Prefeitura de Praia Grande (SP) instala barreiras para impedir moradores de comunidade de circularem

Moradores da ocupação no bairro Nova Mirim denunciam descaso do poder público: “parece que não tem lugar na cidade para nós”. Local abriga mais de 200 pessoas que vivem sem saneamento básico e passa por um surto de sarna humana

O desemprego levou a jovem Joseane Fermino, 20 anos, a viver na ocupação localizada no bairro Nova Mirim, na cidade de Praia Grande, que fica na Baixada Santista, no litoral paulista, comandada pela prefeita Raquel Chini (PSDB). “A gente está aqui porque a gente precisa e não tem outro canto para a gente ficar agora”, explica Joseane, que nunca conseguiu trabalhar formalmente. Ela mora com o companheiro e, apesar da pouca idade, tem uma filha de seis anos. 

Sem qualquer estrutura, a comunidade, que conta com 58 famílias, não possui saneamento básico, energia elétrica e água encanada. Além disso, os moradores enfrentam um surto de escabiose, conhecida como sarna humana. “Tem muita doença, a água daqui é horrível, sai sujeira, a gente enche o balde e fica sujo no fundo do balde e todo mundo aqui toma banho de canequinha, temos que esquentar água no latão. E tem várias doenças por causa da água, tem gente que já teve furúnculos, leptospirose, diarréia”, contou a Joseane à reportagem que esteve no local. 

“A polícia ambiental vem aqui e fala que a gente tem que sair, para onde a gente vai?”, questiona Joseane Firmino | Foto: Ailton Martins

Recentemente a prefeitura instalou barreiras de concreto para impedir que mais construções sejam feitas no local, o que acabou isolando os moradores da ocupação, que não conseguem mais transitar pelo território com seus carrinhos de coleta de reciclagem, trabalho de grande parte dos moradores. De acordo com funcionários da prefeitura que instalaram os blocos de concreto, o objetivo da barreira foi evitar novas invasões, tendo em vista que a área é de proteção ambiental.

O bloqueio à entrada de acesso à comunidade ocorreu na última sexta-feira dia 16 de julho e continua o mesmo até esta quinta-feira (22/7), apesar de a própria prefeitura afirmar em nota que a “equipe que esteve no local e efetuou o trabalho se equivocou” e que “as barreiras deveriam ter sido posicionadas de outra forma”.  

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Carlos dos Santos, 61 anos, mora sozinho na ocupação há seis anos e não tem filhos. O ex-pedreiro trabalha agora com reciclagem e viu seu trabalho ser prejudicado pelo poder municipal. “Eles pegam e colocam aquelas pedras ali na frente, eu tive que ficar sem trabalhar, estou com um monte de problemas no rosto, nas pernas, trabalho dia e noite para sobreviver com esse carrinho de reciclagem”, desabafa. 

Morador mais antigo da ocupação, Carlos relata que chegou a ocupação em Nova Mirim depois de perder outras moradias em ações de despejos. “Fui despejado de lá do outro lado da Pedro Taques, aí eu vim pra cá, tem famílias que estão aqui há uns quatro anos, e outras com menos de um ano, foram erguendo seus barraquinhos, as pessoas precisam ter onde morar, foram chegando e quem sou eu pra impedir?”, diz.

“Trabalho dia e noite para sobreviver com esse carrinho de reciclagem”, diz Carlos, um dos moradores mais antigos da ocupação | Foto: Ailton Martins

Assim como Carlos, o reciclador Samuel Fernandes, 23 anos, alertou que a tentativa da prefeitura de impedir a circulação dos moradores pode prejudicar os moradores em casos de emergência. “A gente vai ter que deixar os carrinhos de reciclagem lá na frente e se tiver alguma criança aqui, e precisar de um socorro, a ambulância não entra, e vai ter que sair correndo até lá na frente”.

“Está todo mundo triste. Fizeram a barreira ali para ninguém passar com o carro, igual o Carlos, os vizinhos lá de trás, eles trabalham com reciclagem, como vai passar?”, diz Jéssica dos Santos, 30 anos, que vive há dois anos na ocupação com o companheiro que trabalha de reciclagem e mais dois filhos. Desempregada atualmente, Jéssica trabalhava como empregada doméstica.

Jéssica dos Santos vive com a família na ocupação há dois anos | Foto: Ailton Martins

Além de se sentirem prejudicados com relação ao direito de ir e vir, os moradores também sentem-se constantemente ameaçados de despejo pela prefeitura de Praia Grande. “O agente comunitário veio aqui, eu tive que deixar meu barraco, queimar todas as roupas, perdi tudo. O bracinho da minha bebê ficou horrível, muito feio e aí a polícia ambiental vem aqui e fala que a gente tem que sair. Para onde a gente vai? Não tem lugar na cidade pra gente” diz Joseane Fermino.

Silvia de Castro, 42 anos, que também se encontra desempregada e junto do companheiro trabalha com reciclagem, lamenta a ausência de assistência social em um local que possui um Cras (Centro de Referência da Assistência Social) logo em frente à ocupação. “Tem um Cras aqui na frente, mas a gente vai lá e mandam voltar depois, às vezes tem cesta básica, muita gente aqui não conseguiu pegar auxílio do governo. Eu tenho 11 filhos e não consegui pegar. Vim de São Paulo, quando cheguei aqui não tinha nada, nem para comer, quem me deu um prato de comida foi o Carlos, a gente não tem pra onde ir”, relata.

Na comunidade, repleto de crianças, jovens e idosos, a maioria das pessoas vive sem renda fixa. O sustento provém em grande parte da reciclagem, da prestação de serviço doméstico, de “bicos” na construção civil, vendas de chocolates em semáforos, doações e auxílio do governo. 

Os barracos foram marcados pela prefeitura de Praia Grande | Foto: Ailton Martins

De acordo com relatos, as condições econômicas foram e são determinantes para a migração das famílias à ocupação, que aumentou expressivamente após a pandemia, como explica a advogada Gabriela Ortega, da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap), que atua dando assistência jurídica às famílias. “Vimos um aumento das remoções forçadas no meio da pandemia. Nessa ocupação não há ordem de despejo ainda, não tem ação judicial, o que tem são algumas remoções administrativas, que são remoções que acontecem sem ordem judicial, é a prefeitura agindo por ela mesma. Ela nem provoca o Judiciário, então tiveram essas remoções e aí nós fomos até lá, verificamos que a Prefeitura fez um cadastro das famílias e marcou todas as casas”, aponta. 

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Segundo a advogada, não se sabe se a área é de proteção ambiental porque não existe um processo instaurado sobre a área. “A gente só vai saber se é uma área ambiental se tiver um processo judicial”, diz. “A prefeitura de Praia Grande tem como norma que o acolhimento habitacional só pode ser feito com as pessoas que vivem na cidade há mais de cinco anos, senão a única política habitacional dela é pagar a passagem de volta para a cidade de origem da pessoa. Isso, segundo o secretário Anderson Mendes, está no plano diretor e ele me falou verbalmente. É uma lei inconstitucional e uma política higienista, as pessoas que não são da Praia Grande vão fazer o que?”, questiona.

A advogada, que frequenta a ocupação de forma recorrente, também denuncia a situação precária que observa. “Uma fogueira com um caldeirão é o fogão coletivo de parte das famílias, além disso, teve recentemente um surto de sarna humana que começou ali e se você verificar a situação sanitária é péssima, do lado corre um córrego e no meio da ocupação se vê muita lama”, diz. 

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A condição de insegurança habitacional também é reiterada por Gabriela. “As pessoas dormem e acordam e não sabem como vai ser o amanhã, elas saem para trabalhar e não sabem se vão voltar e se o barraquinho delas vai estar lá, é uma aflição que as pessoas vivem e agora tendo um número pichado na porta das casas isso faz lembrar a todo momento que elas correm um risco de despejo.” 

O despejo administrativo, feito pela prefeitura sem ordem judicial, segundo ela, é inconstitucional. “É uma arbitrariedade, é uma ilegalidade porque ele não dá o direito do contraditório e da ampla defesa, que é um direito constitucional”, argumenta. 

A ocupação é repleta de crianças e idosos que vivem em meio ao descaso do poder público, segundo moradores | Foto: Ailton Martins

Sem nenhuma resposta concreta, a única alternativa dada pela Secretaria de Habitação de Praia Grande aos moradores não cabe dentro das condições financeiras locais, segundo a advogada. “Eles mandam as pessoas para os prédios mas elas não conseguem se manter e pagar as contas, elas voltam para uma outra ocupação e além de tudo ela fica com o CPF comprometido e nunca mais pode ser beneficiada por um programa habitacional. É muito cruel, é uma conta que não fecha e a gente está vendo aí prefeituras, em especial de Praia Grande, enxugando gelo”, finaliza. 

Outro lado

Em uma nota publicada nas redes sociais em 17 de julho, a Prefeitura de Praia Grande afirmou que as barreiras foram colocadas de forma equivocada.  “A comissão Especial da Prefeitura de Praia Grande, que trata da contenção de invasões e construções irregulares em áreas de preservação ambiental, explica que as barreiras colocadas na comunidade do Bairro Nova Mirim não foram instaladas de acordo com o formato solicitado. A equipe que esteve no local e efetuou o trabalho se equivocou”, diz. 

“Por se tratar de uma área congelada em que moram 58 famílias que já foram cadastradas pela Secretaria de Habitação para inclusão em futuros programas de moradia, as barreiras deveriam ter sido posicionadas de outra forma. Tal medida será corrigida. Informamos ainda que a Prefeitura entrará em contato com o Estado para solicitar a inclusão dessas famílias no programa de auxílio moradia. Assim, essas pessoas terão reais condições de deixar essa área”, continuou a nota.

Outra medida, segundo a prefeitura, “é a criação de um modelo de implantação de barreiras que será colocado em prática em ações futuras. Por fim, a Comissão Especial se solidariza com as 58 famílias da comunidade por qualquer transtorno que a ação possa ter criado e ressalta que esse tipo de situação não se repetirá mais.”

A Ponte questionou a prefeitura sobre a situação dos moradores e a retirada das barreiras de concreto o órgão informou que instalou “barreiras new jersey” para “evitar novas invasões e construções irregulares em área de preservação ambiental no Bairro Nova Mirim”.

No total, segundo a prefeitura, 12 equipamentos do tipo foram colocados no local. “Paralelo a esta ação, a cidade segue monitorando diariamente 18 áreas, inclusive, com imagens de satélite e drones, para coibir estas ações irregulares. Uma equipe da Secretaria de serviços Urbanos (Sesurb) de Praia Grande estava no local neste sábado (17) para reposicionar algumas barreiras. Cabe ressaltar que o maior objetivo é evitar que carros contendo de forma irregular resíduos da construção civil trafegam no local e aterrem a área com o material que estão transportando.”

Ainda segundo nota da prefeitura, a “comissão especial do Município que trata especificamente das ações para coibir essas invasões irregulares efetuou o congelamento desta área no Nova Mirim no último dia 23 de junho. Novas invasões e construções irregulares não são permitidas”. Um cadastro socioeconômico foi desenvolvido com 58 famílias presentes no local, diz. “Todas foram incluídas no cadastro habitacional da cidade. A Secretaria de Habitação Municipal está estudando formas de desenvolver para essas famílias ações ligadas a novos programas do setor.”

Ao contrário do que alegam os moradores, a prefeitura afirma que todas as famílias da ocupação já foram atendidas e estão sendo acompanhados por equipes da Secretaria de Saúde Pública (Sesap). “No dia 28 de junho, por exemplo, foram realizados 336 atendimentos, com 82 consultas médicas. Os casos de sarna humana nesta região já estão controlados. Ações sociais, como entrega de alimentos, kits de higiene e roupas, também foram realizadas no local.”

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