PM fardada cometeu crime ao não ajudar jovem negro vítima de homem armado, diz especialista

Ponte revelou vídeo de jovem sendo perseguido na zona norte de São Paulo, pedindo ajuda a policial, que diz que, por estar ‘de folga’, só poderia “ligar 190 e pedir apoio”; “tinha que ser demitida da corporação”, afirma coronel

A atitude de uma policial militar que chutou um jovem negro e se recusou a ajudá-lo quando estava sendo ameaçado por um homem armado é considerada grave por especialistas ouvidos pela reportagem. A Ponte revelou nesta segunda-feira (13/11) um vídeo que mostra o menino sendo xingado, agredido e coagido, que só não teve o risco de ser baleado baleado porque uma mulher o protegeu em frente à estação Carandiru do metrô, na zona norte da cidade de São Paulo. A policial viu tudo sem intervir e, ao ser questionada por um repórter fotográfico, ameaçou prendê-lo.

“O que a gente percebe é que quem resolveu a ocorrência, quem direcionou a ocorrência, quem não deixou virar uma tragédia foi a mulher daquele cidadão, a esposa, que tinha duas crianças assistindo tudo aquilo, duas crianças que foram constrangidas pela atitude, parece-me, do pai”, avalia Sugar Ray, que é sociólogo e coronel da reserva da Polícia Militar de São Paulo.

“Na minha visão, é um motivo para demiti-la da PM porque ela se omitiu diante de uma situação muito grave, expondo a instituição”, critica José Vicente da Silva Filho, que é coronel reformado da PM paulista e membro do Conselho da Escola de Segurança Multidimensional da Universidade de São Paulo (USP).

Os dois apontam que, por estar uniformizada como policial, ela deveria ter agido, uma vez que estava presenciando uma agressão e ameaça em flagrante. Por isso, ela pode ter cometido o crime de prevaricação, que é quando o funcionário público deixa de exercer seu ofício por interesse pessoal, cuja pena é de três meses a um ano de prisão e pagamento de multa.

“Ela tinha um dever de agir, de proteger aquele menor, independente de ele estar praticando ato infracional. Tinha um dever de deter aquele cidadão, acionar o apoio dos companheiros da Polícia Militar. Enfim, fazer o dever pelo qual o Estado nos delega”, aponta Sugar Ray. “Na minha ótica preliminar, ela prevaricou.”

José Vicente aponta que o gesto da policial de dizer ter que acionar o 190, que é o número da PM, também poderia ser feito, mas não exclui a responsabilidade que ela tinha no momento. “Um policial vendo algum crime, principalmente quando ameaça a vida de pessoas, como é o caso disso aí, o sujeito armado, é obrigado a intervir. Até porque a intervenção tem que ser imediata. A ideia de ‘vou ligar para o 190’, até chegar para a viatura, a viatura vai chegar para levar o policial fazer a intervenção. Só que o policial para a intervenção já está ali, que é ela mesma. É um caso de urgência e gravidade. Então, esses dois componentes praticamente definem a necessidade de intervenção imediata”, explica.

Regulamento Disciplinar da Polícia Militar paulista determina que é dever dos PMs “atuar onde estiver, mesmo não estando em serviço, para preservar a ordem pública ou prestar socorro, desde que não exista, naquele momento, força de serviço suficiente”.

No vídeo, um homem agarra o jovem negro pelo pescoço e o xinga de “filho da puta” diversas vezes. Uma das pessoas presentes diz: “está roubando aí, rapaz”. Enquanto isso, um outro homem saca uma arma, aponta para o garoto e discute com uma moça que gravava a cena na rua. Após ela dizer “se matar eu vou gravar, porque ele não está armado”, o homem armado retruca: “Você defende ladrão?”. 

O homem armado continua cercando o rapaz, enquanto outro o agarra pelo pescoço. Ele está acompanhado por uma mulher, de vestido, e crianças pequenas. É possível ver sangue no rosto do jovem negro. Ele tenta se desvencilhar do homem que o imobiliza, pede desculpas e sai correndo, perseguido e chutado pelo homem que estava armado. A mulher de vestido grita, pedindo calma, e se coloca em frente do menino, diante da arma, gritando: “para, para!”.

Ao acompanhar a ação, o repórter fotográfico se depara com uma PM uniformizada e armada, parada em frente à saída da estação de metrô, vendo tudo de braços cruzados. Quando o jornalista a interpela, a PM responde com um gesto de telefonema, indicando para ligar 190, e continua parada. O repórter se exalta e fala: “serve pra porra nenhuma essa polícia”.

Momentos depois, enquanto as crianças que acompanham o homem armado choram diante das cenas de violência, o jovem negro sai andando ao lado da mulher que o defendeu de um possível tiro. Ela o segura pela mão e diz: “você não vai fugir, não”. 

O menino negro tenta novamente se separar da mulher e do homem armado, dessa vez pedindo ajuda à policial. A PM, no entanto, chuta a barriga do jovem, no mesmo momento em que o homem armado diz “ela está de folga, sai daí, seu tranqueira” e tenta agredi-lo. A mulher de vestido grita: “para, Paulo, guarda essa arma, Paulo, pelo amor de Deus”. Pouco tempo depois o jovem sai correndo. 

Para Sugar Ray, a ação da policial também foi “repulsiva”. “Ela feriu a dignidade da pessoa humana quando ela age daquela forma repulsiva, chutando aquele rapaz. Eu entendo que, na minha visão preliminar como um coronel da reserva, como um sociólogo, a corporação tem o dever de ofício de instaurar um procedimento, oferecendo todo o princípio constitucional de ampla defesa a essa policial, mas deve apurar com toda a imparcialidade, com todo o rigor, uma atitude dessa que não representa jamais o que os nossos policiais militares desempenham diuturnamente no Estado de São Paulo.”

Diante de toda a situação, o repórter que estava gravando o ocorrido questiona novamente a policial que assistiu a tudo sem se mexer. “Vocês servem para quê?”. A policial responde: “Se o senhor falar comigo desse jeito, eu vou te prender”. Os dois discutem e a policial argumenta: “Eu estou de folga, o procedimento é ligar no 190 e pedir viatura”. Pouco depois, ela avança sobre o jornalista e o vídeo acaba.

Para os especialistas, a policial também foi contraditória ao ameaçar prender o repórter, mas dizer que estava de folga ao ver um jovem sendo ameaçado por um homem armado. “Se a senhora [policial] está mencionando desacato, desacato é feito só e estritamente uma autoridade pública. Ela imediatamente acaba endossando a situação dela estar vestida de autoridade, portanto, de serviço”, analisa José Vicente.

Os coronéis apontam que a policial ainda poderia estar cometendo uma transgressão disciplinar por estar de fardamento incompleto, sem colete e sem identificação do nome na camiseta, por exemplo, mas isso precisaria ser melhor apurado.

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Nesta terça-feira (14/11), a Secretaria de Segurança Pública disse em nota que está trabalhando para identificar a policial gravada. “Se confirmado, o caso será tratado como transgressão disciplinar grave, já que o comportamento omisso registrado em vídeo não condiz com as expectativas da sociedade e muito menos com as responsabilidades do profissional de segurança pública, que deve agir prontamente sempre que presenciar um crime, estando ou não em serviço”, declarou.

Sugar Ray destaca a importância da fiscalização da sociedade sobre as ações da polícia. “O celular é um instrumento de defesa, não só do jornalista, mas como do cidadão de bem, para contradizer, para mostrar essas atitudes que a corporação repugna, que a corporação não aceita, até porque nós servimos a sociedade e a corporação como instrumento da sociedade não compartilha com esses procedimentos dos nossos maus profissionais”, afirma.

A reportagem procurou a Ouvidoria das Polícias, mas não teve resposta até a publicação.

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