Organizações internacionais também condenam a prisão de José Vargas, que diz ter sido preso por conta de uma armação para prejudicar a investigação sobre os mandantes do massacre. Em janeiro, a principal testemunha da chacina foi executada, após ter revelado que recebia ameaças de policiais
“Fui preso para prejudicar a investigação dos mandantes da chacina de Pau D’Arco”. A denúncia é de José Vargas Júnior, advogado dos sobreviventes do massacre que afirma estar sendo vítima de uma armação da Polícia Civil e do Ministério Público. Sua prisão vem sendo questionada por órgãos internacionais e nacionais, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que acusou a polícia de ter ocultado provas que o inocentariam.
O massacre completa 4 anos nesta segunda (24/5), sem que nenhum dos 16 réus – policiais civis e militares – tenham sido condenados pela execução de 10 trabalhadores rurais sem-terra, que ocupavam a fazenda Santa Lúcia, em Pau D’Arco, no Pará. “Todos estão soltos e seguem trabalhando”, diz Vargas, em referência aos policiais que, segundo ele, andam pela cidade encarando as testemunhas que os acusam.
Neste ano, o caso ganhou novas proporções. Em janeiro, um dos sobreviventes da chacina e considerado a principal testemunha do crime, Fernando Araújo dos Santos, foi assassinado com um tiro na nuca. Semanas antes, ele afirmou à Repórter Brasil estar sendo ameaçado por policiais. Também em janeiro, o advogado da defesa das vítimas da chacina foi preso por conta de mensagens irônicas que enviou por WhatsApp, sob acusação de envolvimento em outro caso de homicídio.
Durante os 25 dias em que ficou na cadeia (ele agora está em prisão domiciliar), Vargas começou a considerar que estaria sendo vítima de uma armação – suspeita que ele diz ter confirmado após ter acesso à íntegra dos áudios de WhatsApp que foram usados pela Polícia Civil e pelo Ministério Público Estadual para pedirem sua prisão. O acesso às provas pela defesa ocorreu somente em 23 de abril, 113 dias após sua prisão.
Com a transcrição completa em mãos, a defesa do advogado se deu conta que o diálogo que o teria incriminado era composto por 567 mensagens pelo WhatsApp – a polícia e o MP consideraram apenas 12 mensagens para basear a prisão de Vargas, o equivalente a 2% da conversa.
“[Houve] Uma clara ocultação de provas por parte das autoridades persecutórias durante a fase investigativa”, disse o advogado Marcelo Mendanha, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Redenção e responsável pela defesa de Vargas. Ele se refere ao fato de a Polícia Civil e o Ministério Público terem ignorado o restante da conversa, em que havia provas para inocentar Vargas. Mendanha diz ainda que os órgãos investigadores não levaram em conta o tom irônico e as piadas ditas por Vargas nessas 12 mensagens para incriminá-lo.
“A polícia permite que a gente faça qualquer tipo de ilação contra ela, pois ocultou provas que inocentam o Vargas”, afirma Mendanha. “O pedido de prisão foi feito sem apresentar ao juiz a íntegra dos áudios”, completa.
Com base no arquivo completo dos áudios, a subseção da OAB de Redenção entrou com um habeas corpus na sexta-feira (14), pedindo o fim da prisão domiciliar, a suspensão do processo e a nulidade da extração das conversas de WhatsApp realizadas pela perícia da Polícia Civil.
Além da OAB, o caso de Vargas é acompanhado pelo Alto Comissariado Para Direito Humanos da ONU, que trata de prisões arbitrárias, e mais de 20 organizações de direitos humanos, entre elas a Front Line Defenders, Anistia Internacional, Comissão Pastoral da Terra, Justiça Global, Terra de Direitos e a Articulação dos Povos Indígenas no Brasil (Apib). Todas denunciaram a prisão e manifestaram apoio público a Vargas.
Contudo, em decisão na segunda (17), a desembargadora relatora do habeas corpus negou o pedido de liminar, e a audiência de instrução (para escutar a defesa) que estava prevista para terça (18) foi suspensa sem que fosse definida uma data.
Diálogos ignorados
O colega de Vargas, Marcelo Borges, também está preso, acusado de ter tramado o desaparecimento e a morte de Cícero José Rodrigues, candidato a vereador de Redenção e presidente de uma associação de pessoas com epilepsia.
Cícero desapareceu em 20 de outubro. Um mês depois, a Justiça bloqueou R$ 270 mil na conta da prefeitura em resposta a um processo movido pela associação presidida por Cícero. Borges começou a ser então investigado. A tese da polícia e da promotoria é a de que Borges e Vargas teriam participado da morte de Cícero para ficar com os recursos.
A denúncia que levou à prisão dos dois advogados usa apenas 12 das 567 mensagens que eles trocaram sobre a morte de Cícero. Um dos trechos selecionados pela polícia foi um áudio de Vargas fazendo piada sobre o que Borges poderia falar ao prefeito depois do bloqueio dos valores na conta da prefeitura: “…olha, esse é só o primeiro dos muitos que virão nos próximos anos, mas como a gente não quer te criar problema, a gente sumiu o Cícero, pra resolver isso aqui facilmente”, diz Vargas, que usa tom irônico do começo ao final da mensagem, rindo ao pronunciar a palavra “facilmente”. Na sequência deste áudio, Marcelo responde com três linhas de “hahaha”.
Outro áudio, ainda mais carregado de tom jocoso, também é citado no pedido de prisão. Vargas fala: “Bom dia, mais novo milionário do pedaço! Estou chegando em Belém nos próximos dias, o Marcelo [prefeito de Redenção] vai estar lá. Podia encontrar ele lá em Belém mesmo. Ham? (risos) Falar ‘olha, estou aqui para falar duas coisas: sobre o sequestro do Cícero e o sequestro de valores da conta da prefeitura’”.
Mais uma vez, Vargas ri enquanto pronuncia as últimas palavras da mensagem. A este áudio, Marcelo responde com um emoji de cachorro dançando. No pedido de prisão, o texto apenas transcreve o conteúdo e conclui: “demonstrando, assim, o envolvimento do investigado com os fatos”.
Segundo a defesa, os diálogos mais intensos sobre o sumiço de Cícero — que provariam a inocência dos dois advogados — aconteceram antes de 26 de outubro, data que a polícia e Ministério Público usaram como ponto de partida para a denúncia.
Em 21 de outubro, Vargas pergunta a Borges sobre o paradeiro de Cícero, demonstrando preocupação. “Agora tô ficando preocupado”, escreveu. No dia seguinte, o advogado volta a perguntar por Cícero, questiona se já tem alguma pista e quem foi a última pessoa a falar com Cícero.
O diálogo também revela a preocupação de Vargas com as denúncias que Cícero fizera ao MPF sobre suposta corrupção na prefeitura de Redenção em contratos de compras de cabines de desinfecção de covid na cidade, com uso de verbas da União. “Acho que vai ter que falar para a PC [Polícia Civil] que ele estava atrás daquela empresa”, escreve Vargas para Borges. Vargas ainda manda as seguintes mensagens: “Carai maluco” e “Apagaram o Ciço”
Vargas então avisa Borges que iria informar a coordenadora do núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado do Pará, Juliana Oliveira, sobre o sumiço de Cícero. Logo depois, diz que ela irá acionar a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Pará. De fato, o deputado estadual Carlos Bordalo (PT), integrante da comissão de direitos humanos, pediu celeridade nas investigações do desaparecimento de Cícero.
“E imaginar que tanto o representante ministerial, quanto o delegado de polícia leram todas essas mensagens e, mesmo assim, inclinaram-se pela imputação do crime de homicídio e delitos conexos ao réu”, escreve Mendanha na resposta à acusação.
Procurada, a Polícia Civil do Pará não respondeu às perguntas enviadas pela Repórter Brasil, que questionou a respeito das omissões apontadas pela defesa de Vargas. Disse apenas que após concluir as investigações remeteu ao Judiciário. O Ministério Público do Estado do Pará também não respondeu aos questionamentos enviados pela reportagem. Informou que o promotor responsável pela denúncia de Vargas, Leonardo Caldas, não atua mais na promotoria de Redenção. Segundo o órgão, o promotor atual só se manifestará nos autos do processo. Leia as íntegras das notas.
‘A polícia quer te pegar’
Vargas diz que, enquanto estava na cadeia, sabia que era vítima de uma injustiça, mas que realmente tinha falado bobagem e sido irônico de uma maneira inadequada. “Carregava a culpa de ter feito uma piada infeliz”, afirma. Porém, começou a receber recados na prisão. “Doutor, como você dá um vacilo desse? A polícia toda quer te pegar”, disse a ele um agente penitenciário.
Sem acesso à íntegra da conversa, Vargas demorou a perceber que era vítima de perseguição. Os recados que recebeu de agentes de segurança foram fundamentais, pois diziam que estava em curso uma perseguição da polícia para impedir que seu trabalho levasse à descoberta dos mandantes da chacina de Pau D’Arco.
Por seu trabalho, o advogado se tornou uma pedra no sapato dos poderosos da região. Moveu ações que contrariam grandes grupos econômicos, como na defesa dos indígenas Kayapó contra a invasão de seu território por mineradoras e ganhou ação emblemática movida por trabalhadores sem-terra contra a JBS, maior produtora de proteína animal do mundo.
A mesma polícia apontada por Vargas como responsável por tirar as mensagens de contexto para prendê-lo é suspeita de ter assassinado a principal testemunha da chacina de Pau D’Arco no mesmo dia que o advogado deixou a cadeia, em 26 de janeiro.
Fernando Araújo dos Santos era a testemunha que guardava na memória a maior riqueza de detalhes sobre o massacre. No dia 24 de maio de 2017, ele viu seu namorado ser executado e teve de fingir que estava morto para escapar.
Desde a chacina, a equipe da Repórter Brasil vinha acompanhando Fernando para um documentário. Ele narrou, em detalhes, como a polícia rendeu, humilhou e torturou seus colegas antes de executá-los com tiros à queima roupa há quatro anos. Em sua última entrevista, duas semanas antes de ser assassinado, Fernando disse: “Eu sinto que tá vindo coisa pesada pra nós aqui na [fazenda] Santa Lúcia”.
Ele contou sobre recados que chegaram, em dezembro, de três pessoas diferentes, mas sempre com a mesma mensagem. “Os policiais estão pensando em vir aqui dar um jeito de não haver mais testemunha antes do julgamento. Não há testemunha, não há julgamento”. Além dele, outros sobreviventes que moram no acampamento receberam as mesmas mensagens.
Desde que a chacina ocorreu, uma ordem de despejo para retirar os trabalhadores sem-terra do local onde aconteceu a chacina continua em vigor, a pedido dos supostos proprietários da área, a família Babinski. A família, que se diz proprietária da área em disputa, foi alvo de busca e apreensão dentro da investigação sobre os mandantes da chacina. Apesar de haver indícios de que a polícia agiu em associação com os fazendeiros, a investigação nunca foi concluída pela Polícia Federal ou pelo Ministério Público Estadual.
O despejo, segundo os assentados, deve acontecer assim que a pandemia acabar. Enquanto isso, as cerca de 200 famílias que retomaram a ocupação na fazenda vivem em estado de angústia e sob ameaças permanentes. “Ficamos cismados. O risco que corremos é acabar como o Fernando”, afirma Manoel Gomes Pereira, presidente da associação dos moradores do acampamento.