Desde agosto de 2018, quando Casa do Hip Hop foi alvo de uma ação violenta das forças de segurança, integrantes denunciam criminalização do movimento na zona norte, região periférica da cidade
“É uma lógica destrutiva”, assim define uma das lideranças do movimento hip hop sobre as ações das forças policiais nas batalhas de rimas que acontecem nas periferias de Teresina, capital do Piauí.
A jovem, que não quis se identificar por temer retaliações, contou à Ponte como a Vila Bairro Segurança (ação conjunta entre Polícia Militar, Guarda Municipal, agentes de trânsito e Conselho Tutelar que atua na capital piauiense desde fevereiro do ano passado) tem atuado nas ruas da zona norte, região que concentra os eventos culturais do movimento, principalmente nas proximidades da comunidade ribeirinha Boa Esperança. A comunidade luta para continuar existindo, como contou a reportagem em maio de 2019, quando visitou o local.
“Eles disseram que [a atuação da Vila Bairro Segurança] ia ser pra Teresina inteira, mas não é verdade, é só para zona norte, mas especificamente pra Boa Esperança. É lá que eles atacam. A Vila Bairro Segurança é um grupo que só trabalha e se preocupa em reprimir a Boa Esperança. Como ela atua? Ela chega dando baculejo [abordagem policial] violento. Os meninos são baculejados no meio de uma batalha de MC, os PMs chegam apontando a arma na cara deles”, relata a jovem.
Para a rapper, a Vila Bairro foi criada para criminalizar os movimentos culturais das periferias. “A questão da Vila Bairro Segurança é isso, é política para o preto e pobre. Quem tá lá no seu duplex usando todos os tipos de droga tá suave. Mas na casa de reggae um baseado acaba com o baile. Eles batem no peito e dizem isso com orgulho. Tem que ter um limite, mas eles não têm, eles atropelam todas as coisas. Essa política é um repressor da cultura preta e pobre”, crava.
Em Teresina, os jovens das periferias consomem dois tipos de música: o rap e o reggae. Aliás, esses são os únicos contatos que eles têm com a cultura, já que a cidade não possui aparelhos culturais além da Casa do Hip Hop. Assim como as batalhas de rimas, as casas de reggae, como são chamados os locais onde as festas acontecem, também sofrem com a repressão policial.
“As batidas policiais na casa de reggae são frequentes. Eles forçam essas casas a fechar. Todo mundo em Teresina sabe que as casas de reggae são um polo cultural, um espaço de diversão. A massa do reggae está na periferia e eles tentam fechar isso. Na zona leste, que é a zona mais rica, acontece coisas piores e não existe esse monitoramento, essa repressão. É isso que deixa a gente bolado”, critica a liderança hip hop.
A cena de hip hop em Teresina
Com força na região periférica, principalmente na zona norte da cidade, as batalhas de rima costumam acontecer em praças ou nas ruas de Teresina. Dezenas de jovens, em sua grande maioria pessoas negras, se reúnem nos eventos. A cena de hip hop, assim como em outras cidades no Brasil e mundo afora, tem origem nas quebradas da capital piauiense.
Os nomes mais conhecidos de batalhas são: Batalha do Campinho, Batalha do Coliseu (na Lagoa do Norte), Batalha Santa Maria e os eventos de rimas que acontecem na Casa do Hip Hop, espaço cultural localizado na zona sul da cidade.
Em entrevista à Ponte, a jovem liderança movimento hip hop explica como a repressão policial vem acontecendo nos últimos meses. “A gente sabe que essas coisas [violência e criminalização] acompanham o governo, está caminhando para uma ditadura. Isso demonstra como vai ser tratada a liberdade de expressão de quem é pobre e preto. Desde 2017 teve um aumento da criminalização, um aumento da repressão. A diferença que eu vejo hoje é o descaramento. Com esse descaramento eles conseguiram criar um meio de institucionalizar a agressão deles, por meio da Vila Bairro Segurança. Conseguiram legitimar, as agressões são passivas, não há direito de resposta”, desabafa.
A Batalha do Coliseu, explica a jovem, sempre acontecia na pista de skate do Parque Lagoa do Norte, localizado na Boa Esperança, e reunia cerca de 60 pessoas. “Ela estava caminhando para ser uma batalha do conhecimento, mesmo sem ter esse nome. Aí teve uns atropelos. O governo começou a ter muita imposição no funcionamento. Tiraram a segurança, tiraram o bebedouro e colocaram uma torneira no lugar. Só isso aí você já percebe que eles não estão nem aí pra quem vai lá”, conta.
Para a rapper, as batalhas de rimas servem para que os jovens consigam se expressas, direcionar a raiva, a tristeza e a angústia. “Mas eles tentam tirar até isso da gente. A gente luta pra conseguir uma caixa de som, um microfone. O polo do hip hop de Teresina ainda é vivo, mas nós precisamos dessa unificação pra dizer que estamos vivos. E aí eles foram tirando isso da gente”.
Ação policial truculenta na Casa de Hip Hop
Um dos poucos aparelhos culturais de Teresina é a Casa do Hip Hop, espaço cultural localizado no Parque Piaui, na zona sul de Teresina. O que antes era uma escola abandonada, desde 2002, se tornou uma casa de cultura, usada por crianças, jovens e adultos que curtem hip hop.
Um ano depois, a Polícia Militar de Teresina passou a ocupar o prédio ao lado Casa do Hip Hop. Lá, funciona o Pelotão Mirim, da RONE (Rondas Ostensivas de Naturezas Especiais), que atende crianças, jovens e adolescentes de 7 a 14 anos.
Para os integrantes do movimento hip hop, esse detalhe explica o acontecimento de agosto de 2018: durante um show de rap que fazia parte da Mostra Sesc Amazônia das Artes, a Casa do Hip Hop foi invadida por policiais encapuzados, que imediatamente interromperam o evento.
“Enquanto estava acontecendo o show, chegaram policiais encapuzados, sem identificação e armados para humilhar as pessoas que estavam lá. ‘Todo mundo no chão, cala a boca, parou o show’. Todo mundo ficou sem saber o que estava acontecendo, porque foi no meio de um show, de um evento cultural”, conta uma das pessoas que esteve no evento à Ponte.
Um vídeo divulgado na época, mostra o momento da ação policial.
Segundo a jovem, os policiais enquadraram todos que estavam no evento, chamando as mulheres de “vagabundas”. Para ela e outras lideranças do movimento, a denúncia partiu dos policiais que cuidam do Pelotão Mirim.
“Isso é perseguição. Eles observam cada passo que a Casa do Hip Hop dá. Eles fazem com que a própria comunidade ao redor da Casa não fiquei a favor da Casa. Eles tentam buscar apoio pra legitimar a opressão deles. Eles conseguiram metade do terreno dessa escola, mas é uma metade grudada. A pessoa que tá lá, quem cuida do pelotão, trabalha pra fazer a Casa do Hip Hop fechar”, desabafa.
O outro lado
Questionada sobre as ações nas batalhas de rimas e na zona norte de Teresina, a PM-PI (Polícia Militar de Piauí), em nota enviada à Ponte, se restringiu a responder apenas o episódio na Casa do Hip Hop, em agosto de 2018.
“Em relação aos fatos ocorridos em agosto de 2018, todas as providências legais cabíveis que o caso pedia foram tomadas, destarte nos colocamos à disposição para quaisquer outros esclarecimentos”, informa a PM, que finaliza a nota ressaltando que vem “desempenhando seu papel Constitucional, trazendo uma solução de continuidade para resolução de conflitos de nossa sociedade”.