PM espionou velório de menino, dizem advogados

    Segundo moradores, PMs que mataram Gabriel, 16 anos, aterrorizam bairro atacando jovens com pedaço de pau e até tijolos

    O sepultamento de Gabriel Alberto Tadeu Paiva, 16 anos, que testemunhas afirmam ter sido espancado até a morte com um pedaço de pau por policiais militares, atraiu cerca de 300 pessoas na manhã deste sábado (22/4), ao canto mais humilde do Cemitério Campo Grande, na zona sul de São Paulo, onde as sepulturas são buracos na terra fofa, sem mármore, granito nem tijolos.

    O nome “Gabriel”, o apelido “Biel”, os pedidos de “justiça!” e a pergunta “por quê?” foram sussurrados, urrados e soluçados por parentes, amigos e vizinhos do menino, enquanto os coveiros cobriam de terra o caixão doado por uma vaquinha de conhecidos e deixavam ali uma pequena lápide, comprada por ex-professores de Biel.

    Roger acompanha o enterro do irmão Gabriel | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    “Olha só que bagulho bonito: o povo acordando por causa de um policial corrupto que matou o meu irmão”, saudou Roger Paiva, irmão do menino morto, diante da pequena multidão. Ele era um entre dezenas de jovens a vestir uma camiseta branca com a foto sorridente de Gabriel e a inscrição SAUDADE ETERNA. Pouco depois do Pai-Nosso e da Ave-Maria, uma menina desmaiou à beira da sepultura. Era dor demais, estampada onde quer que se olhasse.

    Nem todos os que assistiram ao enterro, porém, ficaram tão comovidos, a julgar pelo relato do advogado Ariel de Castro Alves, coordenador da Comissão da Criança e do Adolescente do Condepe (Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humana de São Paulo). Ele conta que, no final do sepultamento, ouviu seu nome sendo mencionado por um homem que falava ao celular. “O doutor Ariel está aqui, num terno marrom, tem também os irmãos do menino, a mãe, a imprensa…”, dizia o homem, conforme o relato de Castro. “Suspeito que ele era um P2 [policial disfarçado do serviço secreto da PM], afirma o advogado.

    Parentes carregam caixão do menino de 16 anos | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    Castro relata que se aproximou do homem que falava ao celular e perguntou se era parente ou amigo de algum falecido. O homem respondeu que não, acrescentando que estava esperando pelo pai, com quem teria combinado de se encontrar no cemitério. Mal terminou de falar, foi embora dali. Uma foto mostra o encontro:

    Suposto PM (à esquerda) é abordado por Ariel de Castro, do Condepe

    O advogado Sidney Luiz da Cruz, diretor adjunto da subseção Santo Amaro da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), em conversa com Castro, concordou com a possibilidade de o homem ser um PM disfarçado.

    “A PM infiltrou um P2 no velório de Gabriel Paiva?”, perguntou ontem a Ponte para a Secretaria da Segurança Pública (SSP) e a Polícia Militar, enviando a foto acima como anexo no e-mail. A resposta, enviada no mesmo dia pela CDN Comunicação, empresa responsável pela assessoria de imprensa da SSP, não disse que sim, nem que não:

    A Polícia Militar esclarece que pela imagem não há como identificar o homem como policial.

    “Vou ter que lavar o sangue da viatura”

    Iraide ampara a mãe de Gabriel, Zilda Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    Os policiais militares Arivaldo Bavaresco Junior, 35 anos, e Rogério de Siqueira Candelária, 21 anos, do 22º BPM/M (Batalhão de Polícia Militar Metropolitano), apontados como possíveis suspeitos de terem espancado Gabriel na noite do último domingo (16/4), estão sendo investigados por um inquérito policial militar instaurado pelo comando do batalhão, com o acompanhamento da Corregedoria da PM.

    Oficialmente, nenhum deles é considerado suspeito de crime. No boletim de ocorrência registrado no 80º DP (Vila Joaniza) logo após o espancamento do menino, os policiais declararam que haviam apenas socorrido Gabriel. Encarregado do inquérito criminal, o 80º DP só vai começar as investigações amanhã, por falta de equipe.

    Amigos rezam Pai-Nosso no enterro de Gabriel | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    A SSP informou que afastou os PMs suspeitos do policiamento de rua para funções administrativas. Mesmo assim, moradores do Jardim Domitila, na região de Cidade Ademar (zona sul), contam que viram uma dupla de PMs rondando o bairro em um carro civil, com o objetivo de intimidar possíveis testemunhas do crime.

    Quem mora no bairro conta histórias aterrorizantes sobre a atuação dos policiais militares na área. Uma dupla de PMs é conhecida por andar com tijolos dentro da viatura para jogá-los em motoqueiros que encontram pelo caminho. Os mesmos policiais também costumam levar um pedaço de madeira semelhante a um cabo de enxada para espancar os moradores. Um vídeo gravado por moradores supostamente mostra um desses ataques a pauladas:

    Na noite do último domingo, no Jardim Domitila, os PMs voltaram a atacar, usando tijolo e madeira contra um grupo de cerca de 50 adolescentes que fumavam narguilé diante de uma tabacaria. Gabriel era um deles.

    Segundo o relato das testemunhas, uma viatura se aproximou dos jovens e atirou um tijolo em um motoqueiro que passava pela rua. O rapaz que estava na moto conseguiu escapar e saiu dali. Dois policiais, então, desceram do carro, olharam para o grupo de adolescentes na rua e deram o recado: “Vocês não vão correr, não?”.

    Meninos e meninas saíram correndo, em pânico, para suas casas. “A gente não foge quando vê a polícia, só corremos porque eles mandam”, explica o estudante Nicolas Casais Pereira, 19 anos.

    Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    Gabriel não conseguiu escapar. Segundo testemunhas, os policiais o atacaram pelas costas em um beco próximo à Rua Antonio Benedito Palhares e o golpearam na cabeça com o mesmo pedaço de pau que já tinha fama no bairro.

    Os PMs deixaram Gabriel sobre um poça de sangue, no chão, ao lado de uma caçamba de lixo, e entraram na viatura. Antes que fossem embora, foram impedidos por uma mulher, que gritou para eles: “o menino está vivo, vocês não vão socorrer?”. A dupla voltou e jogou o menino dentro do carro — e ali, segundo os relatos, agrediram novamente Gabriel antes de levá-lo ao Hospital Regional de Pedreira.

    Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    No pronto-socorro, os PMs disseram para familiares e amigos que o adolescente havia batido a cabeça numa caçamba e ainda zombaram da situação. Diante de um dos irmãos de Gabriel, um policial reclamou que o menino havia sujado seu carro: “Olha o que seu irmão fez com a minha viatura, agora vou ter que lavar esse sangue”, teria dito.

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    “Ele só fazia a gente a dar risada”

    Amigo de Gabriel, Nicolas contou, durante o velório, que se agarrava às boas lembranças deixadas por ele para evitar as lágrimas. “Tenho certeza que o Gabriel lá em cima está dando risada com essa homenagem que damos para ele”, disse. “O Gabriel era um moleque que só fazia a gente dar risada. Pode ver as fotos, os vídeos dele: é só ele rindo. Um moleque que você não via bravo, não guardava rancor de ninguém e nunca fez ninguém chorar”.

    Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    De tão brincalhão, às vezes irritava os professores com suas piadas. “Mas eram problemas de infantilidade de pré-adolescente. Ele era um menino dedicado, passava os dias fazendo trabalho com os colegas”, lembrou Iraide Ribeiro, coordenadora pedagógica da escola municipal Antenor Nascentes, onde Gabriel concluiu o ensino fundamental no ano passado. “Ele não era bandido, era o nosso anjo Gabriel”, concluiu, abraçando a mãe do menino, Zilda Regina de Paiva, 46 anos, as duas entre lágrimas.

    Houve muitas lágrimas no Campo Grande, ontem, pelo menino que nunca havia feito ninguém chorar. Zilda fez questão de dizer, contudo, que sua dor só não era maior do que a vontade de lutar pela punição dos assassinos de Gabriel. “Meu sentimento maior é de justiça pela causa que eu vou abraçar agora. O Gabriel morreu por essa causa. Estava acontecendo tanta coisa nesse bairro e ninguém falava nada”, disse.

    Nos momentos de desespero, quando Zilda gritava “tiraram a vida do meu bebê”, Iraide tentava consolar a mãe de Gabriel com a promessa de justiça. “Calma, eles vão pagar”. E repetia: “eles vão pagar”.

    (Atualizado às 21h – A reportagem havia informado que a foto do suposto P2 havia sido tirado pelo advogado Sidney Cruz. Posteriormente, em contato com a reportagem, ele esclareceu que a imagem foi fornecida por um parente de Gabriel.)

    Foto: Daniel Arroyo/Ponte
    Foto: Daniel Arroyo/Ponte
    Foto: Daniel Arroyo/Ponte
    Foto: Daniel Arroyo/Ponte

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