Ausência de veículos de imprensa em protesto que pediu justiça para Camilly, de 17 anos, morta pelas costas por um GCM, demonstra falta de responsabilidade do jornalismo hegemônico com a cobertura da violência de Estado nas periferias
“O guarda não ia atirar do nada.”
“Se tivesse namorando trabalhador ainda estaria viva.”
“Se estava fugindo, estava devendo… Culpa do namorado”
Estes são alguns dos comentários feitos nas postagens da Ponte nas redes sociais sobre o caso da adolescente Camilly Pereira Lima, de 17 anos, morta ao levar um tiro nas costas de um agente da Guarda Civil Metropolitana (GCM) enquanto passava na garupa da moto do namorado, entregador em uma hamburgueria, no bairro do Capão Redondo, na periferia sul de São Paulo.
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Há quatro anos trabalhando na Ponte, ainda me espanta o quanto um certo tipo de brasileiro tem fetiche por defender cegamente as forças de segurança pública. Elas sempre têm razão, são infalíveis! Desqualificar a vítima é a ordem do dia — mesmo que o guarda que efetuou o disparo tenha sido preso em flagrante por homicídio culposo (quando não há intenção de matar. Imagina se tivesse a intenção, não é mesmo?).
Há algum tempo, as GCMs entraram na equação da violência de Estado, sobretudo na cidade de São Paulo, e isso vem chamando a nossa atenção. Cada vez menos atuam na proteção do patrimônio público, sua atribuição constitucional mais clara, e cada vez mais agem com poder de polícia. Por causa disso, estamos preparando uma série de reportagens especiais sobre o tema que serão publicadas nos próximos dias. Queremos entender o aumento da letalidade dos GCMs e por que eles se parecem cada vez mais com a Polícia Militar.
Na quinta-feira (29/8), a Ponte esteve presente em um protesto de familiares e amigos de Camilly. Fecharam as vias, queimaram pneus e gritaram por justiça. Estávamos sozinhos lá, sem qualquer outro veículo de imprensa que tenha se importado com essa história chocante. Nenhum dos canais de TV aberta ou fechada, nenhum jornal de grande circulação, nenhum portal de notícias cobriu a manifestação – todos com equipes quase dez vezes maiores que a nossa.
Apenas nossa repórter Jeniffer Mendonça e nosso fotojornalista, Daniel Arroyo, estiveram lá para contar ao país quem era Camilly. Descobrimos que a adolescente sonhava em ser advogada, estava ansiosa para completar 18 anos e tirar sua habilitação, e que faria um ensaio fotográfico para celebrar a conclusão do ensino médio. Só a equipe da Ponte esteve presente para ver como as viaturas da PM chegaram em alta velocidade, como se um crime hediondo estivesse em curso. Vimos policiais com cassetetes, sentimos a tensão de uma possível ocorrência de violência policial diante dos olhos. Talvez se não estivéssemos lá…o protesto não tivesse terminado pacificamente.
Fizemos o que fazemos de melhor há 10 anos: contar as histórias diárias de violência de Estado do ponto de vista de vítimas para as quais ninguém dá atenção. Aquelas para quem a sociedade dá de ombros, os tais “CPFs cancelados”, os corpos anônimos estendidos no chão. Demos visibilidade a um caso que deveria ter mobilizado toda a imprensa, a sociedade. “Como o país não parou para falar disso?”, foi a pergunta indignada do nosso editor, Ivan Marsiglia. Uma pergunta que fazemos sempre que nos deparamos com histórias como a de Camilly. É uma questão que mantém em nós o ardor da revolta, de que não é possível simplesmente deixar isso acontecer.
A Ponte existe para isso e, com a ajuda de nossos leitores, vamos existir por mais uma década. E seguir adiante. Enquanto houver casos de violência para contar.
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