Especialista aponta que Sarí Côrte Real pode “ter sido a maior racista do mundo”, mas não há “relação direta entre colocar a criança no elevador e a morte”
Sarí Gaspar Côrte Real ficou responsável por Miguel Otávio Santana na Silva, 5 anos, no dia 2 de junho. Ela era patroa da empregada doméstica Mirtes Renata Souza, mãe do garoto, que passeava com os cachorros da mulher, moradora de um condomínio em área rica de Recife, capital de Pernambuco. Sarí fazia as unhas. Decidiu colocar Miguel no elevador e mandá-lo ao 9º andar. O garoto caiu de lá e morreu.
No dia seguinte à morte, a Polícia Civil pernambucana a enquadrou por homicídio culposo, quando não há intenção de matar, e definiu fiança de R$ 20 mil, valor pago pela mulher, que foi solta.
No Código Penal, o artigo 121 é o que trata do homicídio, ou seja, é o crime de “matar alguém”, como a própria lei coloca. A discussão que se impõe é se o homicídio foi doloso, que é quando a pessoa quis o resultado morte ou mesmo assumiu o risco da ação. Para esse caso, a pena é de 6 a 20 anos de reclusão. Se o crime, além de doloso for qualificado, ou seja, tiver elementos que agravaram o crime, como por exemplo, dificuldade de defesa da vítima, assassinato mediante pagamento, ou um motivo fútil, a pena aumenta para 12 a 30 anos de reclusão. Mas aí já é outra discussão.
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Voltemos ao caso do menino Miguel. O homicídio, que continua sendo a morte de alguém, pode também ser culposo, que é quando a morte acontece por “negligência, imprudência ou imperícia”. A lei estipula de 1 a 3 anos de detenção. Para a Polícia Civil, é esse o crime cometido por Sarí.
Os especialistas ouvidos pela Ponte consideram que o delegado Ramón Teixeira, da Polícia Civil de Pernambuco – que classificou o crime como homicídio culposo no registro da ocorrência – agiu tecnicamente de forma correta.
O advogado criminalista Flávio Campos, integrante da UneAfro Brasil, considera que seria exagerado determinar que Sarí respondesse por homicídio doloso. “Dolo é vontade de matar. Ela pode ter sido a maior racista do mundo para mim, a mais nojenta de todas, escravocrata. Mesmo assim, ‘dolo de matar’ não consigo afirmar com os elementos que existem”, afirma.
Segundo Campos, não dá para dizer que ela assumiu o risco da morte ao levar o garoto ao elevador. “Não estou fazendo presunção de boa fé, estou analisando fatos e o que mostra a letra da lei”, diz. “A causa morte se deu pela negligência, não pela vontade direta de provocar o resultado morte ou assumir o risco de provocá-lo”.
Campos defende que este caso se trata de um homicídio culposo e que a causa da morte foi a negligência de Sarí com Miguel, não uma ação direta dela. “Por mais danoso ou desastroso que tenha sido o resultado, não está no Direito colocar intenções [onde não há]”, diz.
Segundo ele, é preciso tratar da relação de negros e brancos no Brasil, debate gerado pela relação de Sarí com a mãe de Miguel e o garoto, para além do Direito penal. “Quando vamos mudar? A discussão está além da punição da pessoa, está no entorno estrutural do tema”, avalia.
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Outra advogada criminalista que endossa a tese de homicídio culposo é Priscila Pamela dos Santos, integrante do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) e presidente da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil/São Paulo). “A pessoa não empurrou a criança, mas é uma conduta omissiva no sentido de não ter impedido essa criança [de morrer]”, pontua.
“Como técnica, não dá para irmos para um lado punitivista. É um caso de homicídio culposo e ele é ainda mais complexo, porque não se trata de uma ação”, explica.
No entanto, ela defende que haja punição mais severa pela negligência de Sarí. “Temos que tomar muito cuidado porque, quando for a babá negra cuidando da criança, vão legitimar os discursos para homicídio doloso”, pondera.
Abandono que causou a morte
De acordo com o professor de Direito penal da Universidade Mackenzie Humberto Barrionuevo Fabretti, os homicídios decorrem de duas condutas: omissiva, quando a pessoa deixa de ter uma ação e isso gera a morte, ou comissiva, quando pratica uma atitude direta para gerar a morte de alguém.
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“Tanto a omissão quanto a comissão são espécies de conduta, do comportamento humano. Não faz diferença [em definir o homicídio]. Faz [diferença] o que chamamos de elemento subjetivo, se a pessoa tem a intenção com a qual pratica a conduta. Aí temos o homicídio doloso e culposo”, destrincha Fabretti, que também concorda com a leitura de que o delegado acertou ao enquadrar Sarí em crime culposo.
O professor concorda que, “de acordo com o que foi levantado até agora”, não ficou claro se Sarí tinha desprezo por Miguel e ignorou o risco intencionalmente. “Colocar pessoas no elevador não leva à morte e essa é a relação [a ser feita]. O menino não morreu dentro do elevador. Ele encontrou um buraco e caiu. Imaginar que ela pudesse pensar em tudo isso é um pouco de exagero”, pondera Fabretti.
O especialista coloca uma alternativa, além de homicídio, para que Sarí responda criminalmente: abandono de incapaz com resultado morte (artigo 133 do Código Penal, inciso 2º). A pena varia de 4 a 12 anos de detenção. Nesse caso, não seria necessário um debate sobre a intenção ou não da mulher em gerar a morte de Miguel.
“Ela abandonou a criança. O que significa? Tirar qualquer vigilância ou cuidado. Se retira, o tipo penal está caracterizado”, defende. “A morte que resulta desse abandono, tanto faz se é dolosa ou culposa, tem uma punição mais grave em virtude do resultado que o abandono gerou, que foi a morte”, prossegue.
O advogado Flávio Campos é contra o entendimento de enquadrar Sarí em abandono. “Não acredito. O crime fim, a morte, absorve o crime meio, o abandono”, defende, exemplificando que se uma pessoa falsifica um documento para entrar em um local restrito e mata alguém significa que ela responderá pelo crime de maior gravidade, o homicídio, não pela falsificação de documento.
“O crime menor não é considerado para efeito penal, é absorvido. Pode acontecer de o juiz interpretar que houve concurso formal de crimes, que por meio de duas ações, se cometeu apenas um crime. Aí, nesse caso, aumenta a pena de um a dois terços”, detalha.