Policial à paisana pensou que brincadeira de amigos era assalto e disparou cerca de 11 vezes contra o grupo; em março, Juan foi detido ao ser confundido com assaltante
A auxiliar de serviços gerais Eliane da Silva Amorim, de 48 anos, tentou mudar de assunto, mas não conseguiu. “Ainda dói muito. Um filho seu chega e o outro não. A impressão é que ele vai voltar logo”, diz à reportagem da Ponte. A mãe de Juan Henrique Amorim dos Santos não se conforma com o destino do filho, morto no mês passado, aos 15 anos, depois de ser alvejado por um PM à paisana em Mesquita, na Baixada Fluminense. O amigo dele, Carlos André Santos de Jesus, de 13, estava junto, foi atingido e socorrido, mas morreu uma semana depois.
Definido como um adolescente tímido, “de poucas palavras”, Juan gostava de empinar pipa e jogar bola e era muito envolvido com a congregação que frequentava e onde seria em breve batizado: a Igreja do Nazareno. Dois meses antes de ser morto, em 1º de março, Juan estava brincando com amigos na rua Chalet, em Santa Terezinha, próximo ao templo, quando policiais que perseguiam suspeitos de realizarem uma série de assaltos na região passaram pelo local. “Um deles foi pego no Tênis Clube, no centro da cidade. Outro conseguiu subir o morro e outro foi justamente para rua Chalet. Só que o menino [Juan] se escondeu em um canto dessa mesma rua e, quando o ladrão fez a curva para subir, a polícia acabou rendendo os dois, que estavam muito próximos” disse um morador da rua, que não quis se identificar.
Essa mesma testemunha afirma que mais de uma pessoa tentou explicar aos policiais que o jovem não tinha nada a ver com a história. Mas não adiantou: Juan acabou detido e enquadrado por roubo e receptação.
Segundo a defesa do adolescente na época, os policiais teriam dito que Juan seria levado à delegacia apenas para averiguação e que, posteriormente, seria liberado mediante presença dos responsáveis. O garoto inclusive foi levado no banco da frente da viatura, conforme relataram parentes e testemunhas.
A comunidade se revoltou com a injustiça e muita gente passou a protestar nas redes sociais, pedindo a liberdade de Juan. “Deus Sabe De Todas As Coisa Inclusive Isso. Ele Tava Brincando Com Áh Gente Nn Tinha Nada Àh Ver Com Essa História. Ele Éh Inocente! Ai Porque Ele Correu Doh Tiro Ai Acham Que Ele Era Bandido Ninguém Tem Peito Deh Aço Aqui Nn Pra Fica Parado. Mas Vamos Ficar Tranquilo Porque Deus Táh Com Ele”, escreveu um dos amigos que estava com ele no momento da prisão.
A reportagem confirmou com fontes ligadas ao processo que, já na central de flagrantes da DP, o menor foi reconhecido por duas testemunhas como suposto responsável de um roubo que havia ocorrido nos arredores da estação de Presidente Juscelino, da Supervia, que fica a aproximadamente 1,5 quilômetro da rua Chalet. Contudo, no dia do depoimento, segundo Eliane, mãe do Juan, as vítimas hesitaram, mudaram a versão e não confirmaram se realmente o adolescente foi o autor dos roubos. “Um dos rapazes presos até defendeu meu filho, dizendo que ele não estava junto dos bandidos”, disse a mãe, na tentativa de honrar a memória do filho.
A Polícia Civil do Rio não respondeu se o suposto roubo pelo qual Juan foi reconhecido teve relação com a onda de crimes praticados pelo grupo preso na rua Chalet ou se foi um ato isolado
Juan foi absolvido em 27 de março e no mesmo dia saiu do Degase (Departamento Geral de Ações Socioeducativas), na Ilha do Governador. De volta para casa que morou desde bebê, no bairro Coreia, confidenciou que até os funcionários do local questionavam o que o jovem estava fazendo ali. “Pelo seu semblante dá pra saber que você é bom.” teriam dito a Juan, segundo a mãe dele, Eliane. “Ele não se corrompeu. Ele continuou a mesma coisa, um menino bom e honesto, que ficou lá dentro na dele, rezando”, defendeu.
Brincadeira fatal
Recuperado da prisão injusta, Juan foi aos poucos retomando a rotina de brincadeiras com os amigos e de dedicação à Igreja do Nazareno. “Eles ficavam brincando de queimada na rua, como poucas crianças fazem hoje em dia”, lembra uma comerciante do bairro.
Na noite de 18 de maio, prestes a completar dois meses de sua absolvição, Juan, outros três adolescentes e um jovem de 24 anos, cuja identidade será preservada, estavam quase chegando no bairro Coreia, quando um dos meninos viu um amigo e quis fazer uma brincadeira.
“Quando eu desci da casa de um parente o Juan e os outros meninos me pediram uma carona até a avenida São Paulo. Eu concordei. Quando chegamos, um dos meninos viu uns amigos na rua e resolveu fazer uma brincadeira”, conta o motorista, que lembra de ouvir a frase ‘ih, olha quem tá vindo ali. Vou lá assustar eles’”, contou o motorista do carro. Um dos garotos se aproximou e gritou: “Perdeu, perdeu”, simulando um assalto.
À paisana, o PM Flávio Cabral estava em um bar do outro lado da rua e quando ouviu, se levantou e começou a atirar enquanto andava em direção ao veículo, um fiat Uno branco. Ele usava uma pistola Glock de numeração YYR382, calibre 9mm.
“Aquilo nem foi uma abordagem, já que o policial não estava sob perigo nenhum. A distância dele para o veículo era bem grande”, disse uma testemunha que estava na rua. Outras pessoas que presenciaram o assassinato atestam que não houve qualquer tipo de aviso por parte do policial, que, ainda segundo testemunhas, teria “atirado primeiro para perguntar depois”.
Pelo menos nove dos cerca de 11 tiros atingiram o veículo, matando Juan no local e ferindo Carlos André Santos de Jesus, de 13 anos, que chegou a ser socorrido, mas morreu uma semana depois. O terceiro adolescente do grupo ficou com um projétil alojado no braço. A reportagem procurou familiares dessa outra vítima, mas a família não quis falar sobre o caso até o momento.
Em nota, a Polícia Civil afirma que “o caso foi registrado e está sendo investigado. Foi realizada perícia no local e testemunhas ouvidas. A investigação está em andamento”.
O motorista, amigo de igreja de Juan e Carlos André e testemunha da execução questiona o trabalho da polícia. “Acho que meu carro não foi periciado direito, pois ficaram três projéteis”. Um desses acabou atingindo a lombada de sua bíblia, que estava em cima do volante no momento do tiroteio. A família e amigos que professam a mesma fé do rapaz que sobreviveu aos disparos acreditam que ele foi salvo pela fé. “Saiu ileso pois o zelo de Deus estava sobre ele”, escreveram na página de Facebook da igreja.
‘Olha a merda que vocês fizeram com a minha vida’
Juan, contudo, não teve a mesma sorte divina. “Eu sacudi ele e o chamei, mas ele não respondeu. Já tava com a boca sangrando e com o olho branco”, lembra um dos garotos, que foi correndo para casa do amigo avisar Dona Eliane e Seo Raimundo, pais de Juan. Quando estava saindo, chegou a ouvir a reprimenda do policial. “Como é que vocês brincam assim?”.
O policial foi socorrer os dois feridos ao perceber que havia cometido um erro. Entrou no carro e foi com o motorista até o hospital. No trajeto, continuou a dar bronca. “Olha a merda que vocês fizeram com a minha vida”. De acordo com a certidão de óbito, Juan morreu de insuficiência respiratória e hemorragia do tórax. Carlos André foi levado para o Hospital Geral de Nova Iguaçu e uma terceira vítima dos disparos foi para o Hospital de Saracuruna.
Para o coronel Ibis Pereira, ex-comandante geral da PMERJ, a única possibilidade de uso da arma por um policial é em legítima defesa ou de outra pessoa. “Houve um erro de avaliação do policial que o fez interpretar a brincadeira como se houvesse um perigo real”.
Dona Eliane reconhece que o policial compareceu à delegacia para depor e entregar a arma para a perícia. “Depois deu uma de bom moço, como se tivesse arrependido do erro que comentou. Mas não procurou a família pra nada e nem falou comigo. Quem ajudou foi nossa Igreja”.
O Registro de Ocorrência do caso sustenta o que foi dito pelas testemunhas e deixa claro que o policial Flávio prestou socorro e se apresentou na delegacia, além de entregar a arma. As mortes de Juan e Carlos foram registradas como “homicídio decorrente de intervenção policial”.
A Ponte procurou a PMERJ (Polícia Militar do Rio de Janeiro) para comentar a atuação do agente à paisana, mas, até a publicação da reportagem, não obteve retorno.
Mais dois para as estatísticas
Juan e Carlos André são negros. Entre 2006 e 2016, enquanto as execuções de negros e negras cresceu 23,1%, os assassinatos de brancos diminuiu 6,8%. Em 2016, a taxa de mortalidade violenta de negros ficou em 40,2 por 100 mil habitantes. Entre não negros, a taxa cai para 16 em cada 100 mil habitantes. “É como se, em relação à violência letal, negros e não negros vivessem em países completamente distintos”, diz o texto do Atlas da Violência 2018.
O enterro de Juan, segundo os parentes, encheu tanto que alguns pedestres que passavam na praça de onde saíram os ônibus pensaram que estavam dando vaga de emprego. “Estava cheio de jovem, todos louvando o senhor. Quando chegamos lá tinha ainda mais gente”, disse um familiar.
Em uma triste ironia, o funeral, que é um rito de morte, aconteceu no mesmo dia que seria o seu batismo, um rito de celebração da vida. Carlos André se batizaria junto com o amigo.
“Quando eu paro pra pensar no pouco de tempo que ele teve de vida eu vejo as coisas boas e as coisas ruins que atravessaram a frente dele, mesmo ele sendo um bom menino. Das duas vezes ele não fez nada pra merecer o que aconteceu com ele, mas como eu falo pra todo mundo, nós não temos o poder que Deus tem de ver o futuro”, desabafa Eliane ao lado de Raimundo, o pai do Juan, à reportagem da Ponte, durante visita à casa da família em Mesquista.
“Então talvez por um conforto pra minha alma eu vejo dessa forma, que Deus, Ele sabe o que iria acontecer mais pra frente, ele já tinha aceitado Jesus, e iria se batizar, quem sabe lá pra frente ia acontecer algo pior, e ele viesse a se revoltar, abandonar Deus,a igreja, e não ter mais salvação pra alma dele”, afirma a mãe, em uma tentativa de se conformar com os fatos.
Para Fransérgio Goulart, assessor político do Fórum Grita Baixada, o caso de Juan pontua algumas perspectivas históricas do local, como a figura do homem que faz justiça com as próprias mãos, estilo Tenório Cavalcante, o Homem da Capa Preta. que acabou fortalecendo e legitimando a presença das milícias na Baixada. Não à toa, o assessor diz que não é incomum ouvir em rodas de conversa com jovens da região a frase ´vivo hoje,pois amanhã não sei´”.
Luciene Silva, uma das mães fundadoras do grupo de Mães da Baixada, vê a região sofrendo com uma constante invisibilização. “Nunca aparece na mídia o que acontece por aqui. Nem para estatística esses casos entram” diz a ativista, que perdeu seu filho em 2005 na Chacina da Baixada, que ceifou a vida de 29 pessoas. “A alegação que acaba acontecendo é que foi auto de resistência e ponto final”. Atualmente, o auto de resistência é chamado justamente de “homicídio decorrente de intervenção policial”.