Famílias da Ocupação Triunfo denunciam ações policiais sem mandado judicial com participação de Cesar Augusto Muzel Aprile, filho de Victor Aprile, que está lotado em delegacia fora da jurisdição do imóvel ocupado
Há algumas semanas, moradores da Ocupação Triunfo, a Rua do Triunfo, no centro da capital paulista, ligada à Frente de Luta pela Moradia (FLM), relatam medo e indignação por uma ameaça que, denunciam, está sendo chancelada pela polícia graças a laços de família: o prédio abandonado está registrado no nome de Victor Muzel Aprile, pai do investigador Cesar Augusto Muzel Aprile, presente em situações de ameaças contra o movimento e em uma ação policial que, no dia 15 de julho, tirou famílias à força da propriedade, sem mandado judicial.
Na ocasião, três moradores foram levados ao 3º DP (Campos Elíseos), no centro de São Paulo. A operação foi realizada por um equipe policial do 73º DP (Jaçanã), localizado na zona norte da cidade, em que trabalharia Cesar Aprile, segundo alegam organizadores da ocupação. Desde o último sábado (21/7), os moradores também relatam a presença de viaturas policiais em frente ao prédio, que estariam realizando abordagens e ameaças de invadir o prédio com um mandado judicial, conforme registrado por testemunhas em vídeos acessados pela reportagem.
A Secretaria de Segurança Pública confirmou a ação do dia 15 de julho, mas alegou que a polícia só entrou no prédio com a autorização de um dos moradores, que por sua vez negam ter realizado. No boletim de ocorrência, os policiais relataram que atenderam a uma denúncia de “desvios de água e de energia” no local, e que, ao chegarem, constataram o furto de energia, também conhecido como “gato”. Os três moradores foram detidos e liberados no mesmo dia.
O advogado que acompanha o caso, William Fernandes, está pedindo explicações ao governo – já que a ação do dia 15 de julho foi realizada pela equipe do 73º DP (Jaçanã), de outra zona distrital da cidade, e com a intervenção do filho do proprietário.
“Foi usado o aparato estatal para um flagrante, com objetivo de proceder uma reintegração de posse sem mandado judicial. Isto é comprovado pelo fato de uma viatura de outro local ter procedido a diligência. Queremos entender se houve este uso indevido, ou não. O resultado dessa ação desastrada é que pode ocorrer o indevido indiciamento de três pessoas por furto de energia e água”, explica.
O advogado também conta que o laudo pericial que pode indicar a presença de “gato” ainda não saiu, mas que, mesmo se comprovado o desvio, os moradores não podem ser indiciados, já que água e luz são direitos essenciais. O laudo também não ajuda a comprovar se foram os moradores que ligaram a água e a luz.
Segundo ele, uma reunião deve ser solicitada assim que acabar o recesso parlamentar na cidade, já que a conversa deve ser acompanhada por vereadores da Câmara Municipal de São Paulo. O advogado também demonstra preocupação com a presença da polícia desde o último fim de semana, que tem realizado abordagens para verificar se os moradores que transitam pela rua pertencem, de fato, à ocupação.
“Não dá para que dizer que as abordagens são irregulares, mas merecem da nossa parte uma atenção, a fim de verificar se trata de uma criminalização das pessoas que estão em ocupação. Trataremos também desse assunto com a Secretaria de Segurança Pública”, afirma.
Em relação à participação do policial que é filho de Victor, Willian também explica que a situação não é ilícita, mas deve ser investigada.
“Se comprovado que a atuação foi ‘motivada’ (esse é o fator central) em razão deste vínculo familiar, sem nenhuma ordem judicial ou finalidade pública, o fato pode ser considerado diversos crimes (a tipificação legal vai depender do Ministério Público), inclusive prevaricação”, indica.
“Ele disse que estamos cavando a nossa cova”
Uma moradora, que preferiu não se identificar, alega que, na véspera da operação, o proprietário visitou o local para dar um último aviso antes de acionar a polícia no dia seguinte.
“Ele arrancou nossa placa de identificação, disse que sabia o nome completo de cada um, que iria acionar a polícia, que estávamos cavando a nossa própria cova e que iríamos cair direto no buraco, e que sabia onde morava nossa família. No dia da ação, o César (filho de Victor), veio, disse meu nome completo, que sabia o nome do meu irmão e que éramos uma quadrilha”, conta.
Antes dos fatos mais recentes, a visita de pai e filho à propriedade também já teria acontecido em situações mais hostis. Em uma delas, César deu três tiros ao alto, como forma de intimidar as famílias. No vídeo a seguir, é possível encontrar registros de momentos diversos em que César, Victor e a polícia aparecem intimidando os moradores, em encontros antes, durante e após a ação realizada no dia 15 de julho:
Polícia não pode impedir direito ao protesto, explica advogada
Daisy Ribeiro, assessora jurídica da organização Terra de Direitos, lembra que, apesar de não ser incomum que proprietários acionem a polícia para conflitos com ocupações de moradia popular, ações policiais só podem acontecer em casos de mandado judicial ou em casos de esbulho — a perda da propriedade a partir de violência, clandestinidade ou precariedade. Nesse caso, Daisy alerta que prédios abandonados não podem ser enquadrados como esbulho.
“Há uma série de requisitos que precisam ser preenchidos para a situação ser caracterizada como esbulho, como se houve violência para a ocupação ou se havia uma posse prévia. Se um prédio está abandonado, não entendo que há configuração desse tipo penal”, explica.
No entanto, Daisy alerta que as famílias das ocupações não podem ser criminalizadas em contextos em que estão em busca pelo acesso a direitos.
“Os casos de ocupação populares para o direito à moradia não podem ser vistos como casos de polícia, mas como direito ao protesto, já que são famílias que não estão acessando um direito garantido constitucionalmente e que é violado para elas todos os dias. É importante que todos os poderes da União sentem à mesa para buscar soluções adequadas que garantam o direito à moradia”, alerta.
A advogada acredita que há uma sensibilização do poder público sobre os movimentos de moradia popular, mas que ainda há muitos riscos aos movimentos. Ela destaca dados da pesquisa da Terra de Direitos com a Justiça Global lançada recentemente e que levantou que, nos últimos quatro anos, defensores da luta pelo direito à moradia receberam 493 ameaças, correspondendo a 51% do total entre mensagens recebidas por ativistas das temáticas analisadas pelo estudo.
Defensores do direito à moradia também somam 146 assassinatos, 83 episódios de criminalização e 24 de deslegitimação de suas lutas dentro do mesmo período.
Ameaça de criminalização dos movimentos
Um dos parlamentares que acompanha o caso, o vereador Manoel Del Rio (PT) se preocupa que a ação policial realizada na última segunda-feira resulte na normalização de ações policiais que não respeitem direitos básicos dos moradores das ocupações na cidade, motivo pelo qual destaca a urgência de um esclarecimento do governo municipal.
O vereador lembra que as ações contra a ocupação vem de um momento delicado para diversas famílias em São Paulo, que não têm onde morar, enquanto a cidade conta com diversos imóveis abandonados, como o prédio da Rua do Triunfo que, antes de março, encontrava-se sem uso. Manoel Del Rio destaca os dados preliminares do Censo IBGE 2022, que indicam que São Paulo tem quase 590 mil imóveis vazios, equivalente a 18 vezes a população de rua da cidade.
“Vivemos índices recordes de desocupação de propriedades, e no entanto a cidade concentra altas taxas de moradores vivendo em situação de rua. Por isso, é urgente cobrar que ações como essa, que acontecem sem mandado, sejam exceção e não a norma, diante de um momento tão urgente enfrentado por famílias que não têm onde morar”, alerta.
Outro lado
Proprietário do imóvel, Victor Muzel Aprille confirmou que César Aprille é seu filho e que esteve com ele no imóvel em diversos momentos para “negociar com a ocupação”. Ele afirma que não realizou ameaças aos moradores e que tem sido hostilizado constantemente pelas famílias nas tentativas de negociação.
Já a Secretaria de Segurança Pública emitiu uma nota logo após o ocorrido na última segunda-feira, mas negou explicar por que a operação foi realizada pelo batalhão de outra unidade, ou confirmar a participação de César Aprille no acionamento da equipe que agiu em favor pelo pai sem o mandado. Também não explicou sobre a presença recente da polícia no local.
Veja a nota:
Policiais civis do 73º Distrito Policial (Jaçanã), nesta segunda-feira (17), foram acionados pelo proprietário de um prédio, com a denúncia de desvios de energia elétrica e água em uma ocupação localizada na Rua do Triunfo, na região central de São Paulo. A entrada da equipe foi autorizada pelo investigado, de 41 anos, que foi ouvido, acompanhado de um advogado na delegacia. Foi requisitada perícia para o local e outras diligências estão em andamento para auxiliar no esclarecimento dos fatos. Nenhum objeto foi apreendido. As investigações prosseguem por meio de inquérito policial instaurado pelo 3º Distrito Policial (Campos Elíseos), responsável pela área dos fatos.