Soldado Felipe Nunes alegou que deu um disparo acidental porque Tiago Batan, de 27 anos, o agrediu e pegou sua tonfa, mas vídeo de câmera de segurança desmente versão; caso aconteceu em fevereiro, na cidade de Paraibuna
Os familiares do ajudante geral Tiago Henrique de Oliveira Batan, de 27 anos, ainda estão muito abalados após terem visto filmagens que mostram como o jovem foi morto em uma abordagem policial que aconteceu em 11 de fevereiro de 2024, durante o carnaval de rua em Paraibuna, cidade que fica a pouco mais de 100 quilômetros da capital paulista.
“A mãe do Tiago tenta se apegar a fé, ainda mais que ela era o último dos três filhos que ainda morava com ela em casa”, comenta o advogado Eduardo Camargo, que representa os parentes. “Desde os nove anos de idade, ele trabalhava com o irmão como ajudante geral para montar e desmontar as barracas da feira.”
Na última sexta-feira (26/4), o soldado Felipe Nunes dos Santos foi preso preventivamente (por tempo indeterminado) e virou réu pela morte de Tiago. O juiz Pedro Flavio de Britto Costa Junior acolheu os pedidos do Ministério Público (MPSP) que o acusou por homicídio qualificado com recurso que dificultou a defesa da vítima e emprego de arma de fogo de uso restrito pois usou uma pistola da corporação. Esses são agravantes que podem aumentar a pena do homicídio para 12 a 30 anos de prisão.
O colega de Nunes, o cabo Carlos Eduardo Pedroso, foi acusado por violência arbitrária, por ter participado das agressões contra Tiago. A pena varia de seis meses a três anos de detenção, além da pena correspondente à violência. Ele responde o processo em liberdade.
Os dois policiais estavam trabalhando no patrulhamento das festividades de carnaval. No mês passado, quatro pessoas, sendo três homens e uma mulher, foram ouvidas no inquérito da PM e disseram que os policiais foram chamados porque Tiago estaria alcoolizado e teria iniciado uma discussão com o namorado de uma mulher depois de assediá-la e dito “essa eu queria provar”.
Esse momento não consta nos dois vídeos anexados no inquérito da Polícia Civil, provenientes de uma câmera de segurança do Mercado Municipal e outra da Prefeitura, localizadas próximo à Praça Manoel Antonio de Carvalho. Essas pessoas, que relataram não terem visto o momento do disparo pois deixaram o local assim que os PMs se aproximaram, não foram ouvidas na delegacia.
No vídeo do mercado, é possível ver Tiago, sem camisa, caminhando pela rua. Ele para e vira de costas, parecendo ter sido chamado pelos PMs que estão mais atrás e caminham na direção dele. A câmera do mercado, que é móvel, amplia o enquadramento da imagem até onde os três estão.
Os três aparecem conversando, momento em que Tiago chega a levantar os dois braços para cima, com a camisa em uma das mãos. Nesse momento, o soldado Felipe Nunes bate com a tonfa (um tipo de cassetete) na altura da barriga do jovem. Tiago levanta os braços mais uma vez e Nunes o agride de novo com a tonfa. O cabo Carlos Pedroso também passa a agredí-lo com a tonfa.
É possível ver que Tiago tenta revidar com um soco e a câmera se movimenta novamente em direção a um poste, tirando o campo de visão do que acontece entre os três. A câmera da prefeitura, que está mais diante, mostra que o jovem revida com socos para cima de Nunes.
A câmera do mercado mostra Nunes sem tonfa e pegando sua arma enquanto Pedroso continua batendo em Tiago. Em determinado momento, depois de se afastar, Nunes se aproxima, aponta a arma e é possível ver um clarão do disparo. Tiago cai no chão, próximo ao poste, e ainda recebe mais um golpe de tonfa de Pedroso no braço.
O ajudante geral levou um tiro no peito. Ele foi socorrido pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), mas já chegou morto à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Paraibuna.
No dia, os PMs não se apresentaram na delegacia. Quem relatou a ocorrência na delegacia da cidade foi o policial Ronaldo Alexandre Diniz, que não participou da abordagem. Ele disse, sucintamente, que a dupla foi acionada por populares por causa de uma briga, sendo que Tiago agrediu o soldado Nunes que, por sua vez, “para se defender teria efetuado um disparo com sua arma”.
A pistola que Nunes usou também não foi apreendida na delegacia. Diniz disse que o Comando da PM fez a apreensão. Com Tiago, segundo o policial, havia 2,85 gramas de maconha.
Nunes e Pedroso só foram ouvidos na delegacia quase um mês depois, em 7 de março. O advogado de Nunes, Hamilton Vale da Silva, chegou a pedir ao delegado Rafael Pellizzola da Cunha para que soldado fosse interrogado só depois de terem sido coletadas todas as provas, o que foi negado.
Em depoimento, Nunes relatou que um grupo de pessoas disse que um homem sem camisa estaria chamando os demais para uma briga, mas o orientou a não dar atenção porque teria reconhecido Tiago e, segundo ele, “sabia do histórico de agressividade dele”. O soldado afirmou que, mesmo assim, o grupo teria retornado e dito que Tiago continuava importunando e que assediou a namorada de um deles e, por isso, comunicou ao seu superior que ele o cabo iriam intervir.
Quando foram em direção ao ajudante geral, Nunes disse que Tiago passou a caminhar para se afastar gritando “Vai tomar no cu, não quero falar com vocês não, nem de polícia eu gosto”. Ao realizarem a abordagem, Nunes disse que Tiago “se mostrou ainda mais agressivo” e continuou com xingamentos. Ele disse que, por isso, pediu para o jovem colocar as mãos na cabeça, mas ele não teria obedecido porque “apenas levantou a mão, mas não entrelaçou os dedos” e ainda teria dito que “quebraria quem chamou a polícia e que quebraria os policiais”. Nesse momento, Nunes afirma que, “percebendo uma desobediência, utilizando força moderada, desferiu dois golpes de tonfa”.
Com isso, prossegue o policial, Tiago passou a dar socos e o atingiu no rosto. O cabo Pedroso passou a dar golpes em Tiago para, segundo ele, “estancar as agressões”. Já próximo do muro do mercado, Nunes disse que Tiago conseguiu arrancar sua tonfa e jogar no chão, sendo que, enquanto Pedroso continuava a agredir o jovem, restou a ele “apenas sacar a sua arma, posto que estava sem o cassetete, e ordenar que o implicado parasse com a injusta agressão, pois seu objetivo era conduzir Thiago à delegacia por desobediência e desacato”.
O soldado disse que acabou dando um disparo acidental ao dar um golpe no ferrolho da pistola, que é a parte superior da arma, e que não tinha a intenção de puxar o gatilho. Ele disse que tanto é que não queria disparar que o tiro quase se deu pelas costas do colega, o qual não teria percebido que Tiago foi baleado e ainda deu um golpe de cassetete. Nunes disse ter acreditado que Tiago também poderia ter pegado a arma do colega.
O cabo Carlos Pedroso disse, inicialmente no inquérito da PM, que Tiago tentou tirar sua arma, mas em depoimento à Polícia Civil explicou que fez essa declaração porque Nunes o perguntou se o jovem tinha feito isso e por isso acreditou que o colega tenha visto algum movimento da vítima que não percebeu, já que, no dia seguinte, Nunes disse que disparou acidentalmente e estava arrependido.
O cabo, que deu uma versão praticamente idêntica a do colega, disse que mandou Tiago parar de resistir e que, em determinado momento, o viu cair no chão. Pedroso disse que não ouviu o disparo e não percebeu que o jovem tinha sido atingido, por isso deu um golpe de tonfa. Depois, percebeu que a vítima estava sangrando e acionaram o resgate.
Duas mulheres que passaram pelo local disseram na delegacia que não viram como a situação aconteceu, mas relataram terem ouvido um disparo e que várias pessoas passaram a gritar que foi uma execução e viram Tiago no chão agonizando.
Com base nas imagens, o delegado Rafael Pellizzola indiciou o soldado Felipe Nunes por homicídio qualificado com emprego de arma de fogo de uso restrito ou proibido, em 10 de abril. “Em que pesem os relatos de que Tiago importunava outros foliões e se mostrava agressivo, as imagens, por si só, não revelam uma injusta agressão por parte de Tiago contra os policias, seja atual ou iminente, que permitisse ser repelida. Aliás, as imagens demonstram exatamente o contrário. Enquanto era indagado pela guarnição, Tiago chega a levantar os braços, em sinal de rendição, oportunidade em que é agredido, injustamente, por Felipe Nunes”, argumentou.
Para o delegado, quem agiu em legítima defesa foi Tiago após ser agredido pelos policiais. “Não há que se falar em ‘legítima defesa’ por parte do Policial Militar, pois não se pode invocar a causa excludente de ilicitude contra alguém que age em legitima defesa e, no presente caso, quem tentou afastar injusta agressão foi Tiago Henrique, pois foi agredido com cassetete enquanto estava com os braços levantados”.
A promotora Julisa Helena do Nascimento teve o mesmo entendimento e ainda pediu a prisão de Felipe Nunes ao citar que ele e o cabo Pedroso estão sendo investigados em outros três inquéritos por suspeita de prática de violência, incluindo tortura, agressão, provas forjadas e invasão de residência ocorridas em 2023. Por isso, segundo ela, o soldado poderia ameaçar ou influenciar testemunhas como teria feito com o cabo Pedroso. Ela também acusou o cabo por violência arbitrária, mas não pediu sua prisão.
A representante do MPSP afirmou, ainda, que as denúncias anteriores foram levadas à Corregedoria da PM em Jacareí, que é cidade vizinha e onde os policiais trabalham, mas não houve qualquer providência cautelar para “salvaguardar a ordem pública”. Uma medida cautelar, por exemplo, seria o afastamento dos policiais enquanto a investigação acontece. Para ela, houve “omissão” da corporação que resultou em mais um caso de violência, no caso a morte de Tiago.
“Em evidente excesso no exercício da função, já com a vítima rendida, os denunciados passaram a desferir diversos golpes de cacetete (sic) contra a vítima”, escreveu a promotora. “Não satisfeito, aproveitando-se que Tiago Henrique estava acuado contra o muro, Felipe, certo de sua impunidade, notadamente por se valer de ser policial militar, movido por seu instinto homicida, saca a arma e atira contra o ofendido que é atingido na região superior toráxica.”
De acordo com o advogado Eduardo Camargo, os parentes de Tiago se sentiram aliviados. “Apesar de ter sido divulgado pela PM, pela imprensa local, que o Tiago tinha pegado a arma do policial, a família sabia que o Tiago não tinha feito nada disso porque tinha muitas testemunhas. Apesar da dor que a família ainda sente, a notícia da prisão foi vista como algo positivo e mais um sinal de que a justiça vai ser feita. Essa é a expectativa que eles têm”, disse à Ponte.
O que dizem as defesas
A Ponte procurou o advogado Michel Fermiano, que representa o cabo Carlos Pedroso. Em nota, ele disse que “são improcedentes as acusações oferecidas em seu desfavor” e que isso será demonstrado no curso do processo. “No mais, as referências a procedimentos que apuram supostas práticas de violências anteriores aos fatos narrados na sobredita ação penal se restringem a procedimentos que se
encontram em fase de investigação e apuração, sendo que em momento oportuno o Cabo PM Carlos Eduardo Pedroso se manifestará exercendo seu direito constitucional de Ampla Defesa e Contraditório”, declarou.
A reportagem também contatou, por e-mail, o advogado Hamilton Vale da Silva, que representa o soldado Felipe Nunes, mas não teve retorno até a publicação.
O que diz a polícia
A Ponte questionou as assessorias da Secretaria de Segurança Pública e da Polícia Militar sobre a investigação do caso, o motivo de os PMs não terem se apresentado imediatamente na delegacia, além das denúncias de violência policial que recaem sobre a dupla, mas não houve retorno. Caso se manifestem, a matéria será atualizada.