Vídeo mostra operação da Polícia Civil e da GCM em ação de interdição feita pela Prefeitura de São Paulo; moradores denunciam desamparo e abordagem violenta: “acordamos com o pé na porta”
Dezenas de famílias, com crianças, pessoas com deficiência e idosos moradores da Luz, no centro da capital paulista, ficaram sem os seus pertences, documentos e sem ter para onde ir após ações de interdição de hotéis e pensões feitas pela Prefeitura de São Paulo na quarta-feira (20/10) e por volta das 8h da manhã de quinta-feira (21/10). O despejo foi acompanhado pela Inspetoria de Operações Especiais (Iope), da Guarda Municipal Metropolitana (GCM) e agentes da Polícia Civil, que vasculharam, sem mandado judicial, os imóveis com cães farejadores na busca de substâncias ilícitas.
A ação emparedou ao menos cinco imóveis populares na rua Helvétia e na alameda Dino Bueno. Zelador de um dos hotéis, Walter Miranda descreveu como foi a chegada das autoridades: “acordamos com o pé na porta. O porteiro subiu desesperado para me avisar e o um cara da Iope segurou ele. Só sei que acordei com o pé na porta do meu quarto, puxando as cobertas, me dando chute e pontapé, falando ‘sai, sai, sai que aqui vocês não ficam mais'”.
O zelador diz que levou chutes dos guardas, acabou caindo na escada e ficou com ferimentos na boca e no quadril. “Eu não consegui tirar nada, estou apenas com a roupa do corpo. Sou trabalhador, estou sem moradia, não tenho nenhuma passagem na polícia”, relatou. Larissa, uma das residentes, diz que também foi acordada pelos guardas da GCM, que lançaram spray de pimenta e mandaram desocupar o local. Em outro relato, William de Jesus conta que ele e a esposa foram expulsos do quarto e um amigo que ajudou as famílias na desocupação foi abordado de forma truculenta.
O MPSP (Ministério Público de São Paulo) entrou com uma ação civil pública contra a Prefeitura de São Paulo no TJSP (Tribunal de Justiça de São Paulo) e obteve uma liminar que suspendeu a demolição dos imóveis tombados. Segundo a advogada Juliana Valente, da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP, que acompanhou a ação na quinta-feira, a única documentação apresentada pelos agentes foi um auto de interdição e lacre dos prédios por condições de segurança, insalubridade e riscos na estrutura, determinação judicial feita com base em laudos da Defesa Civil.
“Mas, de fato, o que ocorreu foi o despejo de famílias em situação de vulnerabilidade social, tudo isso sem documentação legal. Não houve aviso prévio para essas famílias, não tinha documentação de ordem de despejo e detectei que havia crianças, idosos, pessoas com deficiência, pessoas do grupo de risco [da Covid-19], despejadas sem o acompanhamento do Conselho Tutelar, assistente social e sem serem cadastradas pela prefeitura”, relatou à Ponte.
A advogada também gravou a ação da IOPE e da Polícia Civil, que foi paralisada, em um dos imóveis. No vídeo, um guarda comenta de uma bicicleta que seria apreendida e depois, ao constatar que estava sendo filmado junto com a delegada responsável pela operação, diz que “fica difícil de trabalhar” ao ser exposto. Um outro guarda se dirige a um agente dizendo “como ela está filmando a gente, filma ela também”. Filmar ações policiais e de demais funcionários públicos é um direito que está expresso na Constituição.
A ação de interdição também foi acompanhada pelas Comissões de Direitos Humanos da ALESP e Câmara Municipal. Ao mesmo tempo, por volta das 11h30 da manhã de quinta-feira (21), uma reunião ocorreu na Subprefeitura da Sé, com deputados estaduais, vereadores, representantes da OAB e a Defensoria Pública de São Paulo na tentativa de reverter o despejo.
À Ponte, a defensora Fernanda Balera criticou a ação e afirmou que o órgão está avaliando o que é possível fazer. para garantir a integridade dos moradores “Esses imóveis já estão degradados e interditados há muito tempo, então já era uma situação conhecida do poder público. E nenhuma ação de remoção poderia ter sido feita como foi, sem deixar as pessoas retirarem seus pertences, sem fazerem um encaminhamento adequado”.
Famílias desamparadas
Erivaldo Ribeiro saiu para trabalhar na Avenida Paulista antes dos agentes da prefeitura e do Iope chegarem à pensão. Quando retornou à Luz, foi pego de surpresa com a interdição e não conseguiu pegar seus pertences: “tinha minhas roupas, meu calçado, minhas cobertas, tudo o que o pobre tem. O pobre já não tem nada. Fui ganhar meu dinheiro para pagar a diária”, lamentou o trabalhador, que mora no centro há 20 anos.
“O que a gente ganha não dá para pagar um lugar melhor. Então, o que você ganha serve simplesmente para se alimentar e pagar para você não dormir na rua, não beber, não usar droga e nem nada. Infelizmente é assim, vivemos num país em que o descamisados não tem valor nenhum. Enquanto esses caras tem suas patentes, suas casas, suas empregadas, seus interesses, aqueles descamisados que se lasquem”, relatou em vídeo a discriminação das autoridades com as pessoas que moram na Luz.
Sem serem realocados, Erivaldo, pais, mães e seus filhos pequenos dormiram na rua após a desocupação dos prédios. Moradores e comerciantes contam que tiveram que retirar eletrodomésticos e roupas às pressas e parte ainda ficou no local. Em depoimento gravado, Wellington, locatário de um hotel da alameda Dino Bueno, afirma que paga aluguel à imobiliária que administra o prédio e não teve acesso a nenhuma decisão sobre interdição.
Assim como Erivaldo, Francisco Soares, que é cadeirante, também não pôde voltar para a pensão que morava há sete meses. “Não recebi aviso nenhum. Sai de manhã e quando voltei na hora do almoço o hotel estava lacrado. Minhas coisas ficaram todas lá”. Ele conta que a prefeitura não ofereceu nenhum tipo de ajuda.
Desalentado, um homem acompanhado da esposa e quatro filhos disse que eles não tinham comido e nem tinham para onde ir após a interdição. Os móveis da família foram amontados na calçada. “Moramos aqui há 5 anos, pagávamos aluguel e agora estamos desabrigados. Precisamos de uma força e de apoio pelo menos para essas crianças. Nós ganhamos o dinheiro para pagar aluguel, porque nós nos mantemos de doação de marmita, cesta básica”.
Giulia Grillo, defensora dos direitos humanos que atua na região, conta que a população do local está ciente do bloqueio de imóveis pela prefeitura, no entanto, desta vez não houve nenhum comunicado oficial sobre a ação desta semana. “É muita arbitrariedade não fazer o pessoal sair de lá com dignidade”, denuncia. “As pessoas não estão mais lutando pra ficar lá. Elas querem sair e querem pelo menos retirar as coisas delas. Eles não querem perder as poucas coisas que eles têm”.
“Eles bloqueiam e não deixam. Por exemplo a Rina, que tem três filhos, inclusive uma menininha de um mês, ela vive de um bar lá na rua Helvétia, ontem ela me ligou e falou: ‘Giulia, eles não estão deixando eu passar para tirar minhas coisas’. Eles simplesmente fecharam o bar dela com todas as coisas lá dentro”, descreve. O que temia a comerciante peruana, de 37 anos, aconteceu. Seu bar foi saqueado na noite desta quinta-feira (21). Segundo ela, geladeira, cafeteira, freezer e micro-ondas foram alguns dos itens levados.
Outro lado
A Ponte questionou a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo sobre a operação sem mandado feita junto à ordem de interdição. A pasta enviou a seguinte nota:
“Policiais civis do 77º DP estão prestando apoio a uma ação da Subprefeitura da Sé, na região da Nova Luz, de fiscalização e emparedamento de imóveis utilizados para o tráfico e guarda de drogas, também para coibir o consumo de entorpecentes por dependentes químicos, o furto de energia e limpar os fios aéreos, repletos de objetos lançados por vândalos, na região. Durante o trabalho, foi constatado furto de água e energia em praticamente um quarteirão da região.
Paralelamente, nesta quinta-feira (21), policiais da 1ª CERCO (Central Especializada de Repressão a Crimes e Ocorrências Diversas), da 1ª Delegacia Seccional de Polícia, seguem com a operação Hermes II, também na região da Nova Luz, para coibir o tráfico de drogas por meio de entregas rápidas. Ao todo são 28 mandados de busca e apreensão. Até o momento, 21 aparelhos telefônicos e três computadores foram apreendidos. Além de dois fragrantes em andamento.”
Questionada sobre a ação, a Prefeitura de São Paulo encaminhou nota onde diz que cerca de 20 guardas civis metropolitanos acompanharam o emparedamento de imóveis nesta quinta-feira (21) “com objetivo de preservar a integridade física de eventuais ocupantes do imóvel, além de inibir ações delituosas voltadas ao tráfico de entorpecentes”.
A nota também diz o que local será destinado à construção de moradia: “as unidades habitacionais que serão construídas vão ser destinadas às 190 famílias de baixa renda que residiam no local e foram previamente cadastradas pela Secretaria Municipal de Habitação (SEHAB) em 2017”. Acerca da falta de aviso e assistência aos moradores que estavam nos prédios interditados, a Ponte não obteve resposta.