Presa na pandemia por crime de seis anos atrás, mãe é impedida de amamentar filha

    Mãe de três meninas, uma delas de 1 ano e seis meses, Vanessa da Silva foi condenada por tráfico de drogas em 2014; Justiça negou prisão domiciliar e desconsiderou coronavírus

    Vanessa Mayara da Silva, 30 anos, distribuía marmitex em seu bairro antes de ser presa | Foto: Arquivo pessoal

    A amamentação é um processo importante da maternidade, porque, além de ser o alimento para que o bebê cresça de forma saudável, é um momento único de conexão entre mãe e filho. É mais uma das fases de desenvolvimento de uma criança, como a primeira papinha, os primeiros passos e palavras, os dentinhos crescendo e caindo. Aos 30 anos, a diarista Vanessa Mayara da Silva está sendo privada disso tudo desde o dia 9 de maio, quando foi presa e teve seus laços cortados com a filha de um ano e seis meses, que ainda está em fase de amamentação. Vanessa tem outras duas meninas de 10 e seis anos de idade.

    A prisão aconteceu em meio à pandemia de coronavírus, segundo sua mãe, Vera Lucia Daniel da Silva, 49, quando homens da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), a tropa mais letal da PM paulista, foram até a casa de sua filha, no Jardim São Pedro, região de Guaianases, zona leste da cidade de São Paulo, verificar uma denúncia de barulho. A chegada da PM ao local ocorreu por volta das 22h.

    “A Rota foi até lá por denúncia de bagunça, gente correndo em cima do telhado. Viram que não tinha barulho. Meu genro deixou entrar [no imóvel]. Pediram os documentos e eles puxaram. Aí que foram saber que ela era procurada pela Justiça”, contou Vera Lucia, que havia deixado a casa da filha minutos antes para retornar à sua residência, a poucos quilômetros dali.

    Segundo a mãe de Vanessa, os PMs demonstraram certo constrangimento diante da situação, mas não teriam o que fazer a não ser levar a filha para a delegacia, em cumprimento ao mandado de prisão datado de novembro do ano passado. O Superior Tribunal de Justiça negou o pedido de prisão domiciliar, feito a partir dos seguintes argumentos: da Covid-19, do tempo de condenação e do fato de ela estar amamentando.

    O caso de Vanessa Mayara da Silva é acompanhado pela Amparar (Associação de Amigos e Familiares de Presos) e pela Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio. Atualmente, Vanessa prestava serviço voluntário na Amparar, ajudando a cadastrar pessoas para o recebimento de cestas básicas. A entidade classificou Vanessa como uma “mãe presente, muito carinhosa e dedicada com as filhas”, e que sua volta para a prisão é um retrocesso.

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    A história que levou Vanessa à cadeia um dia antes da celebração do Dia das Mães teve início na tarde de 10 de outubro de 2013. Naquela data, segundo o processo ao qual a Ponte teve acesso, policiais militares seguiriam para a rua Alegros e Surdinas, no bairro Conjunto Residencial José Bonifácio, na região de Itaquera, zona leste da capital paulista, para verificar uma denúncia sobre tráfico de drogas.

    Ao chegarem ao local, em um prédio abandonado, teriam encontrado Vanessa e um antigo companheiro. Com o homem, de acordo com o processo judicial, foram localizadas 173 porções de cocaína e R$ 99,85. Enquanto Vanessa possuía sete porções de cocaína. Ao lado da dupla haviam duas facas. Um trecho do documento cita que, “ao serem inquiridos na delegacia, ambos admitiram a prática da mercancia em conjunto”.

    Naquela época, Vanessa estava grávida de dois meses e foi encaminhada para o CDP (Centro de Detenção Provisória) de Franco da Rocha, na Grande São Paulo, permanecendo presa por cinco meses. Ao deixar a prisão, a mulher estava com setes meses de gestação de sua segunda filha que, atualmente, tem seis anos.

    Vanessa deixou a prisão sem ter sido condenada, o que de fato só veio a ocorrer em julho de 2014, quando o juiz André Carvalho e Silva de Almeida sentenciou a mulher e seu então companheiro a três anos de prisão cada um. Após a sentença, a Justiça concordou que ambos poderiam recorrer em liberdade.

    Vanessa ao lado de sua mãe Vera Lucia | Foto: Arquivo pessoal

    À Ponte, Vera Lucia contou que, durante o período em liberdade, Vanessa se internou em uma clínica para contornar o vício em drogas, e assim que recebeu alta, passou a cuidar das filhas, a trabalhar com limpeza de casas, até se matricular no início de 2020 no sexto ano do Ensino Fundamental.

    Sem conseguir controlar a emoção, Vera Lucia contou como está a convivência com as netas, que estão sendo cuidadas com auxílio do atual companheiro de Vanessa, que está com a guarda das meninas de 10 anos e da bebê, além da avó paterna da menina de seis anos.

    “Eu fiquei triste. Achei um absurdo. Minha filha mudou de vida e agora acontecer isso? E ela amamenta a neném. Eu morro de dó, a menina chamando a mãe, procurando ela pela casa”.

    Vera Lucia conta que todas as meninas têm sentido falta da mãe, mas a bebê é que demonstra os sinais mais preocupantes. “Minha netinha está mordendo a unha que chega a sangrar. Que ao menos prendesse ela e deixasse ela em prisão domiciliar”, ponderou.

    Durante a conversa, Vera Lucia afirmou que acredita que sua filha não tinha conhecimento do mandado de prisão e que foi pega de surpresa, mas que, de alguma forma, pressentia algo errado. “Sempre falava que queria ir ao Fórum. Eu acho um absurdo, depois de tanto tempo fora da cadeia, após a pessoa mudar de vida, cuidando das filhas, estar estudando, ser presa desse jeito”, lamentou.

    Vanessa com as filhas mais velhas | Foto: arquivo pessoal

    Ela diz que a filha já havia deixado um recado sobre o trato com as meninas. “‘Mãe, se acontecer alguma coisa comigo, ajuda a neném e as meninas. Não abandona minhas filhas’. Acho que ela já sentia no coração”, confessou.

    “Eu fico aflita, nesse frio, está sem roupa, sem meias. Estamos esperando eles [diretores da penitenciária] liberarem os documentos para que a gente possa levar coisas para ela. Ela também deve estar aflita. Eles deveriam fazer algo para as mães que amamentam ficar junto com os filhos e não separar assim dessa forma”, completou Vera Lucia.

    Antes de ser presa, Vanessa Mayara da Silva havia conseguido receber o auxílio emergencial e, segundo sua mãe, estava fazendo marmitex para distribuir a moradores de rua. Ela também estava auxiliando a Amparar na distribuição de cestas básicas.

    “Ela queria mostrar para a sociedade que se reabilitou”

    Vanessa estava passando por uma fase feliz após conseguir juntar suas três filhas e seu companheiro. Ela tinha ido procurar atendimento psicológico para se manter em equilíbrio e se firmar mais ainda como uma boa mãe.

    “É uma pessoa que está tentando o tempo inteiro mostrar para a sociedade, mostrar para a Justiça, que ela se reabilitou, que ela tinha uma vida nova. É uma pessoa que superou sozinha uma dependência importante, houve um esforço enorme da parte dela. Ela estava muito feliz com essa ideia em ser mãe de família e tinha a esperança de provar isso na Justiça”, contou o psiquiatra e psicoterapeuta do Coletivo Escuta Liberta, José Gilberto Cukierman.

    Vanessa vivia uma fase feliz ao lado das filhas e do companheiro | Foto: aquivo pessoal

    O profissional afirmou que a mulher se demonstrava muito feliz e que até mesmo durante a quarentena conseguia encontrar algo prazeroso. “O confinamento está sendo difícil para muitas famílias, mas não era o caso dela. Para ela, estava sendo bom, porque isso era uma oportunidade de todos ficarem ‘juntinhos’. Por causa da pandemia, ela tinha conseguido juntar a família dela no mesmo lugar”, disse o médico.

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    Quem está cuidando do caso de Vanessa Mayara da Silva é o defensor público Mateus Moro, que encaminhou um pedido de liberdade ao STF (Supremo Tribunal Federal), após o STJ (Superior Tribunal de Justiça) negar o HC (Habeas Corpus). A intenção, segundo o documento, é a “fixação do regime aberto, bem como a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos ou, de forma subsidiária, que seja permitido que Vanessa aguarde o julgamento do mérito em prisão domiciliar”.

    O pedido de liberdade da Defensoria Pública de São Paulo é baseado na pena de três anos, considerada muito alta, e na recomendação do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que pediu a reavaliação da manutenção da prisão de pessoas consideradas do grupo de risco, caso de Vanessa, que é lactante, ou seja, está em fase de amamentação.

    “Qual o papel do direito penal? Você prende alguém por um fato que não é grave depois de sete anos? A prisão serve para desumanizar, criminalizar o pobre. É um caso mais do mesmo. Esses casos que a gente pega todos dias são a microfísica de moer pobre”, definiu Mateus Moro.

    O defensor atua no Nesc (Núcleo Especializado de Situação Carcerária) da Defensoria Pública do Estado de São Paulo e se mostrou preocupado com as condições em que a mulher está presa, ainda mais no atual cenário de proliferação do coronavírus, que já atingiu diversos presídios em todo o país.

    “Na maioria das unidades prisionais falta água, não tem vestuário para as diversas épocas do ano, ainda não foi implantado banho quente, falta kit de higiene, sabonete, é superlotado. Isso mostra como são tratadas de forma animalesca. É Auschwitz, muita gente morrendo”, pontua.

    Moro ainda lembrou que o caso de Vanessa se assemelha ao de uma gama “pessoas presas por tráfico de drogas e condenadas a menos de quatro anos anos que não deveriam estar presas”. Esse cenário motivou a Defensoria Pública a realizar um mutirão na tentativa de conseguir a liberdade de parte delas e desafogar as prisões.

    Lugar de mãe e grávida não é na prisão

    Desde 2016, o Marco Legal da Primeira Infância prevê que mulheres grávidas, em fase de amamentação, mães de crianças de até 12 anos ou com filhos portadores de deficiência tenham direito a prisão domiciliar nos casos em que ainda couber recurso, ou seja, que não estejam com condenação definitiva (transitado em julgado).

    Reportagem da Ponte publicada em setembro do ano passado mostrava o descumprimento desse benefício previsto em lei: mais de 80% de mulheres que se encaixariam nessa condição, tiveram o pedido de liberdade negado.

    Em março, quando a pandemia do coronavírus já era uma realidade e o isolamento social estava no começo, foi a vez de o STF recomendar que mulheres grávidas ou que estejam amamentando (caso de Vanessa) fossem para a casa para se proteger da doença. O ministro Marco Aurélio Mello enquadrou essas mulheres no grupo de risco, ao lado de pessoas com doenças imunossupressoras, como HIV, e crônicas, como diabetes e cardiopatias.

    Vanessa teve o direito desrespeitado duplamente, já que foi presa quando a quarentena e a decisão da Suprema Corte já eram uma realidade, e agora, quando a Justiça negou o seu pedido de liberdade, desconsiderando o mérito da doença no julgamento.

    Outro lado

    A Ponte questionou a Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo sobre a situação de Vanessa e se não haveria possibilidade de ela amamentar a filha em algum ambiente do CDP.

    Em nota, a pasta informou que, até o momento, nenhum documento que comprove a maternidade ou amamentação foi entregue ao Centro de Detenção Provisório Feminino de Franco da Rocha, onde Vanessa chegou em 11 de maio. “No caso de presas gestantes ou lactantes, é solicitada, pelo CDP, a transferência para a ala de amamentação da Penitenciária Feminina da Capital, quando completam a 35ª semana de gestação ou após o nascimento da criança. Há casos de reeducandas que foram presas enquanto se encontravam amamentando seus filhos e foi solicitado o envio da documentação pertinente para a unidade poder solicitar vaga na ala de amamentação”.

    A SAP informa que, atualmente, há oito presídios com “Alas de Puérperas e Amamentação que são destinadas a receber presas grávidas e lactantes” em todo o estado.

    O STJ informou que, no dia 19 de maio, o ministro Nefi Cordeiro negou o pedido liminar pela liberdade de Vanessa. Em sua decisão, ele escreveu que “a concessão de liminar em habeas corpus é medida excepcional, somente cabível quando, em juízo perfunctório, observa-se evidente constrangimento ilegal”.

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    Ainda em seu despacho, ele afirmou que se sente impedido de entrar no mérito quanto ao coronavírus. “Observe-se também que o pleito de concessão da prisão domiciliar à paciente, sob a perspectiva da pandemia da Covid-19, não foi apreciada pelas instâncias originárias, o que impede seu exame, repito, sob essa ótica, por essa Corte, sob pena de indevida supressão de instância”. Segundo o STJ, ainda “haverá julgamento colegiado a respeito”.

    O STF informou que ainda não há no sistema qualquer processo “em nome da citada pessoa em tramitação”.

    A Ponte também procurou a PM e a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo para saber detalhes da ação da Rota naquele dia, que terminou com a prisão de Vanessa. Em nota, a SSP-SP confirma a ocorrência e informa que os policiais receberam “uma denúncia anônima e encontraram a mulher em uma residência”.

    “A capturada possuía um mandado expedido em 09/01/2020 pela 30ª Vara Criminal do Foro Central da Barra Funda por tráfico. Exames periciais foram solicitados ao IML. O caso foi registrado como captura de procurado no 53º DP (Parque do Carmo)”, diz a nota.

    Reportagem atualizada às 17h11 do dia 26/5 para inclusão da nota da PM/SSP-SP

    Reportagem atualizada às 13h30 do dia 27/5 para inclusão de nota da SAP

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