PM expulsa policial que fez textos contra Bolsonaro e com críticas à corporação

Comando paranaense considerou que aspirante a oficial Martel Del Colle praticou graves violações à imagem da polícia; aposentado compulsoriamente e com depressão, policial afirma que vai recorrer

Martel Alexandre Del Colle foi autor do texto “Ele não porque eu sou policial”, que viralizou em 2018 | Foto: reprodução/Facebook

Atenção: esta reportagem trata de saúde mental, depressão e pensamentos suicidas – que podem gerar gatilhos. Caso você não esteja bem e precise conversar com alguém, a Ponte recomenda entrar em contato com o Centro de Valorização à Vida (CVV), que funciona 24 horas e pode ser acionado através do telefone 188 (ligação gratuita) ou neste site, ou uma unidade mais próxima de saúde que você pode encontrar por meio do Mapa Saúde Mental.

A Polícia Militar do Paraná decidiu excluir das fileiras da corporação o aspirante a oficial aposentado Martel Alexandre Del Colle, 31, por causa de 11 textos que escreveu e um vídeo, todos críticos sobre a polícia e contra a candidatura de Jair Bolsonaro à presidência. A determinação foi publicada em 24 de setembro, mas Del Colle afirma que só ficou sabendo na última semana.

A expulsão se deu por meio de um procedimento administrativo disciplinar em que três oficiais que integram o Conselho de Disciplina entenderam que o PM fez “diversas e graves imputações” à corporação e “incitou policiais militares a descumprirem ordens superiores”. O comando concordou com o conselho ao alegar que Del Colle praticou “violação dos preceitos de honra pessoal, pundonor militar e do decoro de classe” e que “à vista da gravidade da conduta do acusado outra não poderia ser que não a exclusão das fileiras da Corporação, sob pena de se chancelar a ilegalidade e a prática delituosa no círculo policial militar”. Essas infrações estão previstas tanto na legislação estadual da PM paranaense quanto no regulamento disciplinar do Exército, na relação de transgressões.

Del Colle diz que vai recorrer da decisão. “É um símbolo que a polícia deixa de que, dependendo do tipo de questionamento que você fizer, é isso que vai acontecer com outros policiais, é uma forma de restringir a liberdade de expressão”.

Os conteúdos que incomodaram a corporação foram publicados no portal Justificando e no canal que ele mantém no YouTube. Em um dos textos, por exemplo, o policial critica a PM por agir como uma polícia de governo. “Uma polícia de governo cria estratégias para controlar o povo e não teme usar a violência para conseguir tal objetivo. Uma polícia de governo vê o povo como um incômodo, como um inimigo, como uma ameaça”, sustenta em sua argumentação. Na época das eleições de 2018, Del Colle publicou um artigo que viralizou declarando abertamente que não votaria em Bolsonaro justamente por ser policial. Esse foi o texto que ensejou a abertura de uma sindicância em janeiro do ano seguinte e os demais artigos acabaram sendo acoplados à apuração em seguida. Na época, ele estava lotado no 9º Batalhão de Paranaguá.

Del Colle também responde a uma ação penal na Justiça Militar aberta em 2019 após o promotor Misael Duarte Pimenta Neto oferecer denúncia pelo crime de publicação ou crítica indevida, previsto no artigo 166 do Código Penal Militar, por causa de oito desses 11 artigos. Esse processo ainda está em tramitação e não teve uma sentença.

Dois meses depois da acusação, em dezembro de 2019, Del Colle foi aposentado de forma compulsória por invalidez aos 29 anos no âmbito da sindicância que apurava indisciplina e suposto crime militar e que é independente da ação na Justiça Militar. O laudo feito pela Junta Médica Militar, de abril de 2019, recomendava a reforma (aposentadoria) proporcional e atestava que o policial tinha quadro de depressão recorrente, mas que “não seria possível estabelecer relação de causa e efeito ao serviço militar”. O aspirante a oficial ingressou na corporação aos 18 anos e desde 2015 fazia tratamento psiquiátrico.

O Código da Polícia Militar do Paraná prevê, entre alguns requisitos, que o policial poderá ser reformado e receber aposentadoria integral se atingir a idade limite de permanência na reserva (quando ainda pode ser convocado a exercer atividades na polícia) ou se for julgado definitivamente incapaz de exercer a profissão. Na parte da reforma por invalidez, há os critérios de: por ter recebido ferimentos em campanha, ou quando em serviço de manutenção da ordem pública; em consequência de acidente sofrido em serviço ou instrução; e quando acometido de tuberculose ativa, alienação mental, neoplasia maligna, cegueira, lepra, paralisia, cardiopatias irredutíveis e reumatismo crônico deformante.

Del Colle recebe cerca de um terço do que ganhava na ativa após a decisão da reforma por invalidez. “Se a causa não for relacionada ao trabalho, então a aposentadoria é parcial relacionada ao tempo de serviço”, aponta. “Só que a depressão é sempre multifatorial e eles usaram isso para dizer que eu não receberia [aposentadoria] integral”, critica.

Com isso, ele afirma ter dificuldade de conseguir manter o tratamento, já que os medicamentos antidepressivos são caros e precisa da ajuda da família. “Como também não reconheceram que a depressão tem relação com o trabalho, a corporação também não custeia os remédios que eu preciso tomar”, lamenta o policial. No Código da Polícia Militar paranaense, na parte da Reforma, são previstos a assistência médica, odontológica e serviços de farmácia.

Del Colle tem diagnóstico de depressão grave sem sintomas psicóticos e atualmente faz uso de cloridrato de bupropiona e succinato de desvenlafaxina monoidratado, cujo custo médio mensal é de R$ 197. Antes, ele afirma que fazia a combinação do cloridrato de bupropiona com o vortioxetina, mas não conseguiu mais pagar pelo remédio. “A caixa saía na faixa de R$ 500 e o remédio me ajudava bastante, não tinha como comprar mais, e eu parei tomar, tive uma crise suicida, minha família conseguiu me manter vivo, então pedi para a psiquiatra fazer uma combinação mais barata”, afirma.

Ele enviou um pedido à Farmácia Popular da Secretaria Estadual de Saúde com o intuito de receber os medicamentos pelo SUS (Sistema Único de Saúde) e recebeu como resposta de que não seria possível porque o remédio não está padronizado, ou seja, não tem.

Na lista de 2020 da Rename (Relação Nacional de Medicamentos Essenciais) do Ministério da Saúde, apenas o cloridrato de bupropiona consta. Essa é a relação de medicamentos que podem ser fornecidos no SUS. No site da Secretaria de Saúde do Paraná, em que é possível consultar os remédios disponibilizados pela pasta, nenhum deles aparece nem a CID (Classificação Internacional de Doenças) da depressão de Del Colle.

De acordo com o psiquiatra integrante do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes, ligado ao Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo e idealizador do projeto Teto, Trampo e Tratamento Flavio Falcone, o SUS não fornece medicamentos para tipos de depressão mais graves. “O que se tem atualmente são remédios para CID de depressão mais leve, como fluoxetina, e que não são tão eficazes, mas por serem mais baratos ainda são fornecidos porque existe um lobby da indústria farmacêutica em que só a elite pode comprar esses remédios mais modernos”, explica. “Infelizmente, o tipo de depressão que mais atinge policiais são os casos mais graves porque envolve toda uma estrutura e um ambiente de pressão e estresse, com baixo salário e sobrecarga de trabalho”.

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Agora, Del Colle não sabe se com a decisão pode ocorrer o corte da aposentadoria. “Tudo o que aconteceu nesses três anos foi um baque grande e a minha depressão acabou piorando bastante e ainda não consigo ter um trabalho fixo porque tenho muitas crises, muita oscilação, então estou tentando me recuperar para ter uma vida após tudo isso”, lamenta.

Após a publicação da reportagem, o movimento Policiais Antifascismo no Paraná emitiu uma nota de repúdio à expulsão e solicita que o comando reconsidere a decisão. “Enquanto há pessoas na função de policiais que abusam de poder em diversos exemplos facilmente verificáveis em redes sociais, inacreditavelmente testemunhamos a mais alta punição a um policial que publicou textos críticos, sim, mas textos que sempre respeitaram a ordem democrática, a autoridade dos Poderes Constituídos, textos que sempre contribuíram com a profunda e necessária reflexão sobre a Segurança Pública que temos e a que desejamos ter”, criticou.

Nota de solidariedade ao camarada MartelO Movimento Policiais Antifascismo mais uma vez se apresenta ao público para…

Publicado por Policiais Antifascismo PR em Terça-feira, 19 de outubro de 2021

O que diz a PM

A Ponte procurou a assessoria da corporação a respeito da expulsão de Martel Del Colle, a reforma por invalidez parcial e a assistência farmacêutica a policiais, mas não houve resposta.

O que diz a Secretaria de Saúde

Questionada sobre a ausência de medicamentos, a pasta encaminhou a seguinte nota:

A SESA PR disponibiliza os medicamentos padronizados na RENAME – Relação Nacional de Medicamentos, de acordo com os critérios de organização dos Componentes Básico, Estratégico e Especializado da Assistência Farmacêutica e com os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas estabelecidos pelo Ministério da Saúde.

Referente aos medicamentos solicitados, temos a informar que a bupropiona é padronizada no SUS somente para o atendimento do tabagismo, sendo alocada no componente estratégico e de aquisição centralizada pelo Ministério da Saúde. Já os medicamentos desvenlafaxina e vortioxetina não são padronizados na RENAME. 

Para o tratamento da depressão estão disponíveis medicamentos no componente básico, ou seja, sob gestão dos municípios. São eles: amitriptilina, clomipramina, fluoxetina, nortriptilina. Cabe ainda esclarecer que a incorporação de tecnologias no SUS, o que inclui a padronização de novos medicamentos, bem como a elaboração de protocolos clínicos é de responsabilidade do Ministério da Saúde, assessorado pela CONITEC.

O que diz o Ministério da Saúde

A reportagem também perguntou à pasta sobre escolha de medicamentos na lista da Rename e padronização da CID para depressão mais grave bem como sobre o fornecimento dos remédios. O ministério encaminhou a seguinte resposta:

O Ministério da Saúde informa que o medicamento cloridrato de bupropiona 150 mg faz parte do rol de medicamento da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename). A aquisição do medicamento é realizada de forma centralizada, exclusivamente, para atendimento ao Programa Nacional de Controle do Tabagismo.

O Sistema Único de Saúde (SUS) oferta atendimento em saúde mental por meio dos serviços da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Com a pandemia, os atendimentos disponibilizados pela rede também passaram a incluir o formato remoto de teleatendimento para acompanhamento dos usuários com transtornos mentais. No aplicativo ConecteSUS, é possível buscar o estabelecimento com atendimento de saúde mental mais próximo de você. Pelo Mapa da Rede de Atenção Psicossocial dá para conferir, também, a lista de estabelecimentos da RAPS que oferecem atendimento em saúde mental no Brasil. A Unidade Básica de Saúde (UBS) também oferece  acolhimento e uma avaliação inicial, para direcionar o tratamento e, dependendo das necessidades de atendimento, encaminhamento para os Centros de Atenção Psicossociais (CAPS), ambulatórios especializados e os demais pontos de atenção da Rede de Atenção Psicossocial (Raps). 

Reportagem atualizada às 10h14, de 20/10/2021.

Atualização às 12h56, de 20/10/2021, após recebimento de nota do Ministério da Saúde.

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