PM teria intimidado jovem baleado dentro do quarto de hospital em Santos (SP), diz advogado

Policial sem identificação teria dito saber onde jovem mora, conta Edson Rodrigues; Ministério da Igualdade Racial acompanhou segundo protesto contra Operação Escudo na Baixada Santista neste domingo (6)

Bandeiras no chão do Sambódromo de Santos (SP) durante protesto contra mortes na Operação Escudo neste domingo (6) | Foto: Ailton Martins

Na tarde desta terça-feira (1/8), João Paulo*, 22 anos, estava a caminho da casa do pai quando foi abordado pela polícia e levou dois tiros, um deles atingindo de raspão o peito, e outro que o levou a perder um dos rins. Internado há quase uma semana na Santa Casa de Santos, no litoral paulista, seus pais, até a noite de domingo (6/8), não conseguiram visitá-lo ou sequer tiveram acesso a versão mais atualizada do boletim médico. O que se sabe até agora foi coletado pelo advogado da família, Edson Rodrigues, que relata que o jovem, internado sob custódia, recebeu, no quarto de enfermaria, visita de PMs que não fazem parte de sua escolta — um homem sem identificação e uma policial identificada apenas como “Bernardo” na farda.

“Ele me contou que eles abriram as janelas do quarto, ligaram o ventilador, e que o policial homem que estava sem identificação perguntou onde ele morava e, quando o João disse que era do Morro do Tetéu, o policial falou que era melhor ele ficar quieto porque sabia o endereço dele”, denuncia Edson.

João Paulo está sendo acusado de ter trocado tiros com os policiais e foi preso por tentativa de homicídio. No entanto, Edson Rodrigues protocolou, no último sábado (5/8), um habeas corpus pedindo pela liberação imediata do rapaz, que não tem antecedentes criminais, tem endereço fixo e trabalha para uma ONG da cidade. Além disso, o advogado indica diversas irregularidades no processo: os policiais afirmaram que João Paulo levou apenas um tiro (foram dois) e que teria trocado tiros com o Batalhão de Ações Especiais da Polícia (Baep), mas já se sabe que os tiros foram disparados por policiais militares ligados a um batalhão regular.

https://ponte.org/artigo-quem-atira-em-policia-merece-o-que/

A denúncia sobre a situação de João Paulo foi apenas uma das histórias ouvidas pela dupla de ouvidores do Ministério da Igualdade Racial, Cristina Pereira e Fábio Bruni, que estiveram em Santos durante o domingo para ouvir as famílias das vítimas da PM na cidade. Após a reunião com as famílias, com a Ouvidoria das Polícias e movimentos sociais de Santos, a comitiva seguiu para o segundo protesto organizado na Baixada Santista sobre o caso, que também contou com a presença de movimentos de mães que perderam os filhos para outras chacinas.

Os mortos em Santos

As famílias das duas vítimas mortas em Santos durante a Operação Escudo compareceram ao ato. Flávio Sérgio Menezes de Cabral foi morto a tiros de fuzil e pistola quando saiu da sua casa, na Vila Progresso, para subir o morro do Jabaquara para buscar uma cesta básica. Segundo testemunhas, era possível ouvir a voz do carroceiro gritando por ajuda, enquanto agonizava com os ferimentos.

“A polícia perguntou se ele tinha passagem pela polícia, e ele respondeu que tinha, e foi quando ele foi levado para um canto e levou o tiro. Ele já tinha sido presidiário de fato, mas pagou o erro por falar a verdade aos policiais, quando já vivia há muito tempo uma outra vida”, conta uma familiar, que pediu anonimato.

Outro morador assassinado pela polícia em Santos foi Layrton Fernandes da Cruz de Oliveira, de 22 anos, morto enquanto dormia na casa de um amigo também no Jabaquara, na manhã desta terça (1). A família prestou depoimento aos ouvidores da ministra Anielle Franco, e compareceu ao ato com camisas em homenagem ao jovem e amparados por por movimentos das Mães de Maio e das Mães de Paraisópolis.

Cristina Pereira e Fábio Bruni, do Ministério da Igualdade Racial, participaram do ato | Foto: Ailton Martins

Sobre a apuração dos casos, Cristina Pereira afirma que o Ministério de Igualdade Racial está empenhado em compartilhar os relatos coletados com o Ministério de Direitos Humanos e com o Ministério da Justiça. Ela destaca que o momento político do governo federal está favorável a um olhar mais crítico, e antirracista, às operações policiais em curso no litoral paulista.

“Estamos vivendo uma época em que podemos nomear as violências e fazer que reconheçam que há raça e cor definidas quando pensamos nos principais alvo desses crimes. Temos um ministério que hoje consegue trabalhar de forma articulada com os demais e fazer com que, juntos, a gente possa pensar no racismo dessas mortes e o que fazer a partir disso”, explica Cristiane.

Também presente no protesto, o ouvidor Claudio Aparecido da Silva destacou o compromisso da Ouvidoria das Polícias para continuar coletando os relatos das famílias das vítimas. Devido sua atuação no caso e suas declarações críticas aos excessos cometidos pela polícia, Claudinho recebeu uma ameaça racista em um grupo de WhatsApp. Nesta sexta-feira (4/8) o ouvidor registrou um boletim de ocorrência após ter acesso a uma mensagem publicada em um grupo chamado “Polícias Penais Assuntos”, que dizia o seguinte: “[…] Demorou para matar esses vagabundos e que estiver apoiando bandido igual esse negro maldito e esse ouvidor das polícias, tem que morrer também. Essa é a minha posição. Vai virar uma guerra eu estou pronto [sic]”.

https://ponte.org/no-guaruja-deflagrado-mulheres-assumem-a-seguranca-dos-homens-em-risco/

“Já informamos o secretário de Segurança Pública e o governador, que ainda não retornaram, provavelmente porque só conseguimos realizar a ocorrência no final da tarde da sexta-feira. Enquanto isso, vamos continuar com nosso trabalho e com a segurança reforçada que já está nos atendendo”, contou Claudinho.

Proteger quem ainda está aqui

O sentimento do segundo ato foi de desolação diante do número menor de presentes, em comparação ao primeiro dia de manifestações, e de angústia diante da falta de medidas mais emergenciais para conter a Operação Escudo na região.

No entanto, mães de vítimas de violência de Estado de diversas cidades do estado de São Paulo destacaram a importância de, mais do que falar de denúncias, também proteger os jovens que estão vivos e seguem na linha de tiro da polícia.

Dona Zilda Maria de Paula, que perdeu o filho em 2015 na Chacina de Osasco, uma das maiores da história de São Paulo, desceu a Serra do Mar para prestar solidariedade. “Eu não queria estar aqui para conhecer novas mães que passaram pelo que passei há oito anos”, disse pausadamente ao microfone, mas com a voz embargada.

Já Andreia MF, fundadora das Mães de Cárcere, fez uma manifestação artística no protesto, ao cantar em homenagem aos mortos e pedir uma pequena oração coletiva. Finalizando sua participação, passou o microfone ao filho, Emerson MF, que cantou a música feita com a mãe, “Lágrimas Eu Vi no Rosto da Mãe”, e se abraçaram, em reconhecimento à urgência de proteger quem ainda está aqui.

A advogada Dina Alves lê carta assinada por movimentos sociais ao lado de Débora Silv,a das Mães de Maio | Foto: Ailton Martins

Ao final, a advogada e pesquisadora Dina Alves leu uma carta assinada diferentes organizações que pedem, entre outras coisas, a atuação imediata do ministro da Justiça e Segurança Pública Flávio Dino, a cessação imediata da Operação Escudo e a imediata retirada das tropas da Polícia Militar da cidade de Guarujá, além da retirada de páginas de policiais das redes sociais, que estão comemorando as vítimas da chacina.

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Para encerrar, Débora Silva, líder das Mães de Maio, reforçou que as mães não estão com medo de continuar denunciando os crimes do Estado. “Eu não tenho medo: se for para morrer pela favela, eu estou tombando pela comunidade”, afirmou, sob as palmas e os gritos por justiça.

Outro lado

A reportagem da Ponte solicitou informações da Secretaria de Segurança Pública (SSP) do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) sobre as denúncias de abuso policial durante a internação de João Paulo. Em resposta, a SSP enviou a seguinte nota:

A Secretaria de Segurança Pública esclarece que as forças de segurança atuam em absoluta observância à legislação vigente. Em cinco dias de Operação Escudo, a polícia prendeu 58 suspeitos e apreendeu quase 400 kg de drogas e 18 armas, entre pistolas e fuzis. Todas as ocorrências com morte durante a operação resultaram da ação dos criminosos que optam pelo confronto, colocando em risco tanto vítimas quanto os participantes da ação. Por determinação da própria SSP, todos os casos desse tipo são minuciosamente investigados pela Divisão Especializada de Investigações Criminais (DEIC) de Santos e pela Polícia Militar, por meio de Inquérito Policial Militar (IPM). As imagens das câmeras corporais serão anexadas aos inquéritos em curso e estão disponíveis para consulta irrestrita pelo Ministério Público, Poder Judiciário e a Corregedoria da PM.

*Nome fictício

Esta reportagem foi atualizada às 17h30 do dia 7/8/2023 para incluir o posicionamento da SSP

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