PMs agridem moradores com mata-leão durante abordagem em SP

Mulher negra afirma que ela e familiares foram agredidos por contestarem enquadro aos filhos dentro do condomínio nesta terça-feira (2); em vídeo, policiais aparecem dando golpe enforcamento, proibido pela corporação desde 2020

Uma família de três pessoas negras foi agredida por policiais militares na entrada do prédio onde moram, no bairro Cidade Domitila, na zona sul da cidade de São Paulo, na noite desta terça-feira (2/5).

Filmagens feitas por moradores dos andares superiores gritando que se tratavam de “trabalhadores” e de uma câmera de segurança do condomínio mostram os PMs tentando imobilizar um homem enquanto duas mulheres tentam intervir e são agredidas com um “mata-leão”, sendo que uma é jogada ao chão com violência por outro policial que usa a técnica com um braço enquanto segura uma escopeta com o outro.

Esse golpe é proibido pela corporação desde 2020, quando diversos casos de violência policial repercutiram em meio à onda de protestos no Brasil e nos Estados Unidos por conta do caso George Floyd.

Angela, 44, é a mulher que aparece recebendo esse golpe e sendo jogada com violência no chão. Ela pediu que os nomes dela e dos familiares fossem omitidos por medo de represálias. À Ponte, ela disse que o filho de 26 anos, que vamos chamar de João, estava chegando em casa após o trabalho e foi abrir o portão para a irmã Leticia, de 24, que chegou em seguida. “Quando ele acabou de fechar o portão, eles [PMs] já chegaram chutando o portão e pegando eles [filhos]. Invadiram o prédio”, conta. Os dois estavam já dentro do prédio quando foram abordados.

Uma imagem da câmera de segurança antes da abordagem mostra um homem negro de camisa vermelha, calça jeans e blusa azul abrindo o portão para outro de camisa listrada, jaqueta preta e calça jeans e entrando no condomínio. Segundo Leticia, os dois não têm relação com a família e também são moradores. Assim que o portão fecha, dois PMs entram com tudo com arma em punho e não é possível ver o que acontece em seguida.

Uma outra filha, mais nova, de Angela teria visto a abordagem aos irmãos e a chamado. “Nisso que eu fui lá, eu perguntei ‘o que está acontecendo, senhor?’ E eles falaram ‘vai para lá, senhora, vai pra lá’. Eu falei ‘não vou nada, não. Meu filho acabou de chegar do serviço e vocês estão com meu filho”. Segundo ela, João foi levado para a rua junto com Leticia. “Quando desceram para rua, um dos policiais começou a apontar arma para todo mundo e a população já saiu dizendo ‘tá prendendo trabalhador'”, conta.

A filha adolescente de 16 anos de Angela teria tentado gravar a ação. “O meu irmão também desceu [do prédio] e a minha filha estava gravando quando o policial deu um tapa na mão dela. O celular caiu no chão e foram para cima da minha filha. Deram um soco nela e todo mundo foi para cima deles”, afirma. “Meu irmão apanhou demais”. É ele quem aparece sendo imobilizado por três PMs de fora para dentro da entrada do condomínio. “Eu fui para cima também e me jogaram no chão”, completa Angela.

Todos acabaram sendo levados para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Jabaquara e os três filhos de Angela, além do irmão dela, foram detidos para o 26º DP (Sacomã). Leticia disse na delegacia que o irmão abriu o portão e ela apertou o passo porque precisava usar o banheiro. Em seguida, os policiais apareceram e ela relatou o mesmo que Angela.

De acordo com o termo de depoimento de um dos PMs, os policiais do 3º BPM/M receberam uma denúncia de roubo de celular e a vítima conseguiu rastreá-lo por meio de outro aparelho, sendo que a localização apontada era na Avenida Rodrigues Montemor, altura do número 257. O sargento Paulo Bispo dos Santos Junior afirma que ele e os colegas foram em direção ao endereço.

Ao chegarem lá, teriam visto “dois indivíduos” que teriam as características informadas pela vítima à PM, “sendo uma delas um indivíduo de jaqueta cinza e calça jeans” (as demais não são mencionadas), que fugiram por uma viela dessa avenida sentido à Rua Brás de Melo Moniz ao avistarem a viatura. Contudo, os policiais os perderam de vista.

Imagens de marcas no braço, pescoço e bochecha do irmão de Angela, de 35 anos, que foi imobilizado por policiais e agredido | Fotos: Arquivo pessoal

Segundo o sargento, o rastreio do celular da vítima apontava para essa rua, momento em que viram João e Leticia entrando no condomínio que fica na Braz de Melo Moniz. Esse foi o fato, diz o policial, que “ensejou suspeita” e levou ele e o colega a “adentrarem no encalço dos mesmos, onde foram detidos no segundo andar”. Leticia e João moram no condomínio e, desde o ano passado, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) firmou entendimento de que as abordagens policiais precisam estar fundamentadas em motivos concretos.

Em seguida, o PM relata, “a população do local começou a ficar arredia com a equipe, se tornando cada vez mais agressiva” e que, por isso, conduziram os dois para o lado de fora do prédio para fazer a abordagem “em local mais seguro”. Mas os moradores continuaram a “se inflamar” e demonstrar que “não queria presença policial no local”.

Outros dois policiais, afirma o sargento, chegaram para prestar apoio e teriam pedido “gentilmente” para as pessoas se afastarem, mas não não foram atendidos e o irmão de Angela “tomou posição de combate, vindo em direção ao policial Gabriel, lhe desferindo um soco no rosto”. Com isso, os policiais teriam usado “força moderada” para algemar e levar as pessoas à delegacia.

O PM Paulo Bispo disse que a adolescente de 16 anos precisou ser algemada pelos pés porque estaria chutando o vidro da viatura. O sargento afirma que o celular da vítima de roubo não foi encontrado porque “em dado momento o mesmo foi desligado, impossibilitando que o rastreio prosseguisse”.

Angela disse ficou com arranhões no braço e com dores no corpo e mostrou fotos do irmão que tinha arranhões e um hematoma na costela, marcas no pescoço, braço e bochecha. “Foi uma injustiça”, lamenta.

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A Ponte não teve acesso à íntegra do registro, mas consta que os quatro assinaram um termo circunstanciado (registro de infrações de menor potencial ofensivo) de resistência e desobediência e liberados depois.

Leticia afirmou que ela e o irmão ainda foram submetidos a reconhecimento pessoal com mais um homem à vítima do roubo, que não os reconheceu. A prática viola não apenas o artigo 226 do Código de Processo Penal mas também Resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em vigor desde março, que estabelece uma série de medidas para a realização de um reconhecimento, seja presencial ou fotográfico. Uma delas, por exemplo, é que cada pessoa a ser reconhecida esteja ao lado de, no mínimo, quatro pessoas com características semelhantes.

O que diz a polícia

A reportagem questionou a Secretaria de Segurança Pública sobre os vídeos das agressões bem como a motivação da abordagem e se foram analisadas imagens das câmeras das fardas dos policiais.

A Fator F, assessoria terceirizada da pasta, não respondeu as perguntas e encaminhou a seguinte nota:

A Polícia Militar foi acionada para atender uma ocorrência de roubo a um celular, onde o rastreador apontava para a Rua Brás de Melo. No local, os policiais abordaram um casal que entrou em um condomínio e foram hostilizados pelos demais moradores. Os policiais solicitaram que os presentes se afastassem, mas não foram atendidos. Um homem deu um soco em um dos agentes e uma adolescente também investiu contra os PMs. Os quatro abordados e dois policiais foram levados à UPA Jabaquara com escoriações. Posteriormente os envolvidos foram conduzidos ao 26º DP, onde foi elaborado um boletim de ocorrência de Resistência; Desobediência; Averiguação de Roubo. O veículo e os pertences das vítimas, com exceção do celular, foram localizados em uma rua próxima.

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