Atores negros fazem um manifesto de resistência ao ocuparem o Theatro Municipal e lembrar que a cor da pele é como uma permissão para a violência policial
A peça da noite desta segunda-feira, dia 7 de março, que integrava a programação da 3ª edição da Mostra Internacional de Teatro era de um grupo de diretores alemães e falava sobre São Paulo. Quando a apresentação terminou, a plateia começou a levantar e, de repente, atores negros foram entrando, um a um, no corredor do Theatro Municipal de São Paulo. Três deles assumiram o palco. A música que embalava o movimento era “Capítulo 4, versículo 3”, dos Racionais Mc’s, que a cada uma das batidas fortes ecoava pelas galerias do teatro, quase sempre dedicado a música erudita. A frase repetida à exaustão foi “a cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras”. Foram mais de 30 repetições. Era o Manifesto Em Legítima Defesa. Um manifesto sobre ancestralidade, contra o racismo, denunciando as violações de direitos humanos contra o negro, especialmente quando se fala em abordagem policial nas periferias e pedindo pelo protagonismo do negro, que ainda sofre com os grilhões da humilhação, do subjugo, do preconceito. Um manifesto dentro do Theatro Municipal para uma plateia de brancos. Numa contagem feita durante a intervenção, havia apenas 15 negros em uma plateia de quase 1000 pessoas. No grupo, 18 pessoas compunham o elenco de “Exhibit B”, do diretor sul-africano Brett Bailey, que acabou ficando de fora da programação da MITsp depois de ter tido repercussão negativa em um festival de teatro no Rio de Janeiro, onde um grupo chegou a invadir o palco e impedir que o espetáculo continuasse. A peça mostra um zoológico humano formado apenas por atores negros como forma de crítica a mentalidade colonialista escravocrata ainda presente na sociedade. No entanto, foi considerada racista.
De fora da programação, o grupo organizou um manifesto encenado. Além da presença massiva de negros ocupando locais de protagonismo e falando verdades nem sempre agradáveis, o ato foi também emblemático porque aconteceu dentro do Theatro Municipal de São Paulo. O local foi recentemente alvo de ação do Ministério Público e Controladoria Geral do Município, que decretaram a intervenção na administração do local, hoje tocada pelo Instituto Brasileiro de Gestão Cultural. A motivação foi uma investigação sobre o ex-diretor José Luis Herencia, suspeito de lavagem de dinheiro e enriquecimento ilícito, que pode ter gerado prejuízo de R$ 18 milhões ao erário.
O manifesto
Os atores passam o microfone de mão em mão e declamam versos próprios, fazem improvisos, relembram textos célebres em uma apropriação do discurso de Martin Luther King, “Eu tenho um sonho”. Eles lembram a Claudia Ferreira da Silva, arrastada por mais de 200 metros por um carro de polícia. Uma atriz diz: “Claudia Ferreira da Silva”. Os outros: “Presente”. Na sequência relembram Amarildo e a mesma situação se repente. “Presente”, gritam os atores com o punho esquerdo cerrado para o alto. Outros tantos são lembrados nominalmente. São muitos, muitas histórias diferentes. Em comum apenas o fato de serem pretos e pobres. Uma das atrizes então conclui: “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”.Em outro momento, um dos atores pergunta à plateia, atônita, qual o maior desejo do negro? Silêncio. Quando ele sentencia: “ser chamado pelo nome”. E se seguem uma golfada e de nomes pejorativos usados de forma recorrente. Em seguida, cada um deles diz o próprio nome.
De acordo com a atriz Palomaris Mathias, uma das organizadores e participantes do ato, o manifesto sempre existiu dentro deles. “A situação do negro no Brasil é um assunto recorrente para nós que sentimos na pele o preconceito, o racismo, todos os dias. A não inclusão da peça na MIT foi apenas um detonador que disparou um monte de questões. Foi aí que decidimos o que queríamos dizer e posso assegurar que foi unânime: genocídio negro”, conta a performer.
Palomaris disse que era de Claudia que queria falar e que a discussão sobre quem vetou a peça, a posição da MIT, do Brett, se a apresentação iria ou não acontecer, ficou supérflua diante do contexto. “A gente priorizou e isso que foi importante. Eu quero focar na importância do que a gente veio dizer. 110 balas em 5 adolescentes no Rio em Janeiro. Isso nos importa. Eu poderia ser a Claudia. Minha irmã, minha tia”, explica Palomaris. E confidencia algo da época do ocorrido: “e sabe o que mais me revolta? a mídia não falava. Ignoravam a informação de que ela era uma mulher negra. Eu levei um susto quando vi a foto dela e me vi nela”, disse.
Para os participantes foi um feito histórico quebrar a aura aristocrática do Municipal, onde comumente frequentadores vestem trajes sociais para supostamente merecer estar no local e mostrar que o teatro é também local de reflexão através da arte que provoca, que tira da zona de conforto em um ato que é também político. Não é partidário, mas é político.
Palomaris não quis responder o que sentiu da plateia, que tipo de olhar lançavam sobre eles. “Acho que não quero falar disso. O mais importante foi feito. É a ideia de que precisamos falar de genocídio negro. É urgente. E o ato de hoje serviu para clarear… quer dizer, escurecer as ideias. Afinal, quem definiu que é clara a verdade?”, concluiu a atriz, rindo. Talvez tenha sido a primeira vez depois da Semana de Arte Moderna de 22, que o Theatro Municipal tenha abrigado um ato legítimo e que propõe uma quebra de paradigma. Mário de Andrade sorri.