PM mata jovem negro e causa madrugadas de pânico em comunidade de Florianópolis

    Moradores da favela do Siri relatam que vítima estava desarmada e rendida. PM-SC diz que jovem era suspeito de tráfico e alega confronto, mas não apreendeu drogas com ele nem soube dizer se estava armado

    Policiais teriam chegado já atirando e a partir de área de duna que cerca a favela do Siri, no Norte de Florianópolis | Foto: Arquivo pessoal

    Um jovem negro de 19 anos foi morto pela Polícia Militar de Santa Catarina (PM-SC) na madrugada de sábado (5/4) na favela do Siri, em Florianópolis (SC), no que os moradores dizem ser o terceiro caso de execução no local em menos de três anos. A vítima fatal do episódio mais recente é Natanael França de Assis. Ele foi morto na Servidão dos Imigrantes, por volta da 1h35.

    Os policiais alegam ter reagido a um ataque a tiros quando faziam patrulhamento de rotina, mas vizinhos relatam que não houve confronto: os agentes teriam chegado de surpresa à comunidade atirando, assim como nos dois casos fatais anteriores. Esse tipo de incursão a tiros da PM-SC têm sido rotina e motivo de pânico aos moradores da favela — na madrugada desta quarta (9/4), houve uma ação policial parecida, mas que não deixou vítimas, com ao menos dois disparos feitos por volta das 4h.

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    A Ponte ouviu dez moradores da comunidade, todos na condição de anonimato. Segundo os relatos, na ocasião da morte de Natanael, policiais chegaram a pé à rua e deram dois tiros de fuzil contra ele e amigos que o acompanhavam. O jovem negro foi atingido na perna quando fazia uma selfie com o celular para enviar à namorada. Os demais conseguiram correr e saíram ilesos. Caído no chão, ele agonizava aos gritos, já rendido e desarmado, quando teria sofrido uma segunda leva de quase dez tiros pelos PMs.

    A favela do Siri é delimitada em quase todos os seus lados pelas dunas dos Ingleses, uma longa extensão de areia e vegetação nativa que atravessa o Norte de Florianópolis. Foi em razão disso que os policiais conseguiram surpreender Natanael: eles teriam chegado ao local pelas dunas. O único acesso de carro à comunidade é pela Rua Ruth Pereira — via que, na outra ponta, desemboca na badalada praia dos Ingleses. Os atiradores teriam desembarcado nessa rua principal, cruzado parte do areal ao fundo das casas e retornado à favela por vielas que ligam às dunas à Servidão dos Imigrantes.

    Favela do Siri, no Norte de Florianópolis, é cercada por areal e vegetação nativa | Foto: Google Earth/Ponte Jornalismo

    PMs impediram socorro, dizem moradores

    Na sequência da rápida ação a tiros contra Natanael, mais policiais chegaram ao local, desta vez dentro de viaturas e por outro caminho que não o das dunas — através da Rua Floresta —, em reforço aos agentes que teriam chegado antes a pé. A operação foi conduzida pelo 21º Batalhão de Polícia Militar (BPM).

    Despertos com o barulho dos tiros, vizinhos em número cada vez maior e em pânico tentaram prestar socorro ao jovem, mas teriam sido impedidos pelos PMs. Os agentes fizeram um cordão de isolamento e ameaçaram os moradores para que não saíssem de casa. Eles atiraram balas de borracha e reprimiram a vizinhança com spray de pimenta — uma moradora precisou buscar atendimento médico pelo mal estar com o gás.

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    A energia na servidão em que ocorreu o assassinato foi cortada, e os policiais empunharam refletores de luz na direção contrária ao corpo de Natanael, mantendo só ele sob escuridão — isso dificultou a visibilidade e impediu gravações com celulares por quem estava distante. Uma ambulância só chegou à comunidade quase uma hora e meia depois, por insistência dos vizinhos: a Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) 24h mais próxima fica a menos de 20 minutos de carro.

    A essa altura, Natanael já estava sem vida, e o veículo do socorro foi embora vazio, sem se aproximar do corpo. No dia anterior ao assassinato, a vítima foi vista mancando na comunidade: ele relatou a amigos que havia sido espancado por policiais militares. Um dos agentes teria lhe dito que estava prestes a ser morto: “Você já está fedendo, com cheiro de morte, só não percebeu ainda.”

    PM-SC abandonou uso de câmeras corporais

    A PM-SC alega que o jovem morto seria suspeito de tráfico de drogas. A Ponte questionou a assessoria de imprensa da corporação se foi encontrado com ele algum entorpecente ilícito ou arma de fogo na ocasião em que foi baleado. Em nota (leia a íntegra ao final), ela não citou apreensão alguma de drogas. A corporação afirmou apenas que “no local, foi apreendida uma pistola calibre 9mm com seletor de rajada e lanterna tática”.

    Em novo contato, a reportagem questionou então se tais itens estavam ou não em posse de Natanael no momento em que foi morto. Em nova resposta, a PM-SC comunicou se tratar de um detalhe que será apurado por meio de Inquérito Policial Militar (IPM). No contato com a reportagem, a PM-SC comunicou ainda que os policiais teriam agido em legítima defesa, após serem recebidos “com disparos de arma de fogo por parte de indivíduos no local”. A reportagem questionou se algum policial foi ferido ou se alguma viatura foi danificada pelos supostos tiros, mas não houve retorno.

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    A PM-SC disse também que os agentes fizeram uso de granadas de efeito moral e de armas não letais contra a população por terem sido recebidos com hostilidade por parte dos moradores, que teriam arremessado objetos — pessoas ouvidas pela Ponte negam isso. Disse ainda que o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) foi acionado, mas que Natanael faleceu no local.

    Os policiais da operação não utilizavam câmeras corporais, já que, em setembro do ano passado, o uso delas foi suspenso pela PM-SC, sob ordens do governador bolsonarista Jorginho Mello (PL) — apesar de, em 2019, Santa Catarina ter sido o primeiro estado do país a adotar o equipamento nas fardas.

    Policiais mantiveram trecho sob escuridão, o que dificultava visibilidade e filmagens com celulares | Foto: Arquivo pessoal

    Terceira execução na comunidade

    A comunidade do Siri já havia tido nesses últimos três anos outras duas mortes em circunstâncias semelhantes, de jovens baleados pela PM em suposto confronto. Nesses casos fatais e também em outros que terminaram sem óbitos mas com jovens feridos, a operação teria sido a mesma, de policiais militares chegando à comunidade de surpresa a partir das dunas dos Ingleses e já atirando.

    Em 13 de maio de 2022, uma incursão de PMs encapuzados a partir do areial aos fundos da favela matou a tiros Gabriel Correa da Silva Piazzolli, um jovem de 19 anos, quase no mesmo ponto em que Natanael foi morto agora. Ele estava junto de amigos em uma rua da comunidade quando se preparavam para ir a uma festa. A PM alegou que teria reagido a um ataque a tiros sofrido também durante um patrulhamento de rotina. No entanto, familiares e vizinhos protestaram na ocasião por entenderem que Gabriel estava desarmado e sem oferecer qualquer risco aos agentes.

    Já em 1º de novembro de 2023, policiais mataram a tiros um adolescente de 16 anos. A alegação da PM à época foi de que ele e um outro jovem, de 20 anos, teriam negado uma ordem de abordagem durante um patrulhamento de rotina à 1h da madrugada e atacado os agentes com tiros, antes de sofrerem um revide — o outro envolvido sobreviveu. Com eles teriam sido apreendidas duas armas, munições e drogas ilícitas. Também houve protesto de moradores na ocasião, negando que tivesse ocorrido confronto.

    Leia mais: SP, RJ e ES põem segurança acima de políticas sociais e gastam mais com policiamento

    Nesses três episódios fatais, a PM-SC repercutiu entre a imprensa catarinense que se tratavam de jovens com antecedentes criminais relacionados a tráfico de drogas, no que seria, segundo os moradores ouvidos pela Ponte, uma tentativa por parte dos agentes de justificar as execuções perante a opinião pública. No caso de Natanael, passou a circular nas redes sociais uma foto em que ele estaria empunhando uma arma, que aparenta ser diferente da que a polícia diz ter apreendido.

    Quem vive ali, no entanto, é categórico em dizer que os jovens envolvidos com tráfico não têm armas de fogo e não oferecem ameaça aos moradores — o medo constante é da Polícia Militar. “Antigamente, eu idolatrava a polícia. Hoje, tenho pavor dela. Eu não tenho envolvimento nenhum com tráfico. Mas quando estoura o foguete aqui na vila, do pessoal avisando que a polícia chegou, você não tem noção da tensão que os moradores ficam. Até quem não tem nada a ver com a situação fica em pânico, porque não sabemos como vão chegar. A gente tem mais medo de polícia do que de bandido”, diz uma moradora.

    Ação policial deixou rastro de tiros da PM-SC em comunidade de Florianópolis, local onde são recorrentes incursões abusivas de policiais, segundo moradores | Foto: Arquivo pessoal

    Moradores contestam “guerra às drogas” e opressão policial

    São comuns batidas policiais abusivas na favela do Siri, com agressões em revistas e invasões a casas sem mandados judiciais. Aos mais jovens, ainda segundo afirmam as pessoas ouvidas pela Ponte, a PM costuma ordenar que desbloqueiem o próprio celular para que seja vasculhado. Quem é mãe na comunidade relata ter medo de que os filhos saiam à noite ou até mesmo corram no meio da rua, pelo risco de serem vistos como suspeitos pela PM e acabarem mortos. Durante as incursões policiais a tiros, mesmo quem está abrigado fica em pânico, já que várias das casas do local são de madeira.

    “Eles acham que os moradores são a favor do tráfico, mas não somos. A questão é que eles [os policiais] querem fazer justiça com as próprias mãos, mas eles têm que chegar, algemar e dar voz de prisão, não matar”, diz uma moradora, que ainda questiona a aparente falta de inteligência das forças de segurança catarinenses na guerra às drogas que dizem combater. “Só que isso não é pela droga, é para exterminar. Aqui no Norte da ilha só tem uma entrada: como que a gente passa sufoco na temporada [de verão] com o fluxo de carro, tudo trancado, um caos, e eles não conseguem controlar a droga que entra?”

    “Aqui tem pessoas que trabalham, tem crianças. Só que a polícia não traz segurança para a gente. Na cabeça deles, somos lixo, somos apoiadores do tráfico. Mas se eles que são a lei não conseguem fazer nada, como a gente vai fazer? Esses meninos que têm envolvimento [com tráfico] respeitam a gente, não nos fazem mal. No Natal, se juntam para fazer festa para as crianças. É tudo guri novo, de cabeça fraca. Mas por que [as autoridades] não vêm aqui com um projeto para terem emprego, para mostrar que existe outro caminho? Para isso, eles não vêm. Eles vêm com sangue nos olhos para matar”, lamenta.

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    A favela do Siri ainda convive com restrições de serviços básicos, como fornecimento de água e energia elétrica, por ser considerada uma ocupação irregular — a realidade ali destoa da vizinhança da região Norte de Florianópolis, que também abriga bairros de classe alta e média alta entremeados em áreas de preservação e vários pontos turísticos, como as praias de Jurerê Internacional e de Canasvieiras.

    “A polícia entra nas nossas casas, nos oprime, nos deixa em pânico. Quem estuda ou trabalha à noite não tem segurança alguma, porque a polícia não entra para fazer o seu papel. Ela entra com ódio e sangue no olho para matar, seja lá quem for. Eles abordam as pessoas de maneira muito agressiva. Não é de hoje isso. A cada ano, morre um jovem, uma vida a menos. Não dão sequer esperança para esses jovens, e a gente é muito mal visto, não temos voz alguma. Queremos justiça e respeito. Não é porque moramos aqui dentro que somos ruins. Ninguém queria passar por isso”, diz uma terceira pessoa da comunidade.

    Além da PM-SC, a Ponte procurou o Ministério Público de Santa Catarina (MP-SC), que tem o dever constitucional de exercer o controle externo da atividade policial no estado. A reportagem questionou se o órgão acompanha o episódio mais recente e se ofereceu denúncia à Justiça contra algum policial em relação aos dois casos anteriores de mortes pela PM na favela do Siri. Não houve retorno.

    Leia a íntegra que do que diz a PM-SC

    A Polícia Militar de Santa Catarina (PMSC), por meio do 21º Batalhão de Polícia Militar (BPM), informa que, na madrugada deste sábado, 5, policiais militares atuaram em uma operação voltada ao combate ao tráfico de drogas no bairro Ingleses do Rio Vermelho, em Florianópolis. De acordo com informações preliminares:  

    1. Por volta das 1h35, as guarnições teriam sido recebidas com disparos de arma de fogo  por parte de indivíduos no local. Diante da agressão, os policiais revidaram em legítima defesa, resultando no alvejamento de um homem (19 anos). O SAMU foi acionado, mas o suspeito não resistiu aos ferimentos e faleceu no local.  

    2. Após o ocorrido, houve relatos de movimentação hostil por parte de moradores, que, segundo registros iniciais, teriam arremessado objetos contra as guarnições. Para contenção da situação e preservação da segurança de policiais e população, foi necessário o uso de elastômero (arma não letal) e granadas de efeito moral.  

    3. No local, foi apreendida uma pistola calibre 9mm com seletor de rajada e lanterna tática. O indivíduo envolvido possuía antecedentes criminais por tráfico de drogas, receptação, associação para o tráfico, posse de munição e tentativa de homicídio, além de mandado de busca e apreensão ativo.  

    4. O Comando do 21º BPM ressalta que todas as circunstâncias serão apuradas por meio de Inquérito Policial Militar (IPM), que avaliará a conduta dos envolvidos e a legalidade dos procedimentos adotados.  

    A Polícia Militar reforça seu compromisso com a transparência e a preservação da ordem pública, atuando sempre dentro dos preceitos legais e em defesa da sociedade.  

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