Discussão com vizinho gerou perseguição policial e o repositor Douglas Bento Martins, 27 anos, foi morto por PMs, no Itaim Paulista (zona leste de SP). Vizinhos, amigos e parentes dizem que ele foi executado e, ao contrário do que dizem policiais, ele estava desarmado e com as mãos para o alto
O repositor Douglas Bento Martins, 27 anos, foi morto por PMs no domingo (14/06). Vizinhos, amigos e parentes dizem que ele estava desarmado e com as mãos para o alto ao ser baleado por PM, no Itaim Paulista (zona leste de SP)
Douglas Bento Martins, 27 anos, estava feliz. Há sete meses, tinha conseguido trabalho em um supermercado. “Com carteira assinada”, dizia aos amigos, orgulhoso. Saía de casa antes das 5h da manhã e voltava depois das 20h. Para terminar de mobiliar o apartamento popular onde vivia com a mulher e a filha, no Itaim Paulista, periferia da zona leste de São Paulo, e reforçar o salário mensal de R$ 923, o repositor precisava fazer muitas horas extras.
Quem convivia com Douglas admirava sua dedicação à filha, Lethycia, 4 anos, e à mulher, Daniela Oliveira dos Santos, 21 anos, vendedora em uma loja de roupas sociais na avenida Paulista . “A menina sempre foi a vida dele”, conta Andreia Severino de Oliveira, 42, sogra de “Alemão”, assim chamado por causa dos olhos e cabelos claros.
Quando não estava recolando mercadorias nas prateleiras do supermercado no Parque Dom Pedro, área central de São Paulo, com a família ou com amigos, Douglas dedicava o tempo escasso que lhe restava ao futebol. Era corintiano, mas não ia ao estádio. Não podia gastar e priorizava dar condições mínimas à filha.
Como praticamente não existem áreas comuns de convivência nos conjuntos habitacionais populares como o da família de Douglas, no início da noite de sábado (14/06), o repositor resolveu levar a filha para brincar com três amiguinhas na porta do prédio. Enquanto as meninas se divertiam como podiam, Douglas as observava de perto.
Salvou a filha
Às 20h, Douglas e as quatro meninas, todos eles com 4 anos de idade, foram surpreendidos por um Escort verde claro. O carro rasgava a rua Ilha da Paz em alta velocidade. Para não perder a filha, Douglas foi obrigado a puxá-la pelo braço, com força, e isso a assustou.
Ao observar o motorista depois que ele estacionou o carro, Douglas percebeu tratar-se de um vizinho do bairro, já conhecido por dirigir de maneira imprudente. De maneira amistosa, segundo vizinhos, Douglas foi até ele disse que muitas crianças brincavam na Ilha da Paz constantemente e que uma tragédia estava prestes a acontecer, caso o dono do Escort não mudasse sua maneira de guiar.
Antes mesmo de terminar a conversa, Douglas foi surpreendido por Ronaldo Pereira Pedro, o motorista do Escort, que o acertou com uma cabeçada na boca. Lethycia e as outras três meninas choraram ao ver a agressão, mas o pai não revidou. Vizinhos viram quando Ronaldo ameaçou Douglas de morte.
Vizinho chamou a PM
Na manhã de domingo (14/06), ainda com a boca machucada, Douglas foi aproveitar parte do dia de folga, os raios do Sol e ficou em frente ao seu prédio. O repositor conversava com alguns amigos quando percebeu a aproximação de um grupo de policiais militares e, no meio deles, estava Ronaldo.
Douglas e seus amigos viram quando Ronaldo os apontou para os PMs, aos gritos. Todos resolveram entrar rapidamente nos prédios onde moram. Não demorou para que o repositor descobrisse ser ele o único alvo dos PMs e isso o deixou desesperado. “Ele pensou que esse homem do Escort [Ronaldo] tinha voltado para cumprir a promessa de matá-lo”, disse Andreia, sogra do repositor.
Tiro de submetralhadora em área residencial
Enquanto corria pelo estacionamento do conjunto habitacional, Douglas era perseguido por cinco policiais militares: cabo Maykon Willian da Silva, sargento Marcos Aparecido Dias e um soldado identificado como Nicolas, da Força Tática do 48º Batalhão da PM, Manoel Alves Ferreira Filho e Nelson Aparecido Calazans Neto, do 29º Batalhão.
Cerca de 15 metros depois de começar a perseguir Douglas, o sargento Dias, de acordo com testemunhas ouvidas pela reportagem, ignorou o fato de que várias crianças brincavam no estacionamento do prédio popular e deu um tiro de submetralhadora calibre .40 na direção do repositor.
Sem ser atingido pelo disparo da submetralhadora, Douglas continuou a correr e pulou um muro nos fundos do estacionamento e chegou a um prédio vizinho. Nesse momento, os PMs Willian e Filho continuavam atrás do repositor, mas não o alcançaram. Douglas gritava “eu só queria defender a minha família!” e “ele [Ronaldo, o motorista da discussão no sábado] disse que ia me matar”.
De cima de um muro, o PM Calazans fez mira e disparou três vezes com sua pistola .40 contra Douglas. Um dos tiros o acertou no lado esquerdo do tórax, perto do coração, e o repositor caiu rente a um muro.
Ali, no chão de terra batida, vermelha, Douglas ficou à espera de socorro médico. Sua agonia foi presenciada por dezenas de moradores, muitos dos quais crianças e jovens. Das janelas, corredores e escadarias dos prédios, dezenas de telefones celulares captaram por cerca de 1h15 a agonia do repositor. Em um desses vídeos, Daniela, a mulher do repositor, é vista ao tentar prestar socorro para ele e sendo retirada por um grupo de PMs do local.
Chute na boca da mulher
Antes de conseguir chegar perto de Douglas, Daniela foi agredida por um dos PMs que haviam participado da perseguição contra o repositor. Ao colocar a cabeça por cima de um dos muros que cercam os prédios populares para tentar descobrir se o homem ferido à bala era seu marido, a vendedora tomou um chute na boca. Vários moradores presenciaram a agressão que, segundo eles, foi cometida pelo cabo Willian.
O irmão de Daniela, um estudante de 17 anos, usou seu telefone celular e gravou o momento em que a vendedora foi agredida pelo PM. Também fez imagens dos PMs agindo com truculência contra um motoqueiro que foi ao prédio onde Douglas estava caído.
Quando estava acompanhando o resgate de Douglas, um PM agarrou o rapaz por trás e o colocou dentro de um carro da PM. Enquanto era detido, o jovem era xingado e acabou obrigado a apagar todas as imagens que tinha feito dos PMs.
O irmão de Daniela só não foi levado pelos PMs porque seus vizinhos começaram a protestar contra a detenção do jovem e ele foi retirado do carro da polícia e libertado.
Demora no socorro
Três moradores do conjunto habitacional afirmaram à reportagem que, por diversas vezes, vizinhos tentaram autorização dos PMs para que o repositor pudesse ser colocado em um carro particular e levado para um hospital. As tentativas foram em vão. Esses moradores pediram que suas identidades fossem preservadas por medo de represália por parte dos policiais.
“Em uma das várias ligações para reclamar pela demora no socorro, a atendente pediu para falar com um policial militar ao telefone. Fomos até os policiais, que observavam calmamente Douglas agonizando, e pedimos para que algum deles falasse, mas todos se recusaram”, contou uma moradora que, com medo de represálias por parte dos PMs, pediu para sua identidade ser preservada.
A todo momento, os PMs diziam que o socorro especializado estava chegando e, nos momentos de maior exaltação dos vizinhos de Douglas, invocavam uma ordem da Secretaria da Segurança Pública sobre a não remoção de feridos por agentes do Estado do local onde foram atingidos _desde janeiro de 2013, a Secretaria da Segurança Pública paulista obriga que pessoas feridas por policiais sejam socorridas primeiro pelo Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) ou outro tipo de assistência de emergência, como a dos Bombeiros.
Somente após 1h15 de espera, de acordo com os vizinhos, amigos e familiares de Douglas, é que os socorristas do Samu chegaram ao prédio onde ele estava ferido e o levaram para o Hospital Geral de Guaianases, distante 10,7 km. O lugar onde o repositor foi baleado pela PM fica a 3,5 km da unidade Itaim Paulista do Hospital Santa Marcelina.
No Hospital de Guaianases, Douglas foi submetido a uma cirurgia, mas os médicos não conseguiram parar a hemorragia sofrida pelo tiro de pistola .40. Ele morreu às 16h30 de domingo.
‘Estava com as mãos para cima’
Em vários dos vídeos gravados pelos vizinhos de Douglas é possível ouvir os gritos de que ele fora morto pelos PMs sem ter oferecido resistência, ao contrário do que disseram os policiais envolvidos em sua perseguição e morte.
“[Douglas] Levantou as mãos e disse que ele só estava protegendo a família dele, que só queria proteger a família dele, só isso. Foi a hora que o policial atirou”, grita uma das vozes, em um dos vídeos.
“Ele não estava armado. Todo mundo viu aqui, ele não estava armado”, grita outro morador.
“Fui a primeira pessoa a chegar onde o Douglas estava caído. Fui lá porque uma criança da minha família estava brincando no térreo e ouvimos o barulho de tiro. Desci rapidamente e as pessoas diziam que a minha criança não foi atingida por um milagre. Quando olhei para o Douglas, só pude vê-lo implorando, agonizando. Dizia não querer morrer”, contou uma vizinha à reportagem. Ela pediu anonimato.
De acordo com os cinco policiais militares que assumiram ter participado diretamente da perseguição contra Douglas, o repositor estava armado com uma pistola .380 mm (nº de série BZG090, marca Glock) e ele teria chegado até a atirar contra os PMs para tentar fugir. Nenhum PM foi ferido no suposto tiroteio.
O carregador da pistola .380 mm tinha oito munições intactas. Os peritos só conseguiram localizar um cartucho de calibre .40 na cena da morte de Douglas, além de um projétil deformado. Havia também uma perfuração parecida com a produzida por arma de fogo em uma parede perto de onde Douglas ficou.
Arma de ex-PM
Ao rastrear a pistola que os PMs disseram ter sido encontrada ao lado de Douglas, quando ele já estava caído e baleado, a reportagem descobriu que ela pertencia a Paulo Henrique Affonso, ex-policial militar no Estado de São Paulo que, em abril deste ano, registrou um boletim de ocorrência de furto em Louveira, no interior paulista, afirmando que sua pistola .380 mm havia desaparecido de dentro de seu carro enquanto ele jogava futebol.
Ônibus queimado
Inconformados com a morte de Douglas, alguns moradores do bairro onde o repositor vivia queimaram dois ônibus municipais na noite de domingo. Nos dois casos, homens até agora não identificados pela polícia pararam os veículos, mandaram passageiros, motorista e cobrador descerem e usaram combustível para incendiá-los.
À reportagem, amigos e familiares de Douglas disseram acreditar que os responsáveis pelos incêndios não eram conhecidos do repositor e que eles, ao saber como a morte aconteceu, resolveram promover os ataques para “chamar a atenção da mídia contra a morte injusta de um pai de família nas mãos da polícia”.
Douglas foi enterrado no Cemitério da Saudade, de São Miguel Paulista, no início da tarde desta terça-feira (16/06). Entre vizinhos, amigos e parentes, cerca de 250 pessoas participaram da cerimônia.
Outro lado
Os policiais militares Maykon Willian da Silva, Marcos Aparecido Dias, Manoel Alves Ferreira Filho e Nelson Aparecido Calazans Neto afirmaram à Polícia Civil que passaram a perseguir Douglas depois que Ronaldo Ferreira Pedro, o motorista que agrediu o repositor na noite de sábado, ligou para o 190 e pediu ajuda.
De acordo com os PMs, Ronaldo afirmou ao telefone que Douglas estava armado com uma pistola .380 mm e o ameaçando de morte. Quando chegaram à rua onde o repositor conversava com amigos, Ronaldo o apontou aos PMs, que começaram a perseguição.
O PM Dias disse que chegou a gritar com Douglas para que ele largasse a arma que estaria empunhando, mas não foi atendido pelo repositor. Os policiais Willian e Filho narraram que Douglas atirou contra eles, mas não os acertou.
Já o PM Calazans, que assumiu ser o responsável pelo tiro que atingiu Douglas, disse à Polícia Civil que só disparou porque “percebeu que sofreria a agressão”.
Os PMs afirmaram também que a pistola .380 mm que estaria com Douglas foi retirada do local onde ele caiu antes da chegada da perícia por causa da demora da chegada dos socorristas do Samu.
“Iniciou-se revolta dos familiares e moradores das adjacências. Por esse motivo a arma usada pelo suspeito, uma pistola marca Glock, calibre .380 mm, municiada, com oito cartuchos intactos, foi removida”, afirmaram os PMs. A pistola foi entregue por eles ao DHHP (departamento de homicídios), da Polícia Civil.
No registro sobre a morte de Douglas consta que ele tinha uma passagem pela polícia por suspeita de tráfico de drogas.
Em pedidos enviados às assessorias de imprensa do secretário da Segurança Pública de São Paulo, Alexandre de Moraes, e do comandante-geral da PM, coronel Ricardo Gambaroni, a reportagem solicitou entrevistas com todos os PMs envolvidos na perseguição que causou a morte de Douglas, bem como os comandantes dos dois batalhões onde eles trabalham, o 48º e 29º. Até a conclusão desta reportagem, não houve retorno.
O Samu informou que recebeu o chamado para prestar socorro a Douglas às 12h23 de domingo e que, como a unidade do posto próximo estava em outro atendimento naquele momento, uma equipe da base de São Miguel Paulista, distante 9 km , foi deslocada para o socorro, chegando às 12h51.
Durante o trajeto, a unidade de socorro foi informada via rádio que precisaria acessar o prédio onde Douglas estava por uma entrada diferente e isso ocasionou alteração no trajeto da ambulância. Ainda segundo os registros do Samu, a equipe que atendeu o repositor saiu do prédio em direção ao hospital às 13h12.
A reportagem não conseguiu localizar Ronaldo Ferreira Pedro, vizinho que agrediu Douglas.
Os pms entregam para a polícia civil uma arma em que os cartuchos estão intactos e alegam que a vítima atirou contra eles. A certeza de impunidade é tão grande que eles não se dão o trabalho sequer de fraudar a situação com um pouco de cuidado. André Caramante continua na linha de frente, acompanhando a tragédia do extermínio da população periférica. Não fosse ele e outros poucos, nem a narrativa dessas mortes estaria escrita. Meus sentimentos aos familiares da vítima. Outra vez.