Policial negro preso e agredido conta que já era perseguido antes de entrar na corporação

O soldado da PM Anderson César da Silva foi denunciado por ser um homem negro andando com uma menina branca (a própria filha de 4 anos), abordado violentamente e preso; ele conta que já era perseguido antes mesmo de ingressar na força e precisou lutar na Justiça para ser policial

Anderson César da Silva é músico da banda da Polícia Militar de Minas Gerais | Foto: Reprodução / Arquivo Pessoal

Esta semana, a Ponte trouxe a história do policial militar Anderson César Silva, que foi espancado na frente da própria filha de quatro anos e teve seu cachorro alvejado por outros policiais em Barbacena (MG). E, que, no lugar de ter justiça, está sendo processado pela Justiça.

Em entrevista, Anderson falou de seu passado e revelou que o histórico de agressões começou antes mesmo de se tornar policial, e também como teve que lutar para entrar e permanecer na carreira.

Vítima antes de ser policial

Sua história começa em fevereiro de 2015. Anderson voltava para casa junto com um amigo depois de ter tocado em um bloco de Carnaval em Barbacena (MG), a cidade onde ainda vive e serve à corporação, e onde ocorreu sua prisão no começo deste ano.

Cansando, estava retornando para cara depois daquela primeira noite de Carnaval. Porém, ele e o amigo foram abordados por dois policiais, que agiram com truculência. “Questionei  a abordagem e o policial disse que estava desobedecendo. Recebi chutes, tapas na nuca, estocada de cassetete na costela, e bicudas”, lembra Anderson.

O músico conta que durante a abordagem comentou que tinha passado no concurso da PM e que em breve faria parte da corporação. Ele afirma que os policiais disseram que ele nunca assumiria o cargo.

No boletim de ocorrência, lavrado naquela noite na 1ª Delegacia de Polícia Civil de Barbacena, consta que Anderson teria cometido o crime de desobediência contra os policiais e teria resistido à prisão.

“Me algemaram, na sacanagem, jogaram no xadrez da viatura e rodaram comigo a noite inteira até resolverem fazer BO de desobediência e me atrapalhar no meu concurso”, relembra.

Em julho daquele ano, a Academia de Formação da Polícia Militar de Minas Gerais indeferiu a matrícula de Anderson César alegando que o mesmo não poderia fazer o curso de formação pois não tinha “idoneidade moral” para assumir o cargo de policial. Ao passar no concurso, o músico apresentou todas as certidões negativas solicitadas pelo certamente atestando que não tinha antecedentes criminais.

A advogada Adélia Campos entrou com uma liminar pedindo para que Anderson pudesse assumir a vaga que ele conquistou através de concurso público. A defensora baseou a solicitação no baixo poder ofensivo imputado ao seu cliente, bem como que ainda não havia tido julgamento sobre o processo e que o mesmo havia sido suspenso. 

Anderson está na PM desde 2015 | Foto: Reprodução / Arquivo Pessoal

“A pena prevista para o crime de desobediência o classifica como crime de menor potencial ofensivo, cuja competência para processar e julgar é do Juizado Especial. Anderson comprova que é pessoa idônea e que tem plenas condições morais de ingressar na Polícia Militar de Minas Gerais e que jamais praticou qualquer crime doloso que pudesse ser considerado como desabonador de sua conduta”, descreveu Adélia no pedido.

A batalha interna

Um mês após o pedido, a juíza Maria Flavia Albergaria Costa concedeu a liminar que autorizou que Anderson fizesse o curso de formação da PM de Minas Gerais e, depois de concluído, assumisse o seu cargo como soldado e músico da corporação. Porém, o Estado contestou a liminar e pediu que o caso fosse revisto.  

“A apresentação de certidão negativa de antecedentes criminais é, de fato, um dos meios legítimos e razoáveis de se aferir objetivamente a idoneidade moral de uma pessoa. Entretanto, o fato de o procedimento criminal instaurado contra o Autor (Anderson) ter sido suspenso não interfere de plano pela sua idoneidade moral e social, como o mesmo tenta fazer crer, uma vez que a primariedade, por si só, não induz ao preenchimento dos requisitos exigidos e previstos no Edital”, argumentou juntou ao Tribunal de Justiça o procurador do Estado, Leonardo Bruno Marinho Vidigal.

A contestação da procuradoria foi acatada pela juíza Maria de Lourdes Tonucci Cerqueira Oliveira. Assim, com menos de um ano exercendo o cargo conquistado através de concurso público, Anderson César da Silva foi expulso da Polícia Militar de Minas Gerais. “Fiquei desempregado e tive que voltar a morar com a minha mãe. Passei um ano fora da polícia. Nesse período minha filha nasceu e eu desenvolvi depressão, doença que tenho até hoje”, conta Anderson.

Adélia Campos entrou com um novo recurso para que o caso fosse julgado por um colegiado do TJMG, levando em consideração, segundo ela, que a juíza que definiu a expulsão de Anderson da PM “equivocou-se em seus fundamentos, análise e decisão”. Três juízes ficaram responsáveis de decidir se Anderson deveria ou não retornar para a Polícia Militar de Minas Gerais.

“Com o máximo respeito ao entendimento da douta magistrada que proferiu a sentença, entendo que a decisão merece reforma. A exclusão do candidato do certame em razão da alegada falta de comprovação da idoneidade moral contraria o Princípio da Presunção de Inocência, previsto na Constituição Federal”, declarou o juiz relator Nicolau Lupianhes. 

Porém o juiz Silvemar José Henriques Salgado teve outro entendimento. “Tenho entendimento que o candidato ao cargo de policial militar, que é indiciado em inquérito civil ou militar, não preenche o critério de idoneidade necessária para ingressar no curso de formação inicial”.

Coube à juíza Claudia Regina Macegosso dar o veredicto final. “Ainda que pudesse se entender que o período de prova de cumprimento de condições da suspensão condicional do processo poderia ser incompatível com a necessária disponibilidade para o exercício do cargo público, no presente caso, esta ação já foi extinta a punibilidade, não podendo produzir efeitos por inexistir condenação”, registrou a magistrada.

A justiça contra Anderson

Anderson retomou seu posto na banda da Polícia Militar de Minas Gerais no primeiro semestre de 2018. “Eu não tenho nenhuma ocorrência por indisciplina dentro do quartel. Sempre tive bom comportamento e cumpri bem o meu trabalho”, diz.

Mas desde que voltou ao serviço Anderson afirma que nunca se sentiu tranquilo no ambiente de trabalho: “Existem várias formas de racismo e uma delas é a perseguição, quando não deixam que você exerça seu trabalho de forma digna, por exemplo”. Anderson acredita que, em ao menos uma ocasião, seus colegas podem ter conspirado para tirá-lo da corporação.

Mas seguiu no trabalho até o fatídico 14 de janeiro de 2021, no qual vizinhos ligaram para a polícia por conta da presença de um homem negro com uma menina branca numa trilha em Barbacena. Era pai e filha num fim-de-semana. assando marshmallows no fogo, mas a polícia agiu com se fosse um pedófilo. E seu novo inferno começou.

“Os policiais apareceram do nada e gritando. Eu peguei a minha filha no colo, falei que era militar e pai, para me resguardar, pois eles não abaixavam as armas. Minha filha estava sorridente comigo, catando folhas, antes deles chegarem. Fizeram um cerco em volta de nós, e eu como pai só queria proteger minha filha. Trataram minha filha igual gado, sem nenhuma noção do perigo”, conta. “Fui chamado de preto safado, tive a minha filha arrancada dos meus braços e os PMs me acusaram de estupro. Durante a abordagem, me enforcaram. Eu fiquei com medo, porque sei como eles agem”, declarou à Ponte.

Por conta desse episódio, está sofrendo um processo acusado de desobediência, desacato a superior, ameaça, resistência mediante ameaça ou violência e lesão corporal leve. Na versão dos PMs, que consta da denúncia oferecida pelo Ministério Público, Anderson se recusou a ser revistado e se identificou jogando a carteira funcional no chão. Os PMs disseram que ele estava diante de dois superiores e exigiram que “ele pegasse a sua filha e os acompanhasse até a saída daquela mata”. Anderson teria, então, xingado e ameaçado os colegas, dizendo, teria resistido com socos e chutes. Os PMs disseram, ainda, que foram atacados pelo cão da família e por isso atiraram no animal, que se afastou “depois de ter sido atingido por um dos disparos”.

Anderson César da Silva precisou acionar a Justiça duas vezes para assumir o cargo de soldado da Polícia Militar de Minas Gerais | Foto: Reprodução / Arquivo Pessoal

E não ficou só na violência física: o policial foi difamado pela cidade. Segundo ele, uma rádio e um site local o apresentaram como uma pessoa que tem problemas mentais e por isso teria tentado estuprar a própria filha.

Ele diz que no momento não pensa em processar os veículos de comunicação, mas que no futuro conversará com a sua advogada sobre a possibilidade. “Foi a própria polícia daqui que espalhou isso para que eu fosse colocado como uma pessoa ruim. Eu estou cansado. Desde que entrei para a polícia que estou sendo perseguido”

Ajude a Ponte!

O espancamento e a humilhação sofrida diante da filha, em um ação das forças policiais das quais faz parte, somada a todos os percalços vividos para se manter como militar, tornam-se um elemento fundamental para que Anderson considere largar farda. “O que me segura é a questão salarial. Se eu sair agora vai sair pior porque eu não vou ter emprego, mas eu penso sim (em abandonar a polícia).”

Outro lado

A Ponte enviou um email para a Polícia Militar de Minas Gerais pedindo que a corporação comentasse o caso do policial Anderson César da Silva e os processos movidos contra ele. Até a publicação dessa matéria a mensagem não foi respondida.

Já que Tamo junto até aqui…

Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

Ajude

mais lidas