Presídios no Pará têm superlotação, piolhos e degradação humana

    Inspeção do Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura expõe graves problemas de violações de direitos em cinco unidades prisionais no estado

    ‘Celas container’, semelhantes às de Altamira, já eram apontadas como inadequadas por peritos do MNPCT em inspeção em outras unidades prisionais do Pará em 2016 | Foto: Reprodução/Relatório MNPCT/2016

    O Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) divulgou uma nota pública nesta quarta-feira (25/9) detalhando as condições precárias do sistema prisional do Pará depois de inspeções em cinco unidades realizadas entre 16 e 20 de setembro. O relatório completo deve ficar pronto em até 30 dias.

    Além da superlotação, quase um pré-requisito do sistema penitenciário, os peritos observaram ausência de condições básicas de higiene, epidemia de piolho, falta de atendimento para pacientes com doenças crônicas, uso desproporcional da força por parte dos agentes e até mesmo a companhia de ratos nas celas de uma unidade prisional feminina. A última vez que o Mecanismo esteve no estado foi em 2016.

    Uma das unidades prisionais a receber a inspeção foi o Centro de Recuperação Regional de Altamira, local do massacre que deixou mais de 60 mortos no dia 29 de julho deste ano. A matança foi um dos elementos que pesou na decisão de escolher o presídio para a visita.

    Segundo Adriana Raquel Costa Oliveira, perita do MNPCT, a estrutura do local e o anexo onde aconteceram as mortes permanecem sem qualquer mudança, tendo como consequência um atendimento precário, sem atividades para os presos, tratamentos médicos que foram interrompidos depois do episódio e um espaço de banho de sol mínimo.

    Ela destaca que a estrutura do presídio de Altamira já estava com sérios problemas desde a rebelião de 2018 e que foi, aliás, a solução improvisada de colocar presos em containers – medida criticada pelo Mecanismo – que fez com que as pessoas morressem incineradas ou asfixiadas muito rapidamente.

    “Nosso relatório de inspeção de 2016 propôs a interdição de celas containers em todo o estado. Não se faz notar ações de reparação, ou medidas para não repetição de episódios como o ocorrido em julho de 2019”, apontou em entrevista à Ponte.

    As outras unidades visitadas foram: Delegacia de Polícia de Altamira (Triagem), Cadeia Pública de Jovens e Adultos (CPJA), Centro de Recuperação Prisional do Pará (CRPP 3), Centro de Reeducação Feminino (CRF).

    De acordo com Adriana, o grupo de trabalho encontrou um conjunto de situações de desrespeito à condição humana das pessoas presas em comum em todas as unidades. “É difícil apontar a [unidade] pior. No entanto, o que encontramos na ala de isolamento do CRPP foi algo difícil de acreditar, tanto que precisamos interditar o local, e as pessoas que lá estavam foram deslocadas para outros blocos, ainda na nossa presença”, contou.

    Neste local, conforme descrito na nota pública, havia pessoas há mais de 17 dias em celas úmidas, sem circulação de ar, o que facilita a proliferação de doenças, e alguns com graves problemas de saúde negligenciados. “Encontramos até paciente com visíveis transtornos mentais obrigados a cumprir esses ‘procedimentos’, outros com limitações físicas que não são consideradas, ou seja as demandas e especificidades não são observadas”, relatou a perita.

    Na unidade prisional feminina, o CRF, chamou a atenção a presença de animais que transmitem doenças, como ratos, e a falta de produtos de higiene básica, como shampoo, pasta de dentes, escova, e até absorventes íntimos e barbeadores. Na unidade, foi identificada uma epidemia de piolhos entre as presas e o extravio de documentos depois de uma atuação violenta da Força Tarefa de Intervenção Federal. Além disso, em 18 dias foram retiradas para banho de sol uma única vez.

    Adriana elenca alguns problemas que considera graves a partir das visitas realizadas: a falta de produtos de higiene é comum em várias unidades, pessoas com doenças crônicas, como diabetes, não consegue, ter uma dieta adequada recebendo apenas as três refeições como qualquer preso comum, a ausência de um protocolo de uso da força, que acaba ensejando abusos. ” Isso permite que, sobretudo nas unidades sob intervenção da FTIP, sejam adotados ‘procedimentos’ que são indutores de ‘tratamentos cruéis, desumanos, degradantes e tortura’”, pontuou.

    A perita também destaca a interrupção das visitas familiares. “Isso para além da ilegalidade, quebra de vínculos, canais de comunicação com o mundo externo, tem um impacto na restrição de itens de vestuário, higiene, medicação e alimentos, pois muitas vezes é a família que assume o suprimento desses, na ausência do Estado”.

    Na segunda-feira (23/9), o MNPCT oficiou (leia documento na íntegra) o Ministério Público Federal sobre o resultado da inspeção e pediu providências em caráter de urgência. Na terça-feira (24/9), o procurador Patrick Menezes Colares abriu um inquérito para apurar as denúncias e fez dois ofícios: um pedindo providências na área da saúde e outros serviços básicos, e outro requisitando perícias criminais e oitivas de pessoas presas.

    Como integrante do Mecanismo e por força da função que a faz estar nesses ambientes, Adriana Raquel Costa Oliveira falou sobre a indignação que acompanha o trabalho dos peritos ao lidarem com realidades tão degradantes. “É o que nos move a buscar encaminhamentos, alguns em caráter emergencial, antes mesmo de finalizar a inspeção, outros a serem apresentados como Recomendações quando da elaboração do Relatório da Missão. O desejo de seguir com nossa atribuição precípua de realizar visitas regulares, com vistas a contribuir na identificação de fatores de riscos, e possíveis fatores de proteção a serem tratados durante os diálogos e articulações institucionais”, concluiu.

    Outro lado

    A Ponte questionou a Sisupe (Superintendência do Sistema Penitenciário do Pará) sobre o conteúdo do relatório, bem como a informação de que o MPF havia aberto uma investigação. Como resposta, a pasta enviou cinco notas negando a maior parte dos elementos apontados pelos peritos do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e afirmando que está “trabalhando para solucionar a questão da superlotação”, único problema, portanto, que a pasta admite ter no sistema.

    Também destacam abertura de novas vagas e transferências de detentos da unidade de Altamira. “O Complexo Penitenciário de São Félix do Xingu será inaugurado em seis meses e internos custodiados no Centro de Recuperação Regional de Altamira serão transferidos para lá, o que acarretará em melhores condições para cumprimento de pena e melhor infraestrutura. Já no próximo dia 7 de outubro serão inaugurados duas unidades prisionais de regime fechado e semiaberto, com um total de 612 vagas”, diz uma das notas.

    Pelo menos dois informes oficiais, apontam resultados negativos para exames feitos em detentos que alegaram terem sofrido tortura. “Oito internos custodiados na Cadeia Pública de Jovens e Adultos (CPJA), que denunciaram terem sido torturados por agentes prisionais da Força-tarefa de Intervenção Penitenciária (FTIP), passaram por exame de corpo de delito” e os laudos deram negativo.

    No caso de Ananindeua, a Sisupe afirma que “divulgou os laudos periciais das 64 internas do Centro de Recuperação Feminino (CRF), que fizeram denúncias de maus tratos e tortura por parte de agentes federais da Força-tarefa de Intervenção Penitenciária (FTIP) durante a retomada de controle na unidade e os documentos comprovam que as internas não possuem sinais de torturadas e não sofreram qualquer tipo de violência”, aponta a nota.

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