De 2007 a 2020, CNJ julgou 111 processos disciplinares contra magistrados, 57 deles foram “punidos” com aposentadoria compulsória, com salários acima de R$ 30 mil; Ponte explica o que está por trás da fiscalização que dificulta a demissão
Imagine você, leitor, que é um dos agraciados com uma cada vez mais rara e escassa situação no Brasil: um emprego. Agora se imagine, também que, sob um regime tão fortuito, escolha, ao invés de exercer a função para o qual foi contratado com presteza e competência, opte, ao contrário, por ser um legítimo “folgado” – atrasa, falta, não entrega as tarefas, empurra seu trabalho para os subordinados, rouba clientes dos colegas, dá produtos de graça (na conta da empresa) aos amigos. Se você for pego com a boca na botija, ou dedurado por colegas insatisfeitos, certamente seu patrão vai se livrar de você.
Caso pertença à espécie em extinção dos contratados por CLT, a popular “carteira assinada”, levará uma “justa causa”, sem direito aos vencimentos mais graúdos de um processo de demissão normal. Se pertencer ao cada vez mais amplo grupo dos precarizados, seja um emissor de notas fiscais de serviço, o PJ (pessoa jurídica), ou recebendo “por fora” mesmo, a chance de ir para casa sem um tostão no bolso é maior – com sorte, o patrão lhe deixaria uns caraminguás por dó e para dissuadir você de tentar recorrer a uma Justiça do Trabalho a cada dia mais hostil a quem labora.
O que importa é que a partir de então, você descerá para a savana do desemprego: endividamento, depressão, Linkedin, fila para entregar currículo, anúncios de “não há vagas”, posts desesperados nas redes sociais, bicos. Vai precisar de sorte, porque não é o Paulo Guedes que vai te ajudar.
Mas há uma classe (talvez melhor descrita como “casta”) de brasileiros que não precisa se preocupar com isso: os juízes. A não ser que cometa crimes, a maior penalidade destinada a um magistrado empregado em solo pátrio é a aposentadoria compulsória, ganhando vencimentos proporcionais ao tempo de serviço quando foi “demitido” – isso depois de um longo processo disciplinar. É aquilo que em português castiço se chamaria de “mamata”, ser punido por trabalhar mal não tendo que trabalhar nunca mais, com o leitinho das crianças garantido por bastante tempo – estamos falando de uma carreira com salário médio estimado em mais de R$ 32 mil, com um suposto teto de R$ 39 mil.
É o caso da juíza Débora Faitarone, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), aposentada compulsoriamente com um salário líquido de R$ 31.391,18 após ser acusada de resistência às ordens da Corregedoria Geral da Justiça para implementação de melhorias aos serviços cartorários; desídia funcional (negligência, como não fazer júris, adiá-los); descumprimento do dever de urbanidade (magistrado deve tratar com respeito e cordialidade seus pares e a quem o procurar); descumprimento de orientação da Corregedoria Geral da Justiça de observância do critério de divisão de processos entre os juízes da vara, segundo o algarismo final do número do processo (segundo servidores, ela pedia para trocar processos); e introdução de modificações em contrarrazões de apelação elaboradas por Defensor Público, com tratamento diferenciado concedido ao Defensor Público.
Ganha-se muito bem no sistema de justiça brasileiro (ainda mais em comparação com o “chão de fábrica” do funcionalismo público, como professores, enfermeiros, garis), sob a desculpa de que agentes públicos bem alimentados são menos suscetíveis à corrupção. No caso de magistrados, há ainda o dispositivo da vitaliciedade, introduzido na Constituição de 1988, sob o trauma da ditadura militar, criado com a esperança de que assim juízes não precisassem se dobrar a pressões políticas.
Porém esse sistema causa distorções. De acordo com um levantamento feito pelo pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Moisés Lazzaretti Vieira para sua dissertação de mestrado, de 115 processos administrativos disciplinares (PADs) contra magistrados no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 2007 a 2017, 85 foram julgados e 57 tiveram como penalidade a aposentadoria compulsória. Dentre esses aposentados, apenas dois foram condenados em ações na justiça criminal.
Por que é tão difícil punir um juiz no Brasil? E por que essas punições são tão brandas, quase prêmios na loteria? Como tudo que envolve o sistema judiciário brasileiro, as respostas são burocráticas e complexas, mas a gente tentou resumir bem a história. Saca só:
O que diferencia um magistrado de qualquer outro servidor público concursado?
A doutoranda em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pesquisadora visitante na Universidade de Harvard Anna Migueis explica que os servidores públicos concursados têm uma garantia que se chama estabilidade, ou seja, apenas podem ser demitidos via procedimento administrativo disciplinar ou sentença transitada em julgado via ação judicial, modalidades previstas no artigo 41 da Constituição Federal. “Há ainda um terceiro caso que é por avaliação por desempenho, mas ainda não foi regulamentado”, aponta. Essa estabilidade é assegurada após três anos de trabalho.
Já os magistrados possuem uma outra garantia que é a vitaliciedade, que também se aplica a membros do Ministério Público e ministros e conselheiros dos Tribunais de Contas. “É uma proteção mais rígida em que ele só pode ser demitido em uma ação judicial com sentença transitada em julgado. Não pode ser demitido em um procedimento administrativo disciplinar”, diferencia a pesquisadora. Essa vitaliciedade é adquirida pelos magistrados após dois anos de trabalho e é prevista no artigo 95 da Constituição de 1988.
Para se ter uma ideia, o Ato Institucional nº 1 (AI-1), de 9 de abril de 1964, poucos dias após a ditadura militar ter sido imposta, suspendeu por seis meses a vitaliciedade e a estabilidade de servidores, fazendo com que pudessem ser demitidos via decreto presidencial, no caso de servidores federais, ou decreto assinado pelo governador do estado. O decreto é um ato administrativo assinado apenas pelo chefe do Executivo (presidente, governador, prefeito) que não precisa passar pelo Poder Legislativo (câmaras municipais, federal, assembleias, senado). O AI-5, de 1968, também manteve essa suspensão de garantias.
A pesquisadora explica que a vitaliciedade existe para que juízes e desembargadores tenham independência para julgar casos relevantes e sensíveis e não sofram pressão de agentes políticos, de empresários, e atuem com segurança. “É uma Constituição que tem esse caráter protetivo porque é feita na redemocratização, no pós-ditadura, e que havia na época essa memória de que um governo não democrático pode perseguir magistrados”, pontua.
Quais são as punições para magistrados?
O artigo 42 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (35/1979), conhecida como Loman, define seis penas disciplinares, sendo a primeira a mais leve e a última a mais gravosa: advertência; censura; remoção compulsória; disponibilidade com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço; aposentadoria compulsória com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço; e demissão. Como mencionamos, a demissão só acontece via ação judicial por causa da vitaliciedade definida na Constituição de 1988, já que a Loman é anterior ao período democrático e não foi completamente atualizada. A exceção é se o magistrado é punido antes de conseguir a vitaliciedade, podendo ser demitido sem passar por um processo judicial.
A Resolução nº 135/2011 do CNJ regulamenta essas punições. Essas penalidades não se aplicam a ministros do Supremo Tribunal Federal, que só podem perder o cargo em um processo de impeachment no Senado Federal. Mas tribunais estaduais, federais, militares, ministros do STJ, dos tribunais de contas, tribunais eleitorais e afins estão todos submetidos a essas punições.
- Advertência e Censura: a advertência é aplicada quando há “caso de negligência no cumprimento dos deveres do cargo”, já a censura é uma reincidência de negligência, mas é mais grave. Porém, a negligência é um conceito muito aberto que depende da análise do caso específico. De acordo com a pesquisadora Anna Migueis, as duas são bem parecidas porque são anotações na ficha corrida do magistrado que pode dificultar uma ascensão na carreira. “Se tiver dois juízes que querem ser promovidos, e um tem uma anotação de advertência e o outro uma de censura, o que tem uma advertência tem bem mais chance de ser promovido do que o que tem censura”, exemplifica.
- Remoção compulsória: o magistrado é transferido “por interesse público” para outra vara, comarca ou cidade. Não há detalhamento do que seria considerado “interesse público” para a aplicação dessa penalidade, mas a pesquisadora Anna Migueis interpreta essa expressão, que também aparece no caso de aposentadoria compulsória, como “um bem para a sociedade”, ou seja, “para a sociedade, é melhor que aquele juiz ou desembargador seja transferido” e isso também vai depender da análise da falta que o magistrado cometeu.
- Disponibilidade: o magistrado pode ficar até dois anos afastado das funções e continua recebendo salário proporcional ao tempo de serviço. É uma punição que é aplicada “quando a gravidade das faltas não justificar a aplicação de pena de censura ou remoção compulsória”. Segundo a pesquisadora Anna Migueis, da UERJ, geralmente é o tipo de punição aplicada a magistrados que cometeram alguma infração disciplinar por conta de um problema comprovado de saúde mental, por exemplo. “Se o magistrado está passando por algum problema de saúde sem ter cometido uma falta, ele vai ter uma licença, não uma penalidade”, enfatiza. Ao final do cumprimento do período estabelecido do afastamento, o magistrado pode ou não retornar ao trabalho após uma avaliação. Essa avaliação, segundo Resolução nº 323/2020 do CNJ, é de que o tribunal deve promover ao magistrado: I – sindicância da vida pregressa e investigação social; II – reavaliação da capacidade física, mental e psicológica; e III – reavaliação da capacidade técnica e jurídica, por meio de frequência obrigatória a curso oficial ministrado pela Escola da Magistratura. Toda essa análise é feita pelo tribunal ao qual o magistrado está vinculado e, com exceção de fatos novos relacionados à pena, poderá determinar se deve ou não retornar às funções.
- Aposentadoria compulsória: é a penalidade máxima em âmbito administrativo, na qual o magistrado não pode mais atuar na magistratura e recebe remuneração proporcional ao tempo de serviço. De acordo com a Resolução de 2011, acontece quando o magistrado: I – mostrar-se manifestamente negligente no cumprimento de seus deveres; II – proceder de forma incompatível com a dignidade, a honra e o decoro de suas funções; e/ou III – demonstrar escassa ou insuficiente capacidade de trabalho, ou apresentar comportamento funcional incompatível com o bom desempenho das atividades do Poder Judiciário. Todos os quesitos são genéricos e dependem de análise caso a caso.
- Demissão: aplicável em âmbito administrativo apenas se o magistrado não conseguiu a vitaliciedade, ou seja, não completou dois anos de carreira. Para magistrados vitalícios, só ocorre por meio de decisão judicial transitada em julgado (sem possibilidade de recurso).
Quem investiga os magistrados?
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) foi criado em 2004 e realiza o controle administrativo disciplinar dos magistrados, ou seja, avalia condutas e comportamentos. Além disso, antes mesmo da criação do CNJ, os próprios tribunais nos quais os magistrados estão vinculados têm suas corregedorias que podem realizar essa fiscalização disciplinar. “Qualquer penalidade contra um juiz pode ser aplicada tanto pelo CNJ quanto pelo tribunal em que o magistrado atua”, prossegue Anna Migueis, da UERJ. Ou seja, não existe um controle externo do judiciário.
O CNJ, conforme o artigo 103-B da Constituição Federal, é composto por 15 membros com mandato de dois anos, que podem ser reconduzidos uma vez. Há integrantes do Supremo Tribunal Federal (STF), do Ministério Público, advogados, dentre outros, que podem ser consultados aqui. O responsável pelos processos correicionais no CNJ é um(a) Corregedor(a) Nacional de Justiça, cujo cargo atualmente é ocupado por Maria Thereza Rocha de Assis Moura, também ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Nos tribunais estaduais e federais, existem corregedorias próprias e órgãos especiais que também são compostos por magistrados.
No caso da juíza Debora Faitarone, o Órgão Especial do TJ de SP, que é formado por 25 desembargadores, aplicou a penalidade por maioria de votos e fez a comunicação ao CNJ, que não precisa abrir outro procedimento administrativo para apurar o caso, a não ser que alguma parte entre com recurso ou uma denúncia para o conselho avaliar. Faitarone, por exemplo, entrou com diversos pedidos ao CNJ para anular o procedimento investigativo disciplinar, alegando cerceamento de defesa. Alguns foram negados, outros estão em análise.
Qualquer pessoa pode fazer uma denúncia, mas nem todas se transformam em PADs. Por exemplo, de acordo com o relatório CNJ em Números de 2020, de 2007 a 2019, foram mais de 76.829 processos correicionais (que tratam de fiscalização, indo desde avaliação de conduta de magistrado a inspeção de tribunal), sendo os pedidos de providências de competência da Corregedoria (42,8%) a maior parte dos casos, seguidos das representações por excesso de prazo contra magistrados (39,7%) – que se trata da morosidade do sistema de justiça, como quando o juiz demora muito tempo para proferir uma decisão – e em terceiro as reclamações disciplinares (16,2%). PADs propriamente ditos, ou seja, que viraram uma investigação contra o magistrado nesse intervalo, corresponderam a 0,17% do total (ou 138, em números absolutos).
De acordo com Resolução nº 135/2011 do CNJ, que regulamenta essas punições administrativas, existe uma apuração preliminar quando qualquer pessoa formaliza uma denúncia, sendo que o magistrado denunciado é notificado no prazo de cinco dias para que preste informações. “Quando o fato narrado não configurar infração disciplinar ou ilícito penal, o procedimento será arquivado de plano pelo Corregedor, no caso de magistrados de primeiro grau, ou pelo Presidente do Tribunal, nos demais casos ou, ainda, pelo Corregedor Nacional de Justiça, nos casos levados ao seu exame”, aponta a norma. O CNJ é comunicado quando se tratam de apurações de corregedorias de outros tribunais e o denunciante pode entrar com recurso em até 15 dias se houver arquivamento.
Agora, se o responsável por analisar a denúncia entender que há indício de infração disciplinar ou ilícito penal, um PAD pode ser aberto e, com essa possibilidade, antes de ser instaurado de fato, o magistrado terá 15 dias para apresentar sua defesa prévia. Depois, “o relator submeterá ao Tribunal Pleno ou ao seu Órgão Especial relatório conclusivo com a proposta de instauração do processo administrativo disciplinar, ou de arquivamento, intimando o magistrado ou seu defensor, se houver, da data da sessão do julgamento”. Se a maioria absoluta dos membros do Tribunal ou do respectivo Órgão Especial votar pela abertura do PAD, haverá a instauração.
“Mas é muito difícil saber como se opera isso, o que os conselheiros consideram grave [para abrir um PAD no CNJ], que tipo de consideração fazem”, critica o pesquisador do Núcleo de Estudos em Elites, Justiça e Poder Político (Nejup-UFRGS) Moisés Lazzaretti Vieira, que se debruçou em casos julgados pelo CNJ entre 2007 e 2017.
Nos últimos 15 anos, foram instaurados no CNJ 147 PADs e foram julgados 111, restando 36 processos pendentes de julgamento. Os procedimentos foram instaurados contra 153 magistrados. Em 20 casos há mais de um processo contra o mesmo magistrado. O relatório, no entanto, não detalha os tipos de infrações. Pedimos mais informações à assessoria do CNJ, mas o órgão disse que não as disponibiliza.
De acordo com reportagem de 2019 do Intercept Brasil, os motivos mais frequentes pelos quais magistrados foram investigados no CNJ até 2018 eram: imparcialidade (24), venda de sentença (21), desvio de dinheiro público (15), indício de venda de sentença (13), negligência (10), falta de ética, tratamento desrespeitoso ou abuso de poder (5), entre outros.
O Ministério Público também é notificado sobre essas apurações – e, fora do âmbito administrativo, é o órgão responsável por solicitar investigação policial ou entrar com ação penal se entender que o magistrado cometeu algum crime. É o caso, por exemplo, do desembargador Mario Guimarães Neto, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que foi denunciado pelo Ministério Público Federal no ano passado por venda de decisões judiciais e suposto envolvimento com uma organização criminosa que desviou recursos do setor de transporte público do estado. O processo relacionado ao magistrado está tramitando na Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, que aceitou a denúncia do MPF, porque ele tem foro especial por prerrogativa de função, conhecido como “foro privilegiado”, ou seja, a Constituição determina que autoridades específicas serão julgadas por órgãos judiciais designados. No caso de desembargadores de tribunais de justiça estaduais, compete ao STJ processar e julgar, conforme o artigo 105.
Posso consultar PADs contra magistrados?
Essa foi uma das dificuldades que Moisés Lazzaretti teve durante sua dissertação de mestrado, já que os PADs tramitam sob sigilo. No caso de se ter o nome do magistrado, número do procedimento ou nome do defensor, se estiver público, é possível consultar apenas as movimentações e decisões no site do CNJ, mas não o conteúdo do procedimento – quando são PADs abertos no conselho ou recursos que as partes podem eventualmente impetrar para análise. Alguns casos são divulgados pela própria assessoria do CNJ, geralmente quando já há uma decisão do conselho em absolver ou condenar um magistrado.
Nos tribunais estaduais e federais, por exemplo, cada um atua de uma forma, sendo que há mais instruções de como protocolar uma denúncia do que como consultar procedimentos na maioria dos sites acessados pela reportagem. Os dados que costumam ser disponibilizados de forma ativa, ou seja, sem a necessidade de uma solicitação, são os de produtividade do judiciário, como número de processos comuns julgados, pendentes e afins em determinado período.
No caso da juíza Debora Faitarone, não é possível consultar o conteúdo do PAD, mas apenas assistir sessões de julgamento do Órgão Especial do TJ-SP, ainda assim com dificuldade para encontrar a sessão respectiva porque o nome dela não aparecia na busca de pautas do dia nem nos comunicados de resultado dos julgamentos, apenas o número de procedimento. A reportagem, por exemplo, só encontrou o vídeo do julgamento que a condenou à aposentadoria compulsória porque os pedidos de anulação do PAD que ela fez no CNJ estão públicos e nas decisões que negavam a solicitação havia a menção do número do procedimento em tramitação no TJ-SP.
“O Judiciário tem essa peculiaridade: quando você tem um escândalo de corrupção no Executivo e no Parlamento aquilo é público, gera fato, a imprensa faz entrevista, vai atrás de todos. Quando ocorre com o Judiciário, a turma bota panos quentes”, critica o pesquisador Moisés Lazzaretti.
Para ele, deveria haver maior transparência ao público sobre os procedimentos disciplinares. “Não temos acesso à integralidade desses processos. A gente sabe a motivação das condenações por aposentadoria compulsória quando saem na imprensa, mas todas as outras [denúncias] que não resultam em condenação, há um curto-circuito, não temos informações claras sobre os casos, os tribunais continuam fazendo correições internas sem obrigação de publicar nada e o nosso órgão de controle do judiciário [CNJ] é, em sua maioria, de integrantes do judiciário”, analisa. “O Poder Judiciário se coloca como um poder neutro, aqueles que vão dar um sentido às normas jurídicas, mas eles também são pessoas como qualquer outra, têm lado, têm paixões, então não estão fora do constrangimento político e social da sociedade”.
E se acabasse a penalidade de aposentadoria compulsória?
Há quem já pensou nisso. Existe um Projeto de Lei Complementar (PLC) de 2020 para alterar a Loman, que é a Lei Orgânica da Magistratura Nacional, que “revoga a pena disciplinar de aposentadoria compulsória e institui a pena de demissão aos magistrados condenados pela prática de faltas disciplinares graves”. O projeto incluiria também os magistrados vitalícios.
O texto é de autoria do deputado federal José Nelto (Podemos-GO), que argumentou, em sua justificativa, que a Constituição Federal de 1988 criou “uma interpretação protetiva classista de que o instituto da vitaliciedade fez com que não fosse recepcionada a pena a de demissão prevista na Lei Complementar 35, a qual somente pode ser aplicada aos magistrados que ainda não tiverem adquirido a vitaliciedade”. Ou seja, a Loman é de 1979 e prevê a pena de demissão, mas não foi completamente atualizada pela Constituição de 1988 para definir critérios – o termo que costuma ser utilizado para atualizar leis anteriores à Constituição é “recepcionar”.
O deputado se baseou na aprovação de uma Emenda Constitucional de 2019, no âmbito da Reforma da Previdência, que retirou a aposentadoria compulsória como punição a juízes, restando a disponibilidade e a remoção no artigo 93, parágrafo VIII. A emenda, porém, não mexe não questão da vitaliciedade.
O projeto do parlamentar está parado, já que a Mesa Diretora do Congresso, presidida por Arthur Lira (PP-AL), avaliou, em junho de 2021, que ele deveria reformulá-lo como uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) e não como um projeto para alterar a Loman por ser inconstitucional. Isso porque a vitaliciedade é uma previsão constitucional que determina a perda do cargo de magistrados vitalícios quando em decisão judicial transitada em julgado, então, a mudança seria na Constituição e não na Loman.
Para Anna Migueis, doutoranda em Direito Público pela UERJ e pesquisadora da Universidade de Harvard, a discussão de como punir magistrados que utilizam de uma garantia constitucional para cometer infrações é complexa e que não é a primeira vez que parlamentares escrevem propostas com o intuito de acabar com a aposentadoria compulsória como penalidade disciplinar. Ela cita a PEC 89/2003, que é de autoria da então senadora Ideli Salvatti (PT-SC), que está parada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados desde 2019. “Aprovação de emenda à Constituição é difícil, é um processo demorado, depende dos votos de muitos deputados e muitos senadores”, explica.
Ela aponta, com relação à emenda da Reforma da Previdência, que não significa que a aposentadoria compulsória foi proibida, mas não é mais uma previsão constitucional. “Ela continua existindo na prática porque ainda é prevista na Lei Orgânica da Magistratura”, pontua. Se ocorresse a exclusão da aposentadoria compulsória da Loman, sem mexer na questão da vitaliciedade e consequentemente na demissão, a pesquisadora argumenta que as demais penalidades disciplinares fariam com que o magistrado infrator continuasse a atuar na magistratura, causando um efeito reverso. “No máximo, iria existir a disponibilidade, que o magistrado iria ficar afastado e continuar recebendo, e depois de dois anos ele iria voltar”, exemplifica.
“A demissão no procedimento disciplinar só é possível com uma revisão da vitaliciedade a partir de uma emenda constitucional e eu duvido muito que se consiga aprovar porque os magistrados têm muita força política”, enfatiza. Porém, a pesquisadora elenca prós e contras. “Possibilitaria que juízes que tenham conduta indevida sejam afastados sem receber, que eles não sejam premiados com uma aposentadoria e sejam demitidos mesmo, essa seria uma vantagem. Mas a gente não pode esquecer da desvantagem: num eventual cenário de perseguição a um juiz que tenha dado uma decisão que desagradou pessoas importantes, pessoas que têm conexões políticas, ele pode sofrer uma penalidade de demissão e essa flexibilização pode diminuir a autonomia dos juízes”.
O que diz o CNJ
A Ponte solicitou entrevista com a ministra-corregedora Maria Thereza Rocha de Assis Moura, mas a assessoria disse que ela estava em missão internacional. Reiteramos o pedido nas semanas seguintes, mas não houve resposta.
A reportagem também procurou a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e solicitou entrevista com um representante, mas a assessoria não deu retorno.
A Ponte solicitou para todas as corregedorias de tribunais estaduais dados sobre procedimentos administrativos disciplinares contra juízes e desembargadores, mas os órgãos solicitavam uma série de documentos, incluindo comprovante de residência, outros juntamente com a motivação do pedido e aqueles que de antemão apontavam se tratar de informações sigilosas, ou sequer respondiam, apesar de nos identificarmos como imprensa. O único tribunal que forneceu dados foi o do Rio Grande do Sul, que informou que, de 2019 a 2021, foram 14 procedimentos instaurados, sendo que quatro foram arquivados. Dos PADs julgados no mesmo período foram 11, sendo que dois foram considerados improcedentes. Das penalidades aplicadas, foram três advertências, três censuras e três remoções compulsórias.