Mulher afirma que se sentiu coagida a permitir a entrada da polícia na casa dela, na zona norte da capital fluminense; especialistas apontam que mandado não é único requisito
A jornalista Mariane Del Rei, 34 anos, instalava um chuveiro no banheiro de casa com o filho de 17 anos, que tinha chegado mais cedo da escola por causa da semana de provas. Por volta das 11h de quinta-feira (29/6), ouviu um barulho na maçaneta da porta, como se alguém estivesse forçando a entrada no apartamento em que moram, localizado entre os bairros de Anchieta e Pavuna, na zona norte do Rio de Janeiro. A tentativa virou um murro. Em seguida, o aviso: “É a Polícia Militar”.
“Do jeito que eu estava, eu fui atender. Estava de roupa íntima, de sutiã, eu abri a porta e o policial falou ‘bom dia, eu posso entrar no seu apartamento para revistar?’. Numa hora dessas, a gente fala o quê? Pode, né?!”, conta Mariane. Segundo ela, um PM entrou na sua casa com pistola em punho, abaixada, com o dedo no gatilho. Sem mandado, ele olhou todos os cômodos do espaço enquanto outros dois policiais ficaram na porta. “Em nenhum momento ele disse por que estava revistando meu apartamento, o que estava procurando, por que aquela abordagem”, prossegue Mariane.
A jornalista também aponta que, ao pedir para ir ao quarto colocar uma camiseta, o policial passou a questionar o filho dela sobre onde estudava, quantos anos tinha. “Aí eu intervi, falei que era a mãe dele, que ele era estudante”, relata. Além do garoto, ela mora com a mãe há oito anos no edifício. “Como eu moro no entorno do Complexo do Chapadão, é uma área de risco, porque há uns dois anos o tráfico veio para cá”, diz.
Mariane afirma que, pela forma da abordagem, não conseguiu identificar o nome dos PMs ou o batalhão que integravam. Ela disse que tem medo de formalizar uma denúncia pela possibilidade de represálias. “A gente vive num estado genocida. Se grandes pessoas são assassinadas [em referência à vereadora Marielle Franco], imagine a gente: eu, mãe solo, negra e periférica”, desabafa.
De acordo com o delegado da Polícia Civil do Rio Orlando Zaccone, a ação do policial não é considerada ilegal, já que a jornalista autorizou a entrada no local e isso é previsto no artigo 5º da Constituição Federal. A determinação é de que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”. “Se o morador autoriza, não precisa ter documento nenhum”, aponta.
O coronel da reserva da PMERJ (Polícia Militar do Rio de Janeiro) Robson Rodrigues segue a mesma linha de análise, mas pondera que deve haver um motivo para a entrada. “Um requisito para entrar na propriedade de alguém é o mandado. Mas não é o único”.
A reportagem questionou se pelo fato do policial ter esmurrado a porta e estar com a pistola na mão se configuraria coação. “Se a moradora autorizou, isso não vai caracterizar uma coação porque ele estava em operação. Não digo que concordo, mas se ela quiser levar em juízo, o ordenamento jurídico não vai entender como coação, porque o policial trabalha com arma, ele estava fardado e ela sabia disso. Parte da função dele portar uma arma”, explica Zaccone.
Rodrigues explica que, se houve coação, caberá à vítima provar isso. “Ela vai ter que se recorrer da justiça, apresentar as provas, dar o testemunho, porque aí pode ser entendido pelo juiz que houve, por exemplo, abuso de autoridade, que é quando o agente do Estado extrapola no seu direto e, mediante ameaça, requer uma autorização”, afirma. O coronel da reserva também sugere que Mariane, que relatou temer represálias caso formalize a denúncia na polícia, procure diretamente o Ministério Público, que deve fiscalizar a atividade policial.
O delegado da Polícia Civil do Rio Orlando Zaccone destaca que há uma diferença que precisa ser considerada na atuação da polícia em zonas periféricas e que a intervenção federal intensifica as operações militarizadas nessas regiões. “Muito desses consentimentos são levados pelo temor. Esse tipo de autorização não se dá em área nobre. Um policial não vai entrar com arma em punho num condomínio de luxo”, argumenta.
Outro lado
À Ponte, a assessoria de imprensa da PMERJ (Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro) encaminhou um comunicado do CML (Comando Militar do Leste) de que foi realizada na manhã da última quinta-feira (29/6) uma operação policial comandada pelo Comando Conjunto, em apoio à Secretaria de Segurança Pública, nas comunidades do Chapadão e da Pedreira. Para a ação, disse que foram empregados 5.400 militares das Forças Armadas, 80 policiais militares e 100 policiais civis, com apoio de meios blindados, aeronaves e equipamentos de engenharia.
No texto, informou que a ação envolveu “cerco, estabilização dinâmica da área e desobstrução de vias. São realizadas revistas de pessoas e de veículos”. Segundo a corporação, sua tropa cooperou com estabilização da área e bloqueio de algumas vias das comunidades e que a Polícia Civil realizou “checagem de antecedentes criminais e cumpre mandados judiciais, condicionada às restrições constitucionais à inviolabilidade do lar”.
A nota diz ainda que a operação foi “deflagrada no contexto das medidas implementadas pela Intervenção Federal na Segurança Pública”, mas não explicou a finalidade. “As pessoas direta e indiretamente beneficiadas por esta operação compreendem não apenas os moradores das comunidades nas quais ela se desenvolve, mas também os cidadãos que residem, trabalham ou transitam pelos bairros vizinhos, totalizando cerca de 1.260.000 pessoas”. A PMERJ disse que a jornalista precisa procurar a Corregedoria para poder tomar as medidas cabíveis, caso tenha se sentido coagida.
A reportagem entrou em contato com o CML para questionar o relato de Mariane, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.