Médica narra como foi agredida por não entregar dados sigilosos de paciente a PM; gestão Márcio França (PSB) chama agressão de ‘desentendimento’
Edwiges Dias da Rosa, 61 anos de idade e médica há 37, conta, em depoimento à Ponte, o momento mais humilhante da sua vida: a agressão que teria sofrido pelas mãos de um sargento da Polícia Militar, que exigia da médica os dados sigilosos de uma paciente, na noite de 29 de julho, dentro da UPA (Unidade de Pronto Atendimento) Baeta Neves, em São Bernardo do Campo, na Grande SP.
A médica conta que o sargento a agarrou por 20 minutos e acabou atrasando o atendimento a uma outra paciente, uma senhora de 90 anos que, naquele momento, sofria um choque hemorrágico. “O policial colocou essa paciente em risco”, denuncia. Uma semana depois, Edwiges permanece afastada de todos os seus trabalhos, por conta dos problemas de saúde desencadeados pelo estresse de ser humilhada sem justificativa por uma autoridade.
Em nota, o Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) pediu providências e disse que Edwiges “respeitou a conduta ética que rege a profissão e a legislação vigente” ao não entregar o prontuário de uma paciente ao policial. Já a Secretaria da Segurança Pública do governo Márcio França (PSB) afirmou que ocorreu não uma agressão, mas um “desentendimento”, e que a médica “não quis se identificar, mesmo depois de receber ordem legal dos policiais”.
Edwiges Dias da Rosa: ‘Nunca vi uma atitude tão truculenta’
Sou médica desde 1981, formada no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, onde fiz especialização em cirurgia geral. Sou pós-graduanda em várias áreas. Desde 2003 sou concursada como socorrista na prefeitura de São Bernardo. Há 37 anos trabalho como emergencista em pronto-socorro e nunca havia passado por uma situação tão vexatória e humilhante.
Nunca fui abordada dessa forma. Nunca.
No domingo [29/8], assumi o plantão às 19h. Às 22h, meu colega saiu para jantar e havia três pacientes para serem atendidos. Uma era uma senhora acompanhada por um policial, que havia sido agredido pelo marido. Meu colega já a tinha atendido e ela iria retornar comigo. Às 22h15, essa moça terminou o raio-X, eu a chamei na sala e a liberei.
Nas unidades de pronto-atendimento, trabalhamos com uma rotina que é da mesma forma em todos os lugares. Forneci o número da ficha dela e disse: “Você vai até a delegacia, acompanhado do policial que está com você, e fornece esse número para o delegado fazer o boletim de ocorrência. O delegado vai pedir administrativamente a ficha do seu prontuário”.
A paciente estava saindo quando o policial entrou atrás dela e disse: ‘Você precisa nos dar a cópia do prontuário dela’. Eu disse que não poderia entregar para ele. O policial saiu, ameaçando chamar os colegas.
Em seguida a técnica de enfermagem falou: “Doutora, tem uma paciente laranja na sua sala”. Eram 22h30. Laranja é uma paciente de emergência. Era uma senhora de 90 anos com a filha, que tinha um frasco com um litro de sangue e me disse: “Minha mãe acabou de vomitar isso”. Voltei para a sala da enfermeira para pegar o aparelho de pressão e já encaminhar a paciente, que precisava ser conduzida de imediato.
Quando fui, vi três policiais militares altamente armados, com aquelas armas longas, em frente à sala da enfermeira. Peguei o aparelho e, quando estava a caminho da sala de emergência, fui abordada por um policial que apertou meu braço esquerdo e falou: “A senhora é a medida do plantão? A senhora vai até a delegacia. Eu sou o Sargento Maciel”.
Eu disse que não poderia acompanhá-los, porque estava com um caso de emergência, e entrei no consultório para concluir o caso. Fui arrancada de lá pelo braço e o PM me disse: “A senhora não vai atender, vai comigo para a delegacia”. Ele me encurralou num canto, com a mão dele apertando meu braço, o que dá a lesão que aparece na foto.
“A senhora não conhece a lei, a senhora está presa”, o policial disse. Quando apertou mais meu braço, machucando, eu gritei. Toda a equipe falou para ele: “Larga o braço, que você está machucando a doutora”. O policial disse me levaria para a delegacia. Os auxiliares falaram: “Ela não pode ir, é a única médica que está aqui trabalhando no momento e a paciente está grave”.
Durante 20 minutos ficou aquela ansiedade, os funcionários pedindo para o policial me largar, e ele não largava do meu braço. A enfermeira Rose foi até a sala de emergência e, no que voltou, ela disse: “A paciente está piorando, eu preciso levar a doutora” e me puxou pelo braço direito, tentando fazer o policial me soltar.
Com os cinco funcionários em cima, eu consegui que ele me soltasse e fui para a sala de emergência. O policial ainda disse: “Ela vai machucar braço em qualquer lugar e dizer que fui eu que machuquei”. Como se as testemunhas não tivessem visto o que aconteceu. Ainda fizeram uma pressão muito grande em cima da enfermeira, que está grávida. Ela ficou chorando na sala.
Só consegui chegar à sala de emergência às 22h50. O policial atrasou em 20 minutos uma emergência que normalmente eu tenho que atender de imediato. Quando aparece uma emergência laranja, eu tenho que largar o que estiver fazendo para atender. O policial colocou essa paciente em risco. Nós sabemos disso.
Mediquei a paciente e chamei a ambulância para que viesse buscá-la. Ela estava evoluindo para choque hipovolêmico [perda de pressão causada por hemorragia].
Liguei para meu advogado e ele chegou em 20 minutos. Não vi mais os policiais. Um tenente da PM veio conversar comigo e perguntou se eu queria um pedido de desculpas. Eu disse: “Estou machucada e toda minha equipe está traumatizada. Não adianta você dizer que está tudo bem. Não está”.
O meu colega voltou e fez o meu atendimento. Quando terminei de ser medicada, fui para a delegacia, mas estava sem sistema. Voltei com o advogado pela manhã na delegacia que ele recomendou e fizemos o boletim de ocorrência. Em seguida, fiz o exame médico legal, que já está liberado para a delegacia.
A Polícia Militar fez um boletim por desobediência contra mim porque disse que eu não queria me identificar. Eu sou funcionária pública. Todos os funcionários na recepção têm a obrigação de dar o nome e o CRM do médico. Ele não queria meu nome, queria a cópia do documento.
Depois disso, fui afastada. Tentei voltar, mas passei mal, com pressão alta. Eu sofro de miastenia grave [doença neuromuscular que provoca fraqueza dos músculos, frequentemente nos olhos], que estava em remissão desde março deste ano, mas meu olho esquerdo voltou a diminuir. Minha resistência física caiu. Na terça-feira, minha voz começou a sumir. Estou afastada de todos os meus trabalhos. Quero voltar logo, porque tenho um grande número de pacientes agendados.
O trabalho em pronto-socorro já ocorre sob grande adrenalina, porque estão sempre chegando pacientes graves e você tem que estar em alerta. Por que sobrecarregar um profissional dessa forma, como a polícia fez?
Nunca vi uma atitude tão truculenta, com tanto exercício de poder. Num pronto-socorro, o poder não é de ninguém a não ser de médico, que é quem salva vidas.
Nada justifica uma agressão física a uma mulher de 61 anos no exercício de seu trabalho salvando uma vida. O que justifica? Fala para mim. Essa é uma pergunta a que eu gostaria de ter uma resposta. Talvez um juiz dê uma resposta.
O que diz o Cremesp
O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) vem a público repudiar a situação de violência pelo qual os médicos têm passado no exercício de suas atividades. Em caso recente, uma médica da região do ABC foi agredida por autoridades policiais – ficou com escoriações no braço e picos de pressão alta – por não fornecer a eles o prontuário de uma paciente que ela havia atendido na UPA 24h onde trabalha. Ao se recusar a entregar o documento, a médica respeitou a conduta ética que rege a profissão e a legislação vigente. O artigo 73 do Código de Ética Médica determina que é vedado ao médico: “Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente”. E que esta proibição permanece:
“a) mesmo que o fato for de conhecimento público ou o paciente tenha falecido; b) quando de seu depoimento como testemunha. Nessa hipótese, o médico comparecerá perante a autoridade e declarará seu impedimento; c) na investigação de suspeita de crime, o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal.”
O sigilo profissional também está previsto no artigo nº 154 do Código Penal, no artigo nº 207 de Processo Penal e no artigo nº 448, inciso II, do Processo Civil, que visam a segurança dos pacientes. As exceções são claras e os profissionais conhecem o seu dever.
O Cremesp solidariza-se com a médica que foi agredida e constrangida por aqueles que deveriam zelar pela segurança de todo o cidadão e que, no abuso de suas autoridades, transformaram-se em agressores. Esses cidadãos ignoram a pesada rotina desses profissionais, que têm sob sua responsabilidade uma demanda cada vez mais crescente de pacientes no SUS, muitas vezes atuam sobrecarregados e vivenciam precárias condições de trabalho nas instituições de saúde.
O quadro de violência contra os médicos e demais profissionais da saúde precisa de urgentes providências do Poder constituído. O Cremesp e outras instituições da área da Saúde estão empenhados na aprovação do Projeto de Lei (PL) nº 6.749/2016, que aumenta a pena em 1/3 para os crimes de lesão corporal, contra a honra, ameaça e desacato, quando cometidos contra médicos e outros profissionais da saúde no exercício de sua profissão. O PL já teve aprovação da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados.
O Cremesp conclama a sociedade civil no combate a todos os tipos de agressão aos profissionais da saúde, denunciando seus agressores e unindo forças para que o PL seja aprovado o mais breve possível.
O que diz a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo
No último domingo (29), por volta das 23h, policiais da 4ª Cia do 6º BPM/M compareceram à UPA Baeta Neves apresentando uma mulher, vítima de lesão corporal, para a realização de exames cautelares. Durante o atendimento, houve um desentendimento com uma funcionária do local que não quis se identificar, mesmo depois de receber ordem legal dos policiais. Um boletim de ocorrência de desobediência foi registrado no 1º DP de São Bernardo do Campo e encaminhado ao 6º DP, que solicitou exame de corpo de delito à médica para apurar possíveis lesões sofridas por ela. A PM também apura os fatos e a conduta dos policiais envolvidos na ocorrência.