que iria verificar, mas toda a caminhada, ainda que sob chuva, aconteceu com esses PMs sem identificação.
A maioria dos policiais também não usavam câmeras nas fardas. Estavam presentes, além do 7º BPM/M, policiais do 13º BPM/M, 7º Batalhão de Ações Especiais de Polícia (Baep), Força Tática, Tropa de Choque, Cavalaria e Rocam. Ao questionar o capitão De Lucas, ele disse que não havia equipamento suficiente para todos os policiais.
A caminhada do protesto aconteceu pacificamente, saindo por volta das 18h40 do Theatro Municipal sob forte chuva, seguindo pelo Largo do Paissandu, pela Avenida Ipiranga até a estação Higienópolis-Mackenzie, na Rua da Consolação. Ali, a PM impediu que os manifestantes fizessem queimassem uma catraca como forma simbólica da luta pelo passe livre que o MPL faz em todos os encerramentos de protesto.
Foi feito um jogral em que chamavam para a próxima manifestação, marcada para acontecer no dia 18 de janeiro, às 17h, na Praça da República, na região central.
O que diz o governo
A Ponte questionou os procedimentos da PM no ato além da condução dos detidos à delegacia. A Fator F, assessoria terceirizada da Secretaria de Segurança Pública, enviou a seguinte nota:
Sete pessoas, de 23 a 21 anos, foram presas e seis adolescentes, de 16 a 17, foram apreendidos por associação criminosa, na noite desta quarta-feira (10), às 18h, na Praça da República, no centro da Capital. Policiais militares atuavam preventivamente na região, acompanhando uma manifestação, quando se depararam com o grupo encapuzado e utilizando máscaras. Realizada a abordagem, com os detidos, foram localizadas e apreendidas diversas armas brancas, tais como facões, facas, socos inglês, canivetes, além de sprays e gasolina. Os aparelhos celulares dos envolvidos também foram apreendidos. Todos ficaram à disposição do Poder Judiciário. O caso foi registrado como associação criminosa e corrupção de menores no 3° DP (Campos Elíseos). A Corregedoria da PM à disposição para receber denúncias relacionadas aos procedimentos adotados pelos policiais durante a ação. Caso seja comprovada alguma irregularidade, todas as medidas necessárias serão tomadas.