Quatro policiais são réus por disputa de racha com viaturas, que resultou em colisão no Cambuci, em São Paulo. Imagens da câmera corporal de um dos agentes registrou a ação e um dos PMs falando em ‘arredondar’ a história
Os quatro policiais militares de São Paulo flagrados disputando um racha com viaturas tentaram criar uma narrativa para esconder a conduta imprudente, diz o inquérito policial militar sobre o caso, ao qual a Ponte teve acesso. A investigação concluiu que duas viaturas da PM participaram da ação — e que um dos veículos trafegava a pelo menos 100 km/h numa via com limite máximo de 40 km/h.
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O inquérito contém a análise das imagens e do som das câmeras dos quatro PMs. Diálogos mostram que, após a batida de uma das viaturas, um dos policiais disse: “Pra ‘arredondar’ vai ter que falar que tava indo atrás de alguma coisa”.
Para a investigação, a expressão seria um indício de tentativa de mascarar o que ocorreu.
Os quatro policiais atuavam no 11º BPM/M à época da batida, no dia 13 de julho. As imagens da câmera corporal do policial Bruno Cesar Santana dos Santos, divulgadas nesta quarta-feira (6/11), revelaram o caso. O racha entre as viaturas ocorreu por volta das 4h da manhã, no bairro do Cambuci, região central de São Paulo.
Bruno e o soldado Igor Ferreira Cabelim se deslocavam para atender a uma ocorrência. Na outra viatura estavam os policiais Tamyres Cristine Santana de Oliveira e Gabriel Viniscius Mendes de Miranda, também acionados para o mesmo incidente.
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Na viatura onde estavam Bruno e Igor, foi possível ouvir a frase “assim que faz caralho! Apostar um racha”. Após a fala, há um som intenso, aparentemente de motor. Já pela câmera de Igor, ouve-se alguém dizer: “Será que tá acelerando junto?” e a resposta “tá”, seguida de risos.
Segundo o inquérito, essa viatura sai à frente e depois é ultrapassada pelo outro veículo da PM. Neste momento, sons de sirene são ouvidos. Na sequência, em meio ao som do motor, um deles grita: “Para, bili. Não bili! Acabou, acabou, não viado, não viado.” A viatura colide logo depois. A batida atingiu dois carros que estavam estacionados e um poste de alimentação do semáforo que fica no local. Foram 26 segundos entre o início da “brincadeira” e a colisão.
“Acho que no áudio saiu ‘racha’”
Na conversa na outra viatura, registrada pela câmera do policial Gabriel, é possível ouvir uma voz feminina dizendo: “Bateram! Bateram!”, “vamos voltar lá, os caras bateram no carro parado” e “pra ‘arredondar’ vai ter que falar que tava indo atrás de alguma coisa”.
Na sequência, a mesma voz diz: “Veio uma moto, passou correndo perto da gente, a gente tentou ir atrás, se perdemos”. Pouco depois, um questionamento: “Vocês conseguiram ver a moto que passou?”.
O inquérito aponta que os PMs questionavam se a gravação da câmera registrou a ação imprudente: “Eu acho que no áudio saiu, racha, racha”, preocupam-se. A imagem, extraída da câmera da policial Tamayres, registrou o velocímetro da viatura. Não é possível ver com exatidão a marcação numérica, mas considerando a posição do marcador, a investigação aponta que é possível ter atingido velocidade aproximada de 100 km/h. A via em que os policiais trafegavam, aponta o inquérito, tinha velocidade máxima de 40 km/h.
A perícia disse que não havia elementos técnicos-materiais para precisar a velocidade em que estava a viatura que bateu. O Setor de Inteligência da Polícia também alegou indisponibilidade no sistema que possibilitasse conferir a velocidade do veículo.
‘Descaso com atendimento ao público’
Apesar disso e de todos os policiais negarem o racha em depoimento, os quatro foram indiciados. O capitão Felipe Perez Campitelli, responsável pelo inquérito, afirmou no relatório final que os policiais “tentaram criar narrativas para tentar justificar o acidente, com a possível intenção de esconder os motivos determinantes para a condução imprudente dos veículos”.
Para o capitão, os quatro policiais sabiam do racha e a disputa de fato ocorreu. O relatório também destaca que a policial Tamyres disse em depoimento que a viatura que dirigia tinha apresentando um problema no freio naquele dia. O argumento foi entendido pelo capitão Felipe como uma tentativa de se esquivar das responsabilidades. Se de fato o carro estivesse com problemas, a policial assumiu um risco ainda maior ao participar de um racha.
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O relatório final também destaca a fala do policial Igor, registrada pela câmera corporal, sobre a ocorrência que os agentes se deslocavam para atender. “É bagulho de briga, caralho, toma no cu, quero que se foda, pra mim que se mate”, disse.
“Além de demonstrar total descaso com o atendimento ao público, demonstra que não havia qualquer interesse em atender aquela ocorrência com celeridade, não sendo portanto, definitivamente, este o motivo do emprego de velocidade das viaturas”, escreveu Felipe.
Envolvidos seguem nas ruas
Em setembro, a promotora de Justiça Giovana Ortolano Guerreiro denunciou os quatro policiais por violar regras de trânsito enquanto dirigiam veículos sob administração militar (artigo 280 do Código Penal Militar), e pelo artigo 308 do Código de Trânsito, que pune quem faz rachas. A denúncia foi recebida pela juíza Maria Elisa Terra Alves, em outubro.
Mesmo respondendo ao processo, os quatro policiais seguem trabalhando nas ruas. Em setembro, o policial Gabriel assinou uma nota de culpa por, durante uma ocorrência de furto, ter acionado tardiamente a gravação ininterrupta da câmera e encerrado a gravação com o preso sob sua custódia — contrariando as diretrizes da Polícia Militar sobre o uso do equipamento.
O que dizem as autoridades
A Ponte questionou a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) sobre o caso. Não houve retorno. A reportagem será atualizada caso haja resposta.
Na quarta-feira (6/11), quando o vídeo foi revelado, a SSP informou que quatro agentes foram investigados por meio de um Inquérito Policial Militar remetido à Justiça Militar. O grupo foi acusado com base no artigo 175 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) — que condena a exibição de manobra perigosa, considerada infração gravíssima. Os policiais “respondem a processos administrativos que podem levar à exoneração”, informa a SSP.
A reportagem também buscou a defesa dos quatro policiais. Washington Luiz Bezerra, advogado do policial Bruno Cesar Santana dos Santos, disse que os fatos foram veiculados fora de contexto. O defensor diz que, naquela data, a equipe policial, composta por Bruno, estava em apoio a uma ocorrência de gravidade, que requer celeridade no atendimento.
“O Sd PM Bruno não participou de nenhuma disputa automobilística, havendo apenas o intuito de se deslocar com a necessidade que o caso requeria”, escreveu.
O advogado do policial Gabriel Miranda, Marcio Antonio Sousa Ferreira da Silva, também negou a participação do cliente em um racha e disse que o cliente estava em apoio a uma ocorrência de gravidade, “que requer celeridade no atendimento”.
“Por parte do Soldado PM Gabriel Miranda, havia apenas o intuito de se deslocar com a necessidade que o caso requeria, não participando de qualquer tipo de disputa utilizando viaturas”, escreveu.
Os demais não responderam. Caso haja retorno, o texto será atualizado.