Cabo Denis Augusto Amista Soares, que deu tiro na boca de jovem negro com deficiência intelectual, matou homem que teria roubado caminhão na Rodovia Fernão Dias. Família realizou culto de sétimo dia para Thiago nesta terça (27)
O assassinato do jovem negro e com deficiência intelectual, Thiago Aparecido Duarte de Souza, 20 anos, não foi a primeira vida ceifada pelas mãos do cabo da Polícia Militar Denis Augusto Amista Soares, 37. O policial também consta como o autor da morte de um outro Thiago, que também era negro e possível morador de rua, na periferia da zona norte da capital paulista.
Thiago Souza, a vítima mais recente do PM, morreu no último dia 21 de abril após permanecer por 13 dias internado no Hospital Geral de São Mateus. Ele havia sido baleado na boca na manhã do dia 8 ao sair de casa para comprar pão e leite em um mercadinho a poucos metros de sua residência, no Jardim Arantes, região do Iguatemi, um dos bairros mais carentes da zona leste de São Paulo.
Soares chegou a apresentar duas versões sobre o ocorrido. Segundo policiais que estiveram no local, o cabo inicialmente disse que havia atirado em Thiago porque ele teria tentado assaltá-lo. Na delegacia, o PM mudou a versão e disse que o jovem negro estaria envolvido em outro crime, o roubo a um funcionário de empresa telefônica. A vítima do roubo disse que não reconheceu Thiago, mas, sim, o amigo dele, Fernando Henrique Andrade da Silva, 27, que estava junto de Thiago no momento do disparo. Silva segue preso.
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A Ponte esteve na noite desta terça-feira (27/4) no Mercado da Praça, localizado na Rua do Carvalho Brasileiro. Lá ouviu de um gerente, que se identificou como Renan, que o PM não trabalhava diretamente para o estabelecimento, mas que naquela data estava realizando a escolta de um caminhão que havia ido ao local fazer uma entrega.
No mesmo instante, familiares de Thiago realizaram uma missa de sétimo dia para o jovem, além de cobrarem justiça pela morte do rapaz (leia mais abaixo). Eles também, junto da Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio, já haviam feito um ato exigindo explicações sobre o ocorrido.
Outro Thiago, também negro e morador de rua
Enquanto Thiago Souza foi morto no extremo da zona leste, a outra vítima de Soares, de nome Thiago Ribeiro, foi abatida no Tremembé, no extremo da zona norte. Nas duas ocorrências, Soares apresentou revólveres de calibre 38, ambos com a numeração suprimida, como as armas utilizadas pelas vítimas. A reportagem teve acesso ao boletim de ocorrência elaborado pelo 73° DP (Jaçanã), que narra o ocorrido há dois anos, de acordo com a versão dos policiais militares.
Segundo o documento, eram 23h50 de sábado 23 de março de 2019 quando o cabo Denis Augusto Amista Soares e o soldado Edilson Pereira Duarte Junior receberam comunicação via rádio da Polícia Militar “versando sobre caminhão subtraído, sendo tal comunicação repassada ao Copom (Centro de Operações da PM) pela empresa de monitoramento” do veículo. Ainda segundo a narrativa do soldado Junior, a informação era a de que o caminhão se encontrava no posto de gasolina Pé de Boi, às margens da Rodovia Fernão Dias, no sentido Minas Gerais. No local, nada foi localizado, no entanto, uma nova chamada do Copom indicou que tal caminhão já se encontrava na Avenida João Simão de Castro, na Vila Sabrina, zona norte.
O depoimento de Junior aponta que ao chegarem ao local verificaram que o caminhão também não se encontrava, “mas deixou consignado que no caminho observaram o que parecia o veículo objeto da ocorrência trafegando no sentido Minas Gerais da Rodovia Fernão Dias”. Na ânsia de conseguir lograr êxito na ocorrência, Junior e Soares partiram novamente para a Rodovia Fernão Dias e “iniciaram um deslocamento em direção ao caminhão que haviam visto anteriormente, tendo sido dado sinal luminoso e ordem para que o mesmo parasse, sendo que seu condutor freou bruscamente, momento em que ele desembarcou e efetuou um disparo contra a equipe, não tendo êxito em alvejar ninguém”, sustentou o depoimento de Junior e chancelado por Soares.
O documento afirma que a dupla desceu da viatura e “progrediram em direção ao cavalo mecânico, momento em que o meliante veio ao seu encontro e apesar da voz de parada, efetuou novo disparo”. Na versão dos policiais, “não tendo outra alternativa, Junior de pé efetuou dois disparos contra o meliante e o cabo Amista na posição agachado efetuou mais dois. O indivíduo caiu ao solo e foi desarmado”.
Socorrido pelo Resgate do Corpo de Bombeiros até o hospital São Luiz Gonzaga, no Jaçanã, o homem não resistiu aos ferimentos e morreu. Sem documentos, ele só foi reconhecido após exames de suas digitais no IML. O morto na altura do quilômetro 79 da Rodovia Fernão Dias, uma área ladeada por mata, era Thiago Toledo Ribeiro, 34 anos.
Sem que fosse reclamado por sua família e sem êxito nas buscas realizadas pelo IML atrás de parentes, o corpo negro de Thiago Ribeiro, abatido por dois disparos, sendo um no tórax e outro no abdome, foi enterrado no Cemitério Dom Bosco, em Perus, zona noroeste da capital, local conhecido por receber indigentes, muitos deles com documentos e famílias, como já noticiado pela Ponte.
Quando da sua morte, ainda como um cadáver desconhecido, a perícia procedeu o exame residuográfico nas mãos da vítima. Tal resultado deu negativo para a presença de pólvora, o que pode indicar que Thiago Ribeiro não atirou ou que as partículas de chumbo tinham concentração abaixo do limite detectável, diz trecho do documento.
Na tentativa de avisar a família sobre o ocorrido, a Polícia Civil passou por diversos endereços, mas, apenas em meados de agosto daquele ano encontrou uma vizinha da avó de Thiago Ribeiro. A mulher contou que a familiar do homem havia morrido há cerca de quatro meses, e que a última notícia que tinha do rapaz era de que, em virtude do uso de drogas, havia se tornado morador de rua.
Thiago Ribeiro havia sido detido um ano antes de sua morte, em abril de 2018, após ser flagrado numa área de mata com fios furtados da rede de telefonia. O caso ocorreu em Boituva, no interior do estado.
À época do suposto confronto o cabo estava lotado na Força Tática do 5° BPM/M (Batalhão de Polícia Militar Metropolitano), com sede na zona norte de São Paulo. O batalhão, inclusive, já foi tema de reportagem da Ponte no ano passado, que revelou uma denúncia de que policiais ali lotados eram suspeitos de extorquir traficantes, além de matar um morador de rua.
Outro processo em que figura o cabo Denis Augusto Amista Soares, é uma ação contra a Taurus, fabricante de armas brasileira, que fornece materiais bélicos para a Polícia Militar de São Paulo.
Tal procedimento teve início após uma série de denúncias de policiais sobre defeitos de fabricação da pistola .40 da Taurus, que incidia em disparos sem intenção. Soares utilizou em sua petição mais de uma dezena de matérias publicadas pela imprensa sobre tal problema.
Se sentido lesado, sua intenção era de que fosse efetuada “a substituição da arma por outra de modelo novo ou a devolução do valor pago corrigido monetariamente até a data do pagamento com juros” ou ainda a “indenização ao autor por ter sido enganado no montante de R$ 28 mil por danos morais”. No entanto, tal processo foi encerrado em março de 2018 sem uma definição.
Missa de sétimo dia
Familiares e amigos de Thiago Aparecido Duarte, de 20 anos, se encontraram na noite de ontem em frente ao local em que o jovem morava e a realizaram uma missa de sétimo dia em sua memória. O ato contou com a presença de um pastor, que realizou orações e leitura de trechos da Bíblia.
Enquanto o encontro era realizado, uma fina garoa e uma neblina cobriram o local, na região conhecida por Terceira Divisão, já que as matas que rodeiam o bairro unem São Paulo, Mauá e Ribeirão Pires.
À Ponte a mãe de Thiago, Queli Cristina da Silva Duarte, contou que seu filho era um menino prestativo, que passou por muitas dificuldades desde pequeno. Segundo ela, aos quatro anos de idade, Thiago engoliu uma moeda. Levado ao Hospital Geral de São Mateus, o mesmo local em que faleceu, o médico que o atendeu afirmou que não era necessária uma intervenção, já que a moeda sairia junto com as fezes. No entanto, Queli pontuou que os transtornos causados até que o objeto fosse expelido fizeram com que seu filho tivesse um quadro de encoprese (defecação sem controle), ocasionando também distúrbios psicológicos.
De acordo com a mãe, o jovem passou a apresentar uma evolução quando passou por tratamento no Hospital das Clínicas. Durante cinco anos, o jovem aceitou passar por especialistas como psicólogo e um cirurgião gastrointestinal. Mas, ao completar 15 anos de idade, as finanças da casa minguaram e a distância de duas horas e meia de transporte público deixou de ser percorrida.
“É duro. Jamais pensei que fosse perder meu filho assim. Sempre falei: se você for abordado, obedece. Uma vez fiz uma carteirinha, justamente pensando para quando ele fosse abordado, dizendo que ele era especial, mas ele perdeu”, contou.
Queli também se mostrou aborrecida com o Hospital Geral de São Mateus, já que, segundo ela, os boletins médicos mostravam avanço do quadro clínico. Ela também apontou que uma cirurgia foi realizada sem que fosse avisada, operação que, de acordo com ela, removeu os projéteis que mataram seu filho.
O ato também contou com a presença da tia do jovem, a ajudante de costura desemprega Juliana de Souza, 36. “Eu quero justiça. Esse policial que fez isso com o Thiago tem que pagar. Ele tem que ser preso. Do mesmo jeito que ele matou o meu sobrinho, ele pode matar outro inocente. Ele não pode exercer a profissão, é um risco para a sociedade”.
Para a articulada da Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio em São Mateus, Márcia Lysllane, que acompanha a morte de Thiago desde o início e também auxiliou na organização do culto, a mobilização do caso chamou a atenção até mesmo de profissionais de saúde acostumados com as mortes violentas na região.
“O caso Thiago, é mais um contraste da necropolítica que assola a região de São Mateus. Em um de nossos encontros na sala de reunião do hospital, uma profissional falou: ‘isso é novo para nós do hospital, nunca antes tinha acontecido’”, explicou Márcia. A mulher, que também é moradora da região, pontuou que “o descaso e o abandono sempre estiveram presentes no bairro”, o que “tornou normal as pessoas serem tratadas como mais uma nas estatísticas”. Para ela, o espanto da equipe hospitalar foi a presença não só do coletivo, mas “a existência de pessoas que se uniram para lutar contra o genocídio da quebrada”.
Durante a missa, circulou a informação de que Thiago não havia levantado a camiseta para demonstrar estar desarmado, mas, sim, uma tentativa de tirar a máscara que estava presa na cintura. O jovem teria achado que a abordagem havia se dado por ele estar sem o objeto no rosto, algo obrigatório para entrar em qualquer estabelecimento comercial.
Outro lado
A reportagem questionou a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, através da assessoria terceirizada InPress, sobre as mortes provocadas pelo PM Denis Augusto Amista Soares, além de solicitar entrevista com o policial. Em nota, a SSP informou que “que o referido inquérito foi relatado e encaminhado para manifestação do Ministério Público e do Poder Judiciário, conforme prazo estabelecido pelo Artigo 10 do Código de Processo Penal. Até o momento, o inquérito não retornou ao 54º DP. Em relação ao policial, ele segue em serviço administrativo”.
Esta reportagem foi atualizada às 19:27, de 28/04/2021 para adicionar a resposta da Secretaria da Segurança Pública.
Correções
Esta reportagem foi atualizada às 19:27, de 28/04/2021 para adicionar a resposta da Secretaria da Segurança Pública. "A Polícia Civil informa que o referido inquérito foi relatado e encaminhado para manifestação do Ministério Público e do Poder Judiciário, conforme prazo estabelecido pelo Artigo 10 do Código de Processo Penal. Até o momento, o inquérito não retornou ao 54º DP. Em relação ao policial, ele segue em serviço administrativo".