Policiais entraram na casa de jovem de 29 anos para “pegar seu documento” quando o abordaram na rua e não encontraram nada de ilícito com ele na cidade de Bayeux (PB). Na residência, PMs teriam encontrado drogas no quintal; homem permanece preso desde dezembro de 2020
Um homem negro de 29 anos foi preso sob a acusação de tráfico de drogas após dois policiais militares invadirem sua casa sem mandado por ele estar sem documentos e com R$ 36 no bolso quando foi abordado na rua. O caso aconteceu em 24 de dezembro de 2020, na cidade paraibana de Bayeux, que fica na região metropolitana de João Pessoa.
De acordo com o auto de prisão em flagrante, os policiais Edmilson Cardoso de França e Givanildo Pereira de Souza, da 4ª Companhia Independente da PM, disseram que estavam em patrulhamento pelo bairro Mario Andreazza quando viram um homem pela Rua Maria Auxiliadora em “atitude suspeita” por ser “um local bastante conhecido pelo tráfico”. Ao abordá-lo, encontraram com ele R$ 36 e o solicitaram pegar seus documentos em casa.
Na residência, sem nenhum tipo de mandado, os policiais afirmam que fizeram uma “varredura” no quintal e localizaram drogas enterradas. Os PMs alegam que João (nome fictício) admitiu que vendia drogas para sustentar a família e que, ao ser perguntado de quem adquiria os entorpecentes, ele teria dito que era de um homem chamado Bruno (nome fictício), que moraria próximo dali.
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Os policias afirmam que foram a residência de Bruno e também fizeram uma “varredura” no local, sem mandado, e localizaram documentos pessoais, drogas e uma lista de compras e vendas, mas ele teria fugido do local. Na 5ª Delegacia Distrital de Bayeux, João se manteve em silêncio e disse que se manifestaria em juízo. A perícia identificou que as 165 trouxinhas apreendidas eram 140 gramas de maconha e outras 237 embalagens plásticas correspondiam a 33 gramas de cocaína.
O delegado Manoel Idalino Martins entendeu que não houve ilegalidade na prisão e indiciou João em flagrante por tráfico de drogas. No registro interno da PM, que a Ponte teve acesso, os dois policiais disseram que também o abordaram porque “tinham informação” de que ele seria traficante, sem especificar a procedência.
Na audiência de custódia, o promotor de plantão Jeaziel Carneiro dos Santos entendeu que não houve irregularidade, que bastava o testemunho dos policiais, e se manifestou para que a prisão fosse convertida em preventiva (por tempo indeterminado). Ele escreveu que houve flagrante, argumentando que o crime de tráfico é um delito permanente, ou seja, cuja consumação se estende no tempo e por isso se manteria o estado de flagrância, não havendo necessidade de mandado de busca e apreensão, tendo como jurisprudência o julgamento de um recurso extraordinário no STF (Supremo Tribunal Federal), em 2016, que definia limites para entrada da polícia em domicílio.
“Ora, verifica-se através das provas dos autos, que a prisão em flagrante, encontra-se revestida da legalidade e em sintonia com os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais, até porque, perduram as razões que ensejaram a decretação da prisão do suplicante, o que se faz provar através das provas constantes dos autos”, declarou.
Já o defensor público Felipe Travia, que atuou nessa audiência, contesta essa justificativa ao apontar que a tese de repercussão geral desse julgamento do STF citado pelo promotor, ou seja a tese que passa a ser usada em julgamentos de casos semelhantes, a qual prevê que a entrada da polícia em domicílio sem mandado judicial precisa ser devidamente fundamentada de que no local está havendo um flagrante delito.
Além disso, a Constituição Federal, no artigo 5º, inciso XI, prevê que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.
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“O fato da pessoa portar R$ 36 na rua não é uma justa causa para o policial entrar em uma casa”, explica Travia. “Nesse caso, o ingresso na casa dele [João] é ilegal e desde 2019 vem se mudando a jurisprudência para esse tipo de caso”, defende. “Esse tipo de produção de prova não pode ser considerada lícita”, prossegue.
Além disso, de dezembro de 2020, quando houve a prisão de João, a março deste ano, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) emitiu duas decisões que criam limites para PMs invadirem residências. Uma determina que a descoberta de drogas não autoriza polícia a entrar em uma casa sem consentimento e a outra que as polícias têm que gravar a autorização dos moradores para entrada em suas residências.
Uma das reportagens usadas por um dos ministros para embasar a decisão foi publicada pela Ponte em novembro de 2019, que apontou que policiais militares da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), a tropa mais letal da PM paulista, entraram em apartamentos sem mandado e fazendo revistas aleatórias de pessoas nos corredores de um prédio no Glicério, centro da cidade de São Paulo.
Para Felipe Travia, essas invasões acontecem apenas em bairros periféricos e pobres. “O que vem se percebendo é que essas entradas da polícia acontecem muito mais em locais pobres do que na casa ou apartamento de bairro rico, em que o morador vai dizer ‘não pode entrar’ e o policial vai embora”, afirma.
A juíza Lilian Frassinetti Correia Cananéa, que atuou na audiência de custódia, seguiu o entendimento do Ministério Público Estadual e decretou a prisão preventiva de João, ao argumentar que o flagrante era legal e que ele deveria ser mantido recluso pela gravidade do crime e para a manutenção da ordem pública.
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No relatório de investigação do caso da Polícia Civil, não é apontada realização de novas diligências nem localização de Bruno, ou indicação de endereço dessa casa onde foram encontrados documentos pessoais, drogas e uma lista de compras e vendas. O inquérito se baseou apenas na palavra dos policiais militares.
O promotor Alcides Leite de Amorim, do Ministério Público Estadual (MPE), ofereceu denúncia contra João por tráfico de drogas em janeiro deste ano, que foi aceita pela juíza Conceição de Lourdes Marsicano de Brito Cordeiro. João segue preso na Cadeia Pública de Bayeux e atualmente é representado por outro defensor público do qual a reportagem não obteve resposta.
Para Philippe Mangueira, defensor público e membro do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania, existe uma pressão no sistema de justiça para que haja um “combate implacável da criminalidade” que pode ensejar violações de direitos. “Num Estado de Direito, todos devem seguir a lei, inclusive o próprio Estado porque para chegar a apreensão de alguma droga, algo ilícito, ele não pode atropelar a garantia de direitos fundamentais da pessoa”, aponta. “Os fins não justificam os meios, não se combatem crimes cometendo crimes”, enfatiza.
Mangueira, que acabou levando esse caso para seu perfil no Twitter, afirma que quis trazer o debate público sobre ações abusivas. “Não foi mencionado [no auto de prisão] a entrada franqueada, foi uma violação de domicílio às claras”, critica.
Outro lado
A Ponte procurou as assessorias do Governo do Estado da Paraíba, da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social, do Ministério Público e do Tribunal de Justiça e solicitou entrevistas com os policiais, delegado, promotores e juízas envolvidas na tramitação do caso. Até a publicação, não houve resposta.
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