Artigo | Por que ofender uma boceta rosa choca mais que matar um menino negro

    A visibilidade de um atentado à imagem de uma mulher branca produz muito mais adesão do que o extermínio das vidas negras e periféricas

    “Ele não viu que eu estava com a roupa de escola, mãe?”

    Esta foi a frase de Vinícius, 14 anos, baleado nas ruas da Maré no momento em que o helicóptero blindado da Polícia Civil do Rio de Janeiro abria fogo em direção ao solo. Vinícius agonizou nos braços da mãe, foi socorrido ao hospital muito tempo depois, teve órgãos retirados, suturas por todo o corpo, mas não resistiu aos ferimentos e estilhaços de bala que o destruíram.

    A operação da Polícia Civil marcou a estreia do helicóptero blindado, chamado de Caveirão Voador. Um equipamento de altíssimo custo e de uso totalmente questionável em operações urbanas como a que vitimou Vinícius. O contexto é da intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro, cuja condução foi entregue ao Exército Brasileiro. O Caveirão Voador representa um aprofundamento da estratégia de combate aberto contra a população civil de áreas pobres, com população majoritária negra, sob a justificativa de “combater o crime”.

    A possibilidade de que se possa abrir fogo contra a população civil em territórios de favelas é a face mais aberta e violenta do racismo que estrutura a sociedade brasileira, permitindo que as vidas de jovens negros sejam exterminadas em nome da defesa de vidas brancas, cidadãs de bem. As favelas são o lugar social construído no pós-abolição para concentrar a população negra expropriada de formas de existência, excluída do mercado de trabalho, das formas de participação social, sem nenhuma reparação pela escravização, sem nenhuma política de distribuição de oportunidades, por mais de um século.

    A intervenção federal e a militarização da segurança pública seguem com o apoio de uma parte significativa da sociedade brasileira, que apoia operações nas favelas. Técnicas de guerra são utilizadas até mesmo pela Polícia Civil, à qual a Constituição Federal reservou o papel de polícia de investigação.

    Outro detalhe do contexto é a Copa do Mundo na Rússia. Na primeira semana do evento global, o vídeo de um grupo de torcedores brasileiros viralizou por ser considerado ofensivo em razão de uma mulher loira ser levada a repetir palavras em uma língua que não domina. Acreditando torcer para a equipe do Brasil, a moça branca repete: boceta rosa! O episódio tornou-se um escândalo. Inúmeros posts, artigos de opinião, reportagens foram veiculados nas redes sociais e nas mídias hegemônicas e alternativas. Houve notas de repúdio, mensagens pedindo punição rigorosa dos abusadores. Ativistas do feminismo reverberaram fartamente o episódio, denunciando-o como machista e inaceitável.

    Chama especial atenção no escândalo da boceta rosa a disposição diligente do público em condenar o constrangimento de uma mulher branca, russa, bem vestida, muito bonita. Sem iminência de violência física, o constrangimento moral é combatido como inaceitável pelo público ativista. Aos responsáveis pelo vídeo reclamam-se punições duras.

    Qualquer sombra de constrangimento a uma mulher branca e bem situada socialmente faz um enorme poder de comunicação se movimentar em torno de um assunto tratado de modo monolítico. Não há espaço para dúvidas sobre a gravidade do fato. As punições são cobradas como se a intenção de que quem participou do momento fosse a de humilhar uma mulher perante uma nação inteira, humilhando também todas as mulheres naquele ato. Qualquer fissura na narrativa de denúncia do machismo é considerada conivente com o que é descrito como crime.

    Eu, que tenho boceta rosa, saio do episódio mais confiante de que meu corpo estará ainda mais protegido e prontamente defendido das mais sutis formas de expressão do machismo. Se meu corpo for atacado, ou se apenas a minha imagem for arranhada, há milhares e milhares de pessoas nas redes sociais dispostas a se levantar em minha defesa.

    Aí mora o racismo estrutural da sociedade brasileira. Quantos se levantarão em solidariedade à boceta que pariu Vinícius, exterminado aos 14 anos com o uniforme da escola, numa operação de forças policiais em que a morte de civis não é evitada ou lamentada, muito menos punida? Quantos denunciarão a ação como crime?

    É claro que o ativismo feminista contra a violência nas redes sociais é um avanço na conquista do respeito aos direitos humanos das mulheres. Eu não tenho dúvidas sobre isto. Mas para mim é igualmente cristalino que a capacidade de mobilização e a visibilidade de um atentado à imagem de uma mulher branca produz muito mais adesão do que o extermínio das vidas negras e periféricas, que mata os homens e destrói as mulheres de outras formas.

    É preciso sempre colocar a crítica sob crítica para não ser inocente útil numa guerra que se trava também por meio de narrativas e (in)visibilidade nas redes sociais e meios de comunicação. Enquanto colocamos todo o poder de protesto nisso, aquilo se torna real e possível. Protestamos ao menor constrangimento de uma mulher branca. Enquanto as vidas invisíveis, que não possuem existência rosa, são exterminadas em larga escala, por meio de políticas de Estado, que se legitimam em nome da segurança. Segurança de quem, cara rosa?

    O episódio do vídeo da boceta rosa reforça a defesa da vida das mulheres. Brancas. A intervenção federal, operada por militares, com armamento de guerra usado por policiais civis também promove a defesa da vida das pessoas brancas, da classe média, da Zona Sul. A força bélica da intervenção – que mata na favela – não mata corpos com bocetas rosas, ao contrário, justifica-se socialmente para defender estes róseos corpos. Nisso há consensos da direita à esquerda.

    Chegou a hora de colocar a nu a branquitude da indignação. Chegou a hora do roxo feminista unificar-se em torno de narrativas mais inclusivas e enfrentar as desigualdades em suas múltiplas frentes, territórios e cores para afirmar que todas as vidas importam e não suportaremos nenhuma a menos.

    (*) Jacqueline Sinhoretto é socióloga, professora da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) e coordenadora do Gevac (Grupo de Estudos sobre Violência e. Administração de Conflitos)

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