Prefeitura de SP ameaça fechar espaço para povo de rua em plena pandemia

    Defensoria Pública de SP entrou com ação pedindo que Atende 2 seja mantido e Ministério Público define como “tragédia humanitária” o fechamento do espaço

    Entrada do Atende 2, na região da Luz onde ficam usuários de crack no centro de SP, em imagem tirada em janeiro deste ano; aglomeração pode ser risco de proliferação de coronavírus | Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte Jornalismo

    A Prefeitura de São Paulo ameaça desativar o Atende 2, último espaço de atendimento a pessoas em situação de rua na Luz, no centro de São Paulo, remanescente do extinto programa De Braços Abertos (DBA), voltado aos dependentes de drogas que se aglomeram na região. A previsão é que a desativação do equipamento localizado na rua Helvétia aconteça na madrugada desta quarta-feira (8/4), segundo a Defensoria Pública de SP.

    Os usuários da tenda, que oferece espaço para banho e alimentação, são, em sua maioria, dependentes químicos e serão transferidos para um Centro de Convivência no Glicério, também no centro da capital paulista, construído como parte do programa Redenção, anunciado em substituição ao DBA quando João Doria (PSDB) era prefeito.

    A Ponte questionou a prefeitura sobre a decisão, o dia e hora do fechamento e número de afetados, mas, até a publicação, não havia retorno. Em seu site, a prefeitura informa que o Atende (Atendimento Diário Emergencial) 2 tem capacidade diária para 300 pessoas e a própria administração admite que o equipamento tem grande importância para o serviço de assistência da região.

    A desativação do local tem gerado apreensão nas pessoas que vivem nas ruas da região por temor à violência policial, constante no local, e é alvo de críticas de entidades que trabalham com dependentes químicos e população de rua, especialmente por causa da pandemia de coronavírus. Tanto que a Defensoria Pública de São Paulo entrou com uma ação em caráter de urgência nesta terça-feira pedindo que o fechamento da tenda não aconteça usando, entre outros argumentos, a proliferação da Covid-19 a qual populações vulneráveis estão muito mais sujeitas e a necessidade de higiene como elemento de prevenção.

    Na ação (leia na íntegra), a Defensoria aponta que a decisão da prefeitura vai na contramão do entendimento do próprio governo estadual, que é do mesmo partido, e do decreto municipal que determina a não interrupção dos serviços essenciais voltados à população em situação de rua durante a pandemia. “Obviamente, oficinas e demais atividades comunitárias no Atende, por ora, estão suspensos. Mas a vocação do equipamento para prover o que há de mais básico para exercício da dignidade humana, permanece: fornecimento de alimentação, água, banho, espaço para higiene das mãos e prestação de socorro àqueles que apresentam sintomas de Covid-19 com o devido encaminhamento a UBSs e hospitais”, argumentam os defensores que assinam a ação.

    Procurado pela reportagem, o Ministério Público de SP informou, inicialmente, que não iria se manifestar. No início da noite desta terça-feira, atendendo a determinação da Justiça de SP para um parecer sobre a ação pública, o MP teve o mesmo entendimento da Defensoria e chamou de “tragédia humanitária” a decisão da prefeitura. “Circulam da região em tela diariamente cerca de 500 a 700 pessoas pela manhã, sendo que no período noturno este número, em regra, dobra. O único local, em todo o centro da cidade, que presta relevantes serviços para a população mencionada é o denominado Atende 2. Não é preciso dizer que a população em tela é extremamente vulnerável ao Covid-19, necessitando de serviços públicos na região”.

    Janaína Xavier, conselheira do Comitê da População de Rua da secretaria de DH e membro do Conselho Gestor de Saúde da Prefeitura de SP, afirma que o sentimento geral é de medo. “Muitos estão alvoroçados com a notícia porque ficaram sabendo que poderiam ser internados compulsoriamente. Estão tirando o direito deles de ir e vir, se isso acontecer. Além disso, estamos recebendo denúncias de que a abordagem da Guarda Civil Metropolitana está cada vez mais violenta”, declarou Janaina, confirmando o relatado em recente reportagem da Ponte.

    Ela destaca que o Atende 2 é, de fato, o único espaço que os usuários têm para poder se abrigar, ainda que a pernoite seja no chão. “Em plena pandemia do coronavírus vão tirar o único lugar em que eles podem se abrigar? Acredito que eles deveriam deixar a tenda aberta pelo menos durante esse período”, contou Janaína.

    Coordenadora geral do Centro de Convivência É de Lei, Maria Angelica Comis concorda com Janaína. “O Atende 2 não é o equipamento ideal. Eu não estou defendendo que ele seja um ótimo equipamento, mas estou defendendo que ele não feche nesse momento. O Atende está tendo um papel fundamental na região, porque é o local onde as pessoas estão podendo se lavar, há minimamente alimentação. As pessoas que estão em situação de uso mais problemático [de drogas] não vão sair de lá para outro local. Eles afirmam que vão abrir o espaço do Glicério. Acho ótimo, inclusive demoraram. O prolema é que não se deve fechar um para abrir outro. Nesse momento, de pandemia, é até perverso fazer isso. Deveria, pelo contrário, ampliar, mesmo porque não é apenas na região central que tem população de rua”, pontua Maria Angelica.

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    A entidade havia divulgado uma nota assinada em conjunto com a Plataforma Brasileira de Política de Drogas e o Fórum Mundaréu da Luz após um encontro com a Secretaria Geral do Governo Municipal, no último dia 31, em que foram apresentadas 17 medidas a serem tomadas para tentar proteger a população da região. Maria Angelica afirma que, na ocasião, a prefeitura ocultou a informação de que o Atende 2 seria desativado.

    Maria Angelica destacou que a aglomeração é um problema de fato na luta contra a pandemia, mas voltou a salientar que a solução é dar mais opções e não tirar as poucas que já existem. “Fazer salas de uso, por exemplo. Já que não querem que as pessoas fiquem aglomeradas, abram espaços de uso seguro. Muitos permanecem na região por causa disso também [o uso de crack]”, ponderou.

    “O Redenção é muito mais um projeto de papel do que de prática porque você coloca trabalhadores da saúde e dá o nome de Redenção na Rua para passar a impressão de que algo está sendo feito. É preciso fazer uma abordagem criativa e não manter pessoas paradas em volta do fluxo que não se conectem, conversem com os usuários. Talvez assim, com abordagens diferentes, mais chamativas e mais próximas da realidade de quem vive lá, poderiam conseguir até diminuir um pouco a aglomeração”, explicou.

    Em nota, a Craco Resiste, que trabalha no apoio aos dependentes químicos, repudiou a decisão municipal, definida pelo grupo como “genocídio”, e afirmou que as pessoas serão complemente abandonadas em plena pandemia.

    Craco Resiste divulgou essa montagem para criticar decisão municipal | Foto: reprodução Facebook

    “Essa parece ser mais uma tentativa de Covas e Doria de acabar com a Cracolândia. Dessa vez, a estratégia é simplesmente deixar as pessoas morrerem. O serviço que será fechado tem diversos problemas e foi sucateado durante os últimos anos. Mas, ainda é o local que oferece alimentação, lugar para dormir e torneiras (quando não estão quebradas ou sem água)”, diz trecho da nota divulgado na página do Facebook da Craco Resiste.

    (*) A Ponte evita usar a expressão “cracolândia” para se referir a regiões ocupadas por pessoas pobres no bairro da Luz, em São Paulo, ou em outros locais, por considerá-la imprecisa e preconceituosa. As pesquisas mais amplas sobre o tema, como a Pesquisa Nacional sobre o Crack feita pela Fiocruz em 2016, apontam que as causas da situação de vida dessas pessoas estão muito mais relacionadas com a pobreza e a exclusão social do que com o uso de alguma substância. Entenda: ‘Repórteres que falam em Cracolândia são uma fraude’, diz Carl Hart.

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