PM que matou jovem negro por causa de celular esquecido no carro vai a júri popular

Tribunal apontou que versão de legítima defesa é questionável; Silvio Neto declarou ter reagido a tentativa de roubo, mas testemunha disse que cabo entrou no bar junto com a vítima, Clayton Lima

Em sequência: cabo Silvio Pereira dos Santos Neto e Clayton Abel de Lima | Fotos: reprodução/Polícia Civil/redes sociais

O Tribunal de Justiça de São Paulo determinou, em 7 de fevereiro, que o cabo Silvio Pereira dos Santos Neto, 29, será levado a júri popular pela morte de Clayton Abel de Lima, 20, ocorrido em agosto do ano passado, no bairro da Vila Medeiros, na zona norte da capital. Na ocasião, aos PMs que atenderam a ocorrência, o cabo alegou que tinha sido vítima de assalto em um bar e havia reagido, mas o dono do estabelecimento disse que os dois chegaram juntos ao local e tiveram uma discussão após Silvio acreditar que Clayton havia furtado seu celular, atirando contra ele. O aparelho, porém, foi encontrado dentro do carro do policial após perícia da Polícia Civil.

A juíza Fernanda Salvador Veiga, da 2ª Vara do Júri do Fórum Criminal da Barra Funda, argumentou que a alegação de legítima defesa “não está provada de forma irrefutável nos autos, de maneira que deverá o Conselho de Sentença apreciar sua ocorrência”, além de que o depoimento do proprietário do estabelecimento coloca em dúvida essa versão. Assim, o cabo foi pronunciado ao Tribunal do Júri por homicídio qualificado por motivo fútil e que dificultou a defesa da vítima.

A magistrada determinou que o policial não poderá recorrer da sentença em liberdade “em virtude da grave acusação que sobre ele recai (homicídio duplamente qualificado consumado, cometido, em tese, por policial militar, de quem se espera maior cuidado e zelo pela vida das pessoas)”.

No dia 31 de janeiro, ocorreu a última audiência antes da decisão de pronúncia e, nessa oportunidade, Silvio Neto deu sua versão, já que não prestou depoimento na delegacia. Ele afirmou que naquele dia, por volta das 22h, estava de folga, havia ido ao um bar com amigos, bebeu cerveja, e foi para a festa de uma amiga em Guarulhos (Grande SP), onde ingeriu mais bebida alcoólica. Duas horas depois, segundo ele, decidiu “tomar um ar” numa praça em frente à residência. Ao sentar-se em um banco, Clayton, que disse não conhecer, teria lhe oferecido droga.

Silvio disse que se levantou, colocou a mão na arma, que estava na cintura, sem sacá-la, identificou-se como policial e declarou que Clayton seria preso. A vítima, segundo ele, teria pedido para não prendê-la e afirmou que o levaria até o traficante “que lhe vendeu e armazenava as drogas” em um endereço na região do Jardim Brasil, na zona norte da capital, a qual ele conhecia como ponto de tráfico de drogas. Ao invés de prendê-lo, Silvio alegou que decidiu acompanhar Clayton para prender o suposto traficante porque estaria com maior número de porção de drogas. A própria juíza destaca que esse tipo de ação não é previsto no procedimento operacional da Polícia Militar.

O cabo disse que Clayton “ingressou em seu carro, no banco do passageiro, indicando a rua que deveriam parar” e, ao desembarcarem do veículo, Clayton entrou em um bar e Silvio ficou do lado de fora na calçada. Depois, “a vítima deixou o local, dizendo que estava procurando ‘Chiquinho’ e ingressou em um segundo bar, na mesma rua”, e Silvio disse que continuou na calçada.

Em seguida, de acordo com o policial, Clayton pediu o seu cartão para passar R$ 100 no estabelecimento comercial a fim de trocar a quantia por dinheiro em cédula para “simular a comprar de drogas”, o que foi acatado por Silvio. Em seguida, foram ao fundo do bar para combinar a compra da droga na viela, momento que o cabo declarou que percebeu que havia máquinas caça-níquel no local “e decidiu prender a vítima, dizendo que pediria apoio da polícia”.

Nesse momento, Clayton teria se desesperado e empurrado Silvio contra a parede com uma mão, na altura do pescoço, “enquanto que com a outra tentava tomar a posse da arma de fogo” do cabo, que estava na cintura. Silvio disse que “para se defender”, conseguiu pegar sua arma e disparou contra Clayton, atingindo-o no peito com um disparo, e negou que havia o acusado de roubar seu celular. Em seguida, o dono do bar viu Clayton no chão e pegou a arma de Silvio, tirando a munição. Ele se identificou como PM e a testemunha chamou a polícia. Silvio afirma que relatou aos policiais que chegaram ter sofrido uma tentativa de roubo da arma.

Porém, os dois policiais militares que atenderam a ocorrência, Diego Santhiago Santos de Jesus e Fernando Amista Soares, disseram que o cabo estava bastante agitado e que relatou que havia sofrido uma tentativa de roubo da sua carteira e do seu celular cujo autor seria Clayton. Não fizeram qualquer menção sobre a tentativa de prender um suposto traficante. Fernando afirmou que não conversou com o dono do bar; Diego relatou que o proprietário não descreveu a dinâmica dos fatos e apenas falou que “se deparou com a vítima caída no fundo do bar”.

Já o proprietário do estabelecimento declarou que, por volta das 3h da manhã, Silvio e Clayton haviam entrado juntos no local, aparentando estar muito bêbados. Os dois pediram para passar o cartão de Silvio e pagar o restante em dinheiro, tendo passado R$ 50 duas vezes na máquina de cartão e recebido R$ 10. Em seguida, conta a testemunha, eles foram para o fundo do bar, onde existem três máquinas caça-níquel inoperantes e ouviu Silvio questionando a Clayton onde estava seu celular, que respondia não saber. O cabo ainda teria ido até o dono e também perguntado sobre o aparelho, que disse desconhecer. Depois, viu Silvio retornar ao fundo do bar e ouviu um disparo.

O policial civil José Abílio Ribeiro da Silva, que integrava o Geacrim/DHPP (Grupo Especializado em Assessoramento de Local de Crime do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa), apontou ter ouvido a testemunha e que também foram localizados no local três invólucros de cocaína, embora o boletim de ocorrência não informe essa apreensão, além das três máquinas caça-níqueis desativadas que foram apreendidas.

A equipe de perícia do DHPP identificou que Clayton estava apenas com seu documento de identidade e um cartão bancário em seu nome, sem nenhuma arma ou aparelho celular. Ele foi atingido por um tiro no tórax.

O carro de Silvio, que estava estacionado na mesma rua, a poucos metros do local, também foi periciado. Nele, estavam um cartão do SUS e um comprovante de banco em nome de Clayton, além do aparelho celular do cabo.

A reportagem não conseguiu localizar familiares da vítima.

O que diz a defesa

A Ponte procurou os advogados Mauro da Costa Ribas Junior e Renato Soares do Nascimento, que representam Silvio Neto, e afirmam que não vão recorrer da decisão. “Confiamos no júri e provaremos a legitimidade da ação do Policial”, declarou Renato Soares.

Questionado sobre a versão do cabo, que não seguiu protocolos da corporação nem chamou apoio, além de ter atuado de folga e que a investigação é uma atribuição da Polícia Civil, o advogado disse que “o policial sabendo da prática de um crime tem o dever de agir”.

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Sobre o depoimento da testemunha, o defensor disse que o suposto roubo de celular não foi o motivo do disparo. “Ele efetuou disparos de arma de fogo para se defender da investida da vítima que foi tomar a arma do policial que não teve alternativa a não ser se defender” e que ação foi “legítima”.

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