Depois que aula sobre diversidade de gênero foi postada pelo jogador Maurício Souza e por parlamentares como Flávio Bolsonaro e Bia Kicis, professor de Jaguariúna (SP) e sua família passaram a sofrer ameaças. Sindicato convocou protesto contra censura
Parlamentares e uma ex-celebridade dos esportes, donos de redes sociais que somam 8,6 milhões de seguidores, se uniram para atacar um professor de sociologia do interior do estado de São Paulo. O motivo foi uma aula sobre diversidade de gênero e orientação sexual, ministrada com o objetivo de prevenir o assédio contra as minorias sexuais dentro do colégio.
A aula do professor Mateus Oliveira dos Santos, 31 anos, ocorreu em 17 de fevereiro na Escola Estadual Anna Calvo de Godoy, na cidade de Jaguariúna. Um trecho, gravada sem autorização por um aluno, foi postada nas redes sociais e se espalhou pelas redes bolsonaristas, acompanhado de ataques ao professor. Desde então, Mateus vem enfrentando dificuldades para dormir, se alimentar e até medo de sair de casa. “Fiquei dias sem dormir e conseguindo comer muito pouco. Tenho medo de ser reconhecido na rua e ando com desconfiança”, desabafa à Ponte.
No vídeo, o professor explica os conceitos de homem e mulher cisgênero e trans. “As turmas receberam muito bem, rolou um bom debate, muitos entenderam, foi uma atividade legal”, lembra. Mateus conta que um dos objetivos dos debates é melhorar o convívio entre os próprios alunos. “Já havíamos conversado entre os professores em reunião que seria necessário esse trabalho coletivo sobre orientação sexual e identidade de gênero por conta dos nossos alunos passarem por dificuldades no ambiente escolar. Os alunos das minorias sexuais estavam sofrendo assédio, constrangimento, transfobia, homofobia, então a gente pensou que era uma coisa didática e era isso que estávamos fazendo”, explica.
Apesar da tentativa de informar os alunos, o vídeo passou a ser disseminado de forma preconceituosa na internet quando o jogador de vôlei Maurício Souza publicou as imagens em suas redes sociais. Desligado no ano passado do Minas Tênis Clube por causa de comentários homofóbicos na internet, Souza disse que a aula era “uma vergonha” e conclamou seus seguidores a perseguirem Mateus: “Vamos atrás desse professor ele não dará mais aula pra ninguém!”.
O post do jogador foi apenas o início dos ataques. “Quando vi, o vídeo já tinha um milhão de visualizações e as pessoas estavam me mandando mensagens perguntando se eu tinha visto”, conta Mateus. Depois piorou. “Eu percebi que o vídeo estava sendo postado por senadores, deputados, vereadores, influencers digitais e pessoas que não estão só compartilhando, mas publicando.” Entre os influencers de extrema-direita que atacaram o professor, estão o senador Flávio Bolsonaro (PSL), o filho 01 do presidente da República Jair Bolsonaro (PL), que comparou a aula de Mateus a “um câncer”, e as deputadas federais Carla Zambelli (PSL), Bia Kicis (União Brasil) e Carlos Jordy (PSL).
Apoio e protesto
Ao perceber que o conteúdo estava viralizando nas redes e que as ameaças estavam sendo destinadas até mesmo para a sua esposa, Mateus pediu auxílio da direção da escola. Ele conta que a direção o apoiou imediatamente, assim como grande parte dos estudantes. “Nos primeiros dias eu tinha crises de ansiedade regularmente, de dia e de noite. Por sorte, conhecidos meus conseguiram um contato para dar um apoio psicológico de urgência, para amenizar os danos psicológicos. Além de todo apoio que a minha esposa vem me dando, embora ela também esteja sofrendo, principalmente após mandarem a ela mensagens de ameaça.”
Em apoio ao professor, o Sindicato dos Trabalhadores do Serviços Públicos Municipais de Paulínia, junto ao Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (APEOESP) publicou uma nota convocando uma manifestação em solidariedade a Mateus e contrária à censura e perseguição a todos os docentes. “Não aceitamos essa perseguição e tentativa de censura do governo federal e de seus aliados que constrange professores e professoras em seu trabalho e que expôs o professor Mateus, submetendo-o à possibilidade de todo tipo de violência”, afirma o texto.
Além da assistência da direção da escola e do sindicato, o professor se deparou com a cooperação dos estudantes da Escola Estadual Anna Calvo de Godoy, que passaram a colar cartazes pela escola apoiando Mateus.
De acordo com o professor, a escola identificou o aluno que publicou as imagens e convocou a família para uma conversa. A própria direção da unidade de ensino também analisou a aula do professor de sociologia e chamou a Diretoria de Ensino Região Campinas Leste, que regula o trabalho dos educadores para esclarecer todos os acontecimentos. “A diretora de ensino veio até a escola, conversou comigo e com a direção. Eu não sofri perseguição da escola e nem da diretoria de ensino, pelo contrário, eles estão me dando suporte, eles avaliaram a minha aula e perceberam que na verdade o crime foi cometido por quem gravou a aula sem consentimento e está expondo um discurso de ódio.”
Quando o vídeo chegou a um grupo de Whatsapp com membros do Conselho Municipal de Educação, alguns conselheiros pediram que a aula fosse averiguada, dizendo abertamente serem contra a “discussão de gênero” na escola, enquanto outros fizeram a defesa do professor. A situação será discutida na próxima reunião do conselho municipal, marcada para 7 de março, segundo Mateus. Ele foi convocado para a discussão.
Denunciar as perseguições é fundamental, segundo Mateus, porque outros profissionais da rede de ensino têm manifestado medo de debater a temática nas salas de aula. “Muitos professores se sentem acuados e com medo. Os professores não têm de estar constrangidos de fazerem um trabalho educativo e pautado nos direitos humanos, não pode haver essa perseguição”, pondera.
O Plano Nacional da Educação, aprovado em 2014 e válido até 2024, não proíbe os debates sobre os temas referentes à diversidade sexual e de gênero, mas não traz metas claras sobre o combate aos preconceitos contra a população LGBTQIA+.
A temática da diversidade de gênero e racial é respaldada pelas pelas diretrizes curriculares nacionais, estaduais e em cursos da Escola de Formação e Aperfeiçoamento dos Profissionais da Educação do Estado de São Paulo (EFAPE) relacionados ao assunto. O texto menciona, por exemplo, a necessidade de “analisar criticamente preconceitos, estereótipos e relações de poder presentes nas práticas corporais, adotando posicionamento contrário a qualquer manifestação de injustiça e desrespeito a direitos humanos e valores democráticos”.
Para Mateus, os políticos bolsonaristas tentam desvirtuar o debate da educação para perseguir os professores que fazem uma discussão séria. “Fazem parecer que esse debate é político ideológico, quando na verdade é um debate educacional sobre o respeito às pessoas”, denuncia. “Esse ataque que eu venho sofrendo está sendo usado para atacar os professores em geral e não só a mim.”
Governo de SP repudia os ataques
Procurada pela Ponte, a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP) afirmou que “atua na promoção de um ambiente solidário, colaborativo, acolhedor e seguro para todos nas escolas estaduais, sempre com base na Base Nacional Comum Curricular (BNCC)”. Sobre os ataques ao professor, afirmou: “A pasta repudia os ataques que vem sendo veiculados nas redes sociais ao professor no exercício da sua profissão. O caso está em apuração junto à escola e ao docente.”
Além disso, procurou o Conselho Municipal de Educação através da Prefeitura de Jaguariúna para compreender porque as aulas do professor serão tema de discussão no conselho municipal. Até o momento não houveram respostas às questões solicitadas.
A reportagem pediu esclarecimentos das deputadas federais Carla Zambelli (PSL) e Bia Kicis (União Brasil), do deputado federal Carlos Jordy (PSL), do senador Flávio Bolsonaro (PSL) e do jogador de vôlei Maurício Souza, até o momento nenhuma questão foi respondida.