Polícia agride moradores de dois bairros pobres após morte de PM, denunciam comunidades

Moradores da Favela São Rafael, em Guarulhos (SP), e da Favela do Coruja, na zona norte da capital paulista, relatam enquadros violentos, invasão de casas e ameaças, desencadeadas após a morte de um cabo e sua filha

Moradores de duas comunidades vizinhas — a Favela São Rafael, em Guarulhos (SP), e a Favela do Coruja, na Vila Guilherme, zona norte da capital paulista — relatam uma rotina de medo, violações e incerteza por causa de uma onda de ações truculentas de policiais militares na região. Os abusos incluem invasões ilegais de casas, abordagens truculentas, ameaças e até o uso de bombas de gás lacrimogêneo contra um ato que protestava contra a falta de energia elétrica.

A onda de violência policial nos dois bairros teria sido motivada pelas mortes do cabo da PM Anderson de Oliveira Valentim, de 46 anos, e sua filha, Alycia Perroni Valentim, de 19. Ambos foram mortos no último sábado (24/2) quando o policial, que estava de folga, tentou impedir o assalto a uma farmácia no bairro da Vila Medeiros, na zona norte da capital paulista.

Uma mulher, que pediu para não ser identificada por receio de represálias, disse à Ponte que teve a casa invadida por ao menos seis policiais militares, sem mandado judicial. Ela também contou que policiais esmurraram um parente dela e bateram a cabeça dele numa parede, na terça-feira (27), na Favela do Coruja.

“A gente ouviu barulho de batida na porta e achou que era em casa. A menina que estava comigo foi ver, viu que era a polícia e entrou. Nisso, que ela entrou, já veio um monte [de policiais] atrás e eles já mandaram meu primo que estava sentado no sofá levantar a camisa. Ele levantou, mas não tudo, e os PMs já bateram na cabeça dele e gritaram ‘levanta direito’. Colocaram ele para fora e começaram a agredir”, afirma a mulher.

“Me colocaram de canto e perguntaram onde estava o Douglas [um dos suspeitos da morte do PM, que se entregou na terça-feira], eu não disse que não sabia e me enforcaram”, conta o primo dela. “Perguntaram de novo, eu disse que não sabia, eles bateram minha cabeça na parede. Falaram que, se eu não entrasse no jogo, iam colocar um quilo de cocaína na minha casa porque disseram que sabiam onde eu morava. Eu só falei que eu não tinha nada a ver, que eu era trabalhador.”

Segundo ele, as agressões duraram cerca de quatro minutos e depois os PMs foram embora avisando que iriam voltar. Por isso, ele decidiu ficar na casa de parentes em outro bairro por medo. “Eles estão fazendo isso com geral, dizendo para tomar cuidado para quando o ‘carro preto’ aparecer. Isso quer dizer o quê? Que vão matar todo mundo.”

De acordo com a mulher, parentes dos suspeitos identificados pelo crime moram na região, mas não têm relação com a morte do PM e da filha dele. “Tem outras pessoas que foram agredidas depois que o menino se entregou, mas têm medo de falar. Os policiais fizeram ameaça de chacina e prometeram tirar a luz, como fizeram em São Rafael, mas ainda não aconteceu.”

Ela se refere à queda de energia elétrica na comunidade São Rafael, em Guarulhos, na Grande São Paulo, nesta quarta-feira (28). A respeito disso, uma moradora de São Rafael conta que ouviu um barulho forte, como se fosse de explosão, do transformador durante a madrugada e acredita que policiais tiveram participação nisso. “Não estava acontecendo nada para ter sobrecarregado o transformador, foi um estouro que parecia tiro e foi bem na rua que depois prenderam um menino”, diz. “A rua estava toda escura e subiu um comboio de viaturas com o farol apagado. Se estava sem luz, por que eles não estavam com o farol aceso?”, pergunta.

A moradora de São Rafael afirma que as ações policiais começaram no bairro depois que policiais encontraram ali, no domingo (25), o carro que os homens que mataram o PM usaram para fugir.

Essa mulher relata que policiais que rondavam a região mandavam os moradores entrarem para casa e estabelecimentos fecharem as portas desde o início da semana. “Eles tratam a gente que nem lixo. [Gritam] ‘sai da rua, bando de zé povinho, entra pra dentro’ nos primeiros dias”, diz.

Outro jovem contou que foi abordado ao menos quatro vezes nos últimos três dias quando ia trabalhar na comunidade São Rafael. “Nunca teve blitz na entrada da favela e começou a ter. Eles agem com violência, xingando de filho da puta, revistando tudo, perguntando onde eu ia. Mesmo já ter sido revistado, no mesmo dia era revistado de novo pelos mesmos policiais”, conta. “Eu me sinto numa cadeia porque chega determinado horário, as pessoas ficam com medo de sair”, diz.

Segundo a moradora, os policiais teriam impedido técnicos da EDP, a empresa responsável pelo fornecimento de energia, de reestabelecerem o serviço durante a tarde e à noite na Rua São Sepé nesta quarta. “A gente resolveu fazer o protesto porque a companhia de luz desceu [na comunidade] à tarde e eles [policiais] não deixaram. Na segunda vez que a EDP veio [à noite], a população foi perguntar e eles [técnicos] disseram que a polícia não autorizou ligar a energia. E a população ficou revoltada porque teve morador que perdeu insulina, que perdeu marmita”, relata.

O protesto aconteceu por volta das 20h. “No Balanço Geral disseram no dia seguinte que a gente que estava impedindo a polícia de trabalhar, o que não é verdade”, disse, indignada, sobre uma reportagem exibida nesta quinta-feira (29) no programa matinal da Record TV em São Paulo no qual o apresentador Eleandro Passaia afirmou que a polícia teria pedido para os técnicos esperarem para fazer o conserto enquanto tentavam prender uma pessoa.

Em um dos vídeos veiculado na emissora e na página do Instagram do Jornal Guarulhos Hoje, aparecem moradores, inclusive crianças, com cartazes pedindo respeito e gritando “queremos luz”.

Em outros, é possível ver uma correria, com uma mulher com um corte no dedo e em outro policiais xingando enquanto mandam a população dispersar. “Vai para fora, caralho!”, grita um dos PMs.

Segundo a moradora, os policiais usaram bala de borracha e gás lacrimogêneo para a dispersão. “Independente de se o suspeito mora na comunidade ou não, a gente não tem nada a ver com isso. Por causa de uma pessoa todo mundo vai pagar? A gente paga nossos impostos e quem deveria nos proteger tá ameaçando morador. Disseram que o que fizeram na Baixada vão fazer aqui se não acharem o [suspeito] que falta”, denuncia.

Na Baixada Santista, desde os assassinatos de três policiais militares, o número de mortes cometidas pelas polícias já chegou a 38 desde 3 de fevereiro. Instituídas por Tarcísio e Derrite em reação às mortes de policiais, as Operações Escudo são consideradas ações organizada de vingança, criticadas por moradores de bairros pobres e por ativistas de direitos humanos pelas práticas de execuções, torturas e ameaças, que já foram denunciadas duas vezes na Organização das Nações Unidas (ONU) e também na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

De acordo com um release da Secretaria de Segurança Pública, um adolescente de 17 anos que teria confessado envolvimento nas mortes do PM e da filha dele foi apreendido em Guarulhos, sem especificar a localização, durante na noite desta quarta, e que três homens foram identificados como autores do crime. No dia anterior, um dos suspeitos, Douglas Henrique de Jesus, teria se entregado após interferência da família.

O que diz a EDP

A reportagem procurou a empresa sobre a denúncia dos moradores e do serviço de energia na região. A assessoria não respondeu a respeito da atuação da PM no local e enviou a seguinte nota:

A EDP informa que foi acionada na noite de ontem (28) para o atendimento a uma ocorrência de falta de energia na Vila São Rafael, em Guarulhos. Uma equipe técnica foi mobilizada e concluiu os reparos na mesma noite.

O que diz a polícia

A Ponte também procurou a Secretaria de Segurança Pública e a Polícia Militar sobre as denúncias. A Fator F, assessoria terceirizada da pasta, enviou a seguinte resposta:

A Polícia Militar informa que segue com o patrulhamento preventivo e ostensivo nas regiões citadas e conta com informações da população para a prisão de todos os envolvidos na morte do policial e de sua filha, que foram baleados e mortos em um assalto,  na Avenida Nossa Senhora do Loreto, Vila Medeiros, zona norte de São Paulo, no último sábado (24).  A Corregedoria da Instituição está à disposição para registrar e apurar toda e qualquer denúncia contra seus agentes.

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