Membro da Academia Paraense de Literatura de Cordel, Ubiraci Conceição, de 71 anos, viu sua casa ser invadida pela PM do governador Helder Barbalho atrás de um foragido. Na ação, agentes mataram seu ex-genro e teriam torturado um neto

Ubiraci Conceição, de 71 anos, é um poeta marajoara e cordelista paraense, membro da Academia Paraense de Literatura de Cordel. Ele teve a casa invadida pela PM do Estado do Pará, sem mandado judicial, no último dia 31 de março às 16h. Pelo menos oito viaturas da Polícia Militar do Pará (PM-PA), incluindo equipes da Rotam, invadiram a residência do idoso em busca de um homem que Ubiraci afirma não ver há dez anos. Ele, a esposa, crianças, adolescentes e mulheres grávidas testemunharam a morte de um familiar e a tortura de outro.
Nascido em Breves, no Marajó, Estado do Pará, Ubiraci Conceição chegou a Belém ainda na década de 1990, com 36 anos. Depois vieram sua esposa e os sete filhos. Escreveu três livros e produz cordéis de maneira independente com temas que vão da cultura amazônica às mazelas sociais. O reconhecimento, no entanto, não o protegeu da violência da polícia do governador Helder Barbalho (MDB), que rondava sua casa há meses.
A escalada de assédios da PM se intensificou no dia 19 de março, quando um grupo de três policiais chegou em frente à casa de Ubiraci em uma viatura às 16h57. Eles desembarcaram e se dirigiram ao portão e saíram às 17h.
A ação policial que ocorreu no dia 31 — e que resultou na morte de Rogério Vieira dos Santos e na tortura do sobrinho Marcio Wendel Torres da Silva — foi descrita em uma declaração apresentada à Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH-PA). Segundo o documento, por volta das 16h, a PM e a Rotam chegaram à residência de Ubiraci à procura de um foragido da justiça, David de Albuquerque Bezerra, conhecido pelo apelido de “Barata”, que responde a processos no Pará e Amapá.
David seria um ex-ficante de uma das netas do poeta e passou poucos dias morando na residência há cerca de dez anos.

Neto foi torturado por agentes, diz família
“A gente estava dentro de casa quando eles chegaram gritando, perguntando por esse tal de Davi. Ninguém tem contato com esse rapaz há mais de dez anos”, afirma Ubiraci. David de Albuquerque Bezerra, lavador de carros, também conhecido pelo apelido “Barata“, natural do município de Itaituba (PA), é um homem condenado por homicídio qualificado, conforme decisão do Tribunal do Júri da Comarca de Macapá, no Amapá.
O processo em que David é réu, descreve seu paradeiro como “atualmente em lugar incerto e não sabido”, porém seu último endereço é o da Colônia Penal Agrícola de Santa Izabel do Pará, de onde fugiu. De acordo com a família, os PMs sustentam a ideia de que a residência de Ubiraci é o último endereço relatado pelo fugitivo.
Durante a invasão, Rogério, ex-marido da filha de Ubiraci e feirante, estava na residência. Ele já havia sido ameaçado pela PM e acreditava que a polícia estava lá para matá-lo. Fugiu ao ver a movimentação e foi alvejado com dois tiros nas costas. “Mesmo ferido, eles empurraram ele pro outro lado onde já tinham outros policiais, que levaram ele para dentro de um banheiro na outra casa. Ouvimos mais quatro tiros. Mataram ele e carregaram o corpo em uma rede pra dentro de uma viatura”, relata um familiar.
O neto de Ubiraci, Marcio Wendel Torres da Silva, teria sido torturado até assumir a posse de drogas que foram supostamente encontradas na residência. “Botaram uma toalha no rosto dele, jogaram um galão de água, desses aqui, por cima do rosto e ficaram sufocando ele. Ele teve que dizer que a droga era dele para pararem”, denuncia a família, no termo entregue à SDDH.
PMs teriam destruído câmeras de segurança
Ainda segundo o relato, os policiais destruíram a fiação da câmera de segurança e exigiram acesso às imagens da casa, ameaçando o genro de Ubiraci: “Me disseram que se eu não entregasse o DVR iam ferrar com o velho”, diz um dos familiares. Para Maria de Nazaré da Conceição, 69, os dias que se seguiram à abordagem viraram um tormento. “Parece que quando chegava a noite, eu estava vendo aqueles homens na nossa frente aqui invadindo. Nunca tinha passado uma situação dessa, tão horrível.”
Segundo ela, os agentes já haviam aparecido outras vezes, sempre atrás de David, um fantasma de mais de uma década. “Esse Davi passou aqui há mais de dez anos. Veio de Macapá, ficou uns dias e nunca mais apareceu”, conta Maria. O rapaz, que ela descreve como ex-ficante de uma das netas, teria dado o endereço da casa como se fosse sua residência — o que só veio à tona agora, durante as investidas policiais. “A gente não sabia. Estamos sabendo agora, com essa confusão toda”, explica.
Nas visitas anteriores, os policiais batiam à porta e eram impedidos de entrar. “A gente trancava o portão. Eles diziam que eu estava escondendo bandido. Que o David morava aqui. Mas ele não morava”, relata. A tensão aumentou quando, em uma dessas ocasiões, um dos agentes ameaçou: “Velho safado, nós vamos voltar e vamos entrar aí”. A ameaça se cumpriu no dia 31, quando os PMs aproveitaram o portão aberto.
‘Não apresentavam mandado, era só grito, intimidação’
Maria reforça que o rapaz nunca morou de fato na casa, e que a passagem dele ali foi breve. Ela diz que ele havia cumprido pena em Americano e que a fuga ocorreu há cerca de dois anos, durante uma das saídas temporárias. Desde então, a casa da família passou a ser alvo constante da Polícia Militar, com base em um endereço que o próprio Davi forneceu anos atrás. “Só fomos descobrir agora.”
Ubiraci tentou explicar diversas vezes aos policiais que Davi não morava ali. “Eles insistiam, mesmo a gente dizendo que não tinha ninguém com esse nome. Não apresentavam mandado, nada. Era só grito, intimidação, e acusação de que estávamos escondendo bandido. Se eu tivesse ido logo tirar esse endereço, talvez eles tivessem parado. Mas a gente não sabe como fazer, não tem informação. Só temos medo.”
Rubia Cleciane Torres da Conceição, 43, é filha de Ubiraci e Maria de Nazaré. Ela lembra que a primeira abordagem oficial aconteceu quando agentes da Secretaria de Administração Penitenciária (SEAP-PA) bateram à porta da família. “Eles vieram, mostraram a foto do Davi e foram embora. Conversaram com a gente. Isso tem alguns meses.”
Rotina de terror
Mas o que começou como uma simples checagem se transformou rapidamente em rotina de terror. “Depois disso, começou a Polícia Militar vindo com frequência, dizendo que meu pai estava acolhendo vagabundo. Era sempre com gritos, palavrões, ameaças. Não respeitavam nem as crianças.”
Ela relata que os agentes invadiram a residência sem mandado e gritavam acusações sem fundamento. “Chamavam meu pai de velho safado, diziam que ele estava escondendo bandido. Mas o Davi nunca morou aqui. Nunca. Ele só passou uns dias, mais de dez anos atrás.”
David teve um breve relacionamento com a sobrinha de Rubia, que atualmente vive em Macapá. “Eles tiveram um filho, que hoje tem 8 ou 9 anos. Mas ela nem mora aqui. Não tem nada a ver com a nossa casa.”
O que diz a PM-PA
No dia 31 de março, o policial militar Diego Rodrigues dos Santos compareceu à delegacia da 5ª Seccional da Polícia Civil, em Belém (PA), para relatar uma operação de patrulhamento, narrando que, no dia dos fatos, estava de patrulhamento em equipe composta pelo Sargento Edivaldo José Araújo Pina e o Cabo Ryan Nunes de Souza e, segundo registrou no BO, a equipe recebeu informações de que Márcio Wendel Torres da Silva, conhecido como “De Menor”, estaria comercializando drogas na região.
A denúncia também incluía que David de Albuquerque Bezerra, com mandado de prisão em aberto, residia nas proximidades.
Ao chegarem ao local, eles teriam ouvido disparos de arma de fogo, momento em que um suspeito, ao tentar fugir, caiu diante da guarnição. Na versão do policial, o indivíduo portava um revólver calibre 38 e foi alvejado após apontar a arma na direção dos militares. Após o confronto, os policiais acionaram o SAMU, que encaminhou o suspeito, Rogério Vieira dos Santos, a uma unidade de pronto atendimento onde foi constatado o óbito. Na sequência, as equipes foram informadas sobre outro suspeito que havia invadido a casa de Ubiraci, Arnóbio Ferreira da Conceição.
No local, encontraram Márcio Wendel Torres da Silva, que tentou fugir por um compartimento da casa, mas foi capturado. Com ele, teriam sido encontrados diversos tabletes de substância entorpecente. A ação, registrada no Boletim de Ocorrência nº 00006/2025.102851-3, foi documentada pelo escrivão Diego Silva Dantas, com o objetivo de formalizar a apresentação do caso como tráfico de drogas, conforme previsto na Lei 11.343/2006.
O caso segue sendo acompanhado pela SDDH-PA. “Este tipo de conduta não pode ser considerada aceitável dentro do sistema de segurança pública e nem pela sociedade”, reforça o advogado Alberto da Costa Pimentel. Um inquérito policial foi aberto para apurar a morte de Rogério. A entidade acolheu e fez a escuta do poeta e outros familiares no dia 09 de abril deste ano.
“Eles informaram ser vítimas de uma ação da polícia militar, que consideramos ilegal e arbitrária, de acordo pelo que nos foi relatado. Estamos acompanhando o caso e tomando as medidas cabíveis para exigir dos órgãos competentes a apuração rigorosa sobre o ocorrido e a devida responsabilização dos envolvidos.”
A família também levou o caso à Corregedoria da Polícia Militar do Pará. Ubiraci e família permanecem com medo, pois temem novas represálias. “As viaturas continuam passando por aqui. Estamos todos abalados. Eles acham que somos cúmplices de um sujeito de quem nem lembrávamos mais”, desabafa Rubia Cleciane, filha de Ubiraci.
A escalada de violência da PM no Estado do Pará tem tido o aval do Governo do Estado. Segundo dados do Instituto Fogo Cruzado, o ano de 2024 já contabilizou 289 tiroteios relacionados a ações policiais. Em 2025, até o dia 31 de março, foram registrados 80 episódios desse tipo, indicando uma escalada preocupante da violência armada envolvendo forças de segurança. Esses números refletem não apenas a intensidade das operações policiais, mas também os riscos constantes enfrentados por moradores de áreas periféricas e de favelas, onde grande parte desses confrontos ocorre.
Até o fechamento desta reportagem, a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária e a Polícia Militar do Pará não haviam respondido aos questionamentos enviados pela Ponte. Após a publicação, a Assessoria de Comunicação Social da PM-PA enviou a seguinte nota à redação:
A Polícia Militar informa que os policiais investigados foram afastados das atividades. A PM esclarece que foi instaurado inquérito por meio da Corregedoria, com prazo de 60 dias para as investigações.