Corregedoria identificou por meio de GPS que trajeto da viatura contradiz versão de policiais, que pesquisaram carro furtado que vítima dirigia e mentiram sobre horário em que suposto confronto teria acontecido, em Guarulhos (Grande SP)
Policiais militares demoraram 48 minutos para informar a corporação sobre uma suposta troca de tiros em que um homem branco, não identificado, acabou morto com um tiro pelas costas em 14 de dezembro de 2021, na cidade de Guarulhos (Grande São Paulo). A Corregedoria da PM identificou que o trajeto e o horário sobre a ocorrência relatados pelos soldados Deniver Valério dos Santos e Samuel Esdras Ramos de Freitas, da 1ª Companhia do 44º Batalhão Metropolitano, não condiziam com as informações do GPS da viatura.
De acordo com o boletim de ocorrência registrado no 4º DP de Guarulhos, Samuel e Deniver disseram que, por volta das 4h20 daquele dia, estavam em patrulhamento de rotina quando viram um veículo Saveiro transitando pela Rodovia Ayrton Senna, sentido São Paulo, o qual fez uma “conversão abrupta” para o sentido bairro e que o motorista tinha acelerado ao ver a viatura.
Segundo o documento, os policiais teriam decidido perseguí-lo e, na altura da Avenida Marginal com a Rua Recife, o motorista teria desembarcado do Saveiro ainda em movimento munido de uma arma e o carro bateu em um gradil. Conforme o registro, o homem apontou a arma para trás em direção aos policiais militares e se dirigiu a uma ribanceira que dava acesso a uma mureta que isola a rodovia. Como ele ainda estaria apontando a arma para a dupla, o soldado Samuel efetuou um único disparo. Mesmo atingido na região da cintura, pelas costas, o homem ainda teria transpassado a mureta, andado poucos metros e caído. O socorro foi chamado e a vítima levada ao Hospital Geral de Guarulhos, mas não resistiu.
O veículo teria sido furtado quando estava estacionado na garagem do funcionário da proprietária, na Rua Morada Nova, que não tinha portão, apenas uma corrente com cadeado. Ele estacionou o carro por volta das 17h do dia anterior e percebeu o furto na manhã do dia 14 de dezembro e acionou a Polícia Militar, mas não registrou boletim de ocorrência, tendo comparecido à delegacia após ter sido informado sobre a localização do veículo cerca das 6h da manhã. A arma que estaria com o homem que foi morto era uma pistola .40, da fabricante Imbel, que foi extraviada da PM em 2011. Tanto essa quanto a Glock .40 do soldado foram apreendidas para perícia e foi solicitado assessoramento do Setor de Homicídios da Delegacia Seccional do município para apurar o caso. O boletim de ocorrência não esclarece se a arma foi apresentada pelos PMs ou apreendida pela perícia no local. Nos documentos da Corregedoria, que a reportagem acessou, consta que Samuel disse ter recolhido a arma porque o homem baleado ainda estaria com vida.
Na representação de prisão preventiva no âmbito do IPM (Inquérito Policial Militar), o capitão Ronildo Lopes elencou divergências na versão da dupla e também de uma outra equipe que participou do apoio ao caso. A primeira é que os dados de telemetria, que é o rastreamento da viatura, mostraram que Samuel e Deniver chegaram ao local do crime às 3h40, saíram às 4h18 em direção à Avenida Eduardo Sabino de Oliveira, que é paralela, e a percorreram por aproximadamente três minutos. Depois, retornaram ao ponto da ocorrência às 4h21 e só comunicaram a suposta troca de tiros e o pedido de resgate ao COPOM (Centro de Operações da Polícia Militar) às 4h28. Todo esse percurso foi omitido do registro oficial.
A viatura dos soldados Andrew de Souza Melo e Pedro Gabriel Cecílio de Almeida Magalhães, que são do mesmo batalhão, mas da 2ª Companhia que é a responsável pelo território, estavam na Estrada do Caminho Velho, distante a 9,2 quilômetros do local do crime, por volta das 3h40. Porém, sem qualquer aviso à corporação, decidiram ir para o condomínio onde Andrew mora, onde permaneceram por 12 minutos. Depois, a dupla se dirige ao local do crime e para a viatura na Estrada do Moinho Velho por três minutos. Imagens de uma câmera de segurança degravadas no inquérito mostraram o motorista da viatura conversando ao telefone e, em seguida, chega ao ponto da ocorrência às 4h18. Ou seja, Andrew e Pedro fizeram o trajeto e chegaram ao endereço do suposto confronto dez minutos antes sem nem ao menos terem sido oficialmente chamados para prestar apoio. O reforço dessa equipe para a ocorrência só foi informado às 4h45.
A Saveiro também foi monitorada por satélite na apuração. “Ao analisar os deslocamentos do veículo civil, é seguro afirmar que a Saveiro parte da Rua da Morada Nova próximo ao número 595 e desloca até o local onde se deu a ocorrência e permanece até as 4h e 14 min, em seguida uma breve movimentação de dois minutos, possivelmente para encenar o acompanhamento e confronto, ou seja, o veículo Saveiro esteve o tempo todo no local”, escreveu o capitão responsável pelo inquérito ao apontar que o soldado Deniver se contradisse, em um terceiro depoimento à Corregedoria, de que o carro teria fugido por volta das 3h30.
Além disso, identificaram que Samuel e Deniver pesquisaram os dados da Saveiro no sistema do COPOM online às 3h36, ou seja, 52 minutos antes das supostas perseguição e troca de tiros, mas ainda nada constava sobre o furto. O capitão Ronildo Lopes também estranhou que o homem tenha empregado arma de fogo em um crime de furto, que é configurado por ocorrer sem violência ou grave ameaça – diferente do roubo.
Ao solicitar a apreensão dos celulares dos quatro, Samuel ainda teria dito que não estava mais em posse dele, o que, para o capitão, dificultava “a análise da lisura da ação policial”. Como os trajetos e horários originais foram mascarados, ele pediu a prisão preventiva dos soldados por suspeita de cometimento dos crimes de homicídio doloso, fraude processual, falsidade ideológica, descumprimento de missão, organização de grupo para prática ilegal de violência e porte ilegal de arma, todos do Código Penal Militar.
A prisão foi acatada pelo juiz Ronaldo João Roth, em 18 de dezembro do ano passado, mas os quatro policiais militares acabaram soltos após a deliberação de um habeas corpus em 13 de janeiro, conforme publicação de sábado (15/1) do Diário Oficial do Estado.
O que diz a polícia
Questionamos o andamento das investigações tanto na PM quanto na Polícia Civil à Secretaria da Segurança Pública, além de se a vítima já ter sido identificada, se o 44º BPM/M usará câmera na farda e pedimos entrevistas com os soldados envolvidos.
A Ponte procurou os defensores dos policiais militares. O advogado Renato Ramos da Silva, que representa Pedro Gabriel Magalhães, disse que não se manifesta sobre os autos que atua.
Os advogados Leonardo Augusto Barbosa de Camargo, que representa Samuel e Deniver, e Matheus Mariano Moreira de Sousa, que defende Andrew Melo, não retornaram os contatos. Caso se manifestem, a reportagem será atualizada.