Preso injustamente, Fernando pôde tirar primeira foto com a filha em saída temporária

Direito previsto em lei foi alterado no Congresso e restrito aos que já cumpriam pena; repositor, preso desde 2017, saiu pela primeira vez em junho quando finalmente passou alguns dias com a filha mais nova

Fernando Augusto Lacerda de Oliveira, 38, sentiu-se enjoado. Era a primeira vez em seis anos que andava em um carro. Quer dizer, no banco da frente, e não na traseira escura dos veículos usados para o transporte de presos entre as unidades. Ainda confuso, dividia a atenção do olhar entre a paisagem e o celular da esposa. “Eu nunca recebi tanta notificação assim”, disse Emilly Soares Dias, 33. Não paravam de chegar mensagens de parentes, amigos, colegas de trabalho. Todas celebrando a primeira saída temporária de Fernando. O direito concedido a presos em regime semiaberto foi alvo de mudanças neste ano. O resultado foi uma alteração na Lei de Execução Penal (LEP) que acabou com as visitas nos moldes anteriormente previstos. Estados como São Paulo optaram por manter o benefício aos que já cumpriam pena.

Pai de Fernando, o motorista Clovis Fernando Pereira de Oliveira, 68, temeu que a mudança na lei impedisse o filho de sair. Na porta da Penitenciária “ASP Joaquim Fonseca Lopes” de Parelheiros, na zona sul de São Paulo, a ficha de Clovis só caiu quando Fernando atravessou o portão azul de metal. O abraço foi banhado de lágrimas.

A saída de Fernando possibilitou uma série de primeiras vezes. A mais especial foi a chance de conviver novamente com os três filhos ao mesmo tempo. Com a mais nova, de apenas 6 anos, ele conseguiu tirar a primeira foto. Até então, os registros dos dois juntos vinham apenas de montagens.

Até março, a LEP previa que, por quatro vezes por ano, presos em regime semiaberto tivessem direito a saídas com prazo máximo de sete dias. O projeto de lei 14.843/24 mudou esse cenário. Derrubando o veto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que mantinha as visitas à família, o Congresso decretou o fim do mecanismo tido por especialistas como fundamental para ressocialização.

A lei também tornou obrigatória a realização do exame criminológico para progressão de pena — ou seja, para sair do regime fechado para o semiaberto. Considerado pseudociência por estudiosos na área da segurança pública, ele consiste em uma avaliação “para obtenção de dados reveladores”, conforme dizia o texto original da LEP. Fernando teve o exame dispensado, o que permitiu a saída agora em junho.

Em saída temporária, Fernando pôde tirar fotos com a filha mais nova pela primeira vez | Foto: Arquivo pessoal

Na decisão o juiz Adjair de Andrade Cintra atestou que Fernando cumpriu o tempo necessário para a progressão e tem bom comportamento. Sobre o exame, ele foi contrário ao pedido da promotora Rúbia Prado Motizuki que cobrava a aplicação da ferramenta com perguntas como ” O sentenciado apresenta características de periculosidade com manifestações atuais?”, “Como são seus mecanismos de contenção de impulsos?” e “Demonstra o executado possuir personalidade agressiva para o convívio social?”.

“O exame criminológico exige fundamentação idônea, não bastando a mera alegação genérica de gravidade e natureza do delito”, escreveu o juiz na decisão. O temor da família era de que, caso fosse mantido, o reencontro com Fernando demorasse ainda mais.

Leia também: Como funciona uma saída temporária de presas em SP

Foi na saída temporária, iniciada em 17 de junho, que Fernando pôde pela primeira vez tirar uma foto com a filha mais nova, Heloísa, 6. A prisão dele ocorreu durante o chá de bebê dela. O que era para ser uma festa celebrada na casa de Clovis e Antonia Gomes Lacerda de Oliveira, 68, mãe de Fernando, virou a maior das tragédias enfrentadas pela família. Fernando permaneceu encarcerado de 29 de outubro de 2017 até aquela terça-feira (17/6). 

Condenado à revelia, ele cumpre uma pena de 18 anos e dois meses por tentativa de latrocínio. O crime ocorreu em março de 2011. Um grupo invadiu um condomínio no bairro da Aclimação, na região central da capital. Moradores e o porteiro foram rendidos e itens como celulares, computadores e dinheiro vivo foram roubados. Na fuga, houve troca de tiros com a polícia e uma pessoa ficou ferida. 

Duas das vítimas reconheceram Fernando por meio de uma foto apresentada a elas no 5º DP da Aclimação. A foto em preto e branco foi tirada em fevereiro de 2010, quando Fernando foi preso em uma balada. Segundo ele, a festa era a despedida de uma amiga que partiu para a Europa. Policiais do DEIC (Departamento Estadual de Investigações Criminais) foram ao local investigar suposta denúncia de que ali ocorria uma festa em celebração a um assalto. Detido, Fernando teve a foto tirada e ficou 16 dias preso. Neste período, diz ter passado diversas vezes por reconhecimento pessoal.

Foto de Fernando usada no reconhecimento fotográfico | Foto: Reprodução

Na imagem, Fernando tem semblante assustado. O rosto sem barba e a careca são evidentes na fotografia. O mesmo não ocorre com os olhos azuis, sabotados pela ausência de cor na foto. 

Uma das vítimas descreveu um homem pardo, com 1,80 m de altura, forte, que tinha cabelo crespo e castanho, olhos escuros, um rosto redondo e barba por fazer, como sendo um dos assaltantes. Mesmo com a descrição diferente, ele reconheceu Fernando, por meio da foto, como sendo esse suspeito que o abordou. Essa foi a única prova usada para a condenação. 

“O mais difícil é saber que ele vai ter que voltar [depois da saída temporária]. Ele não cometeu esse delito e, mesmo assim, tem que cumprir essa pena. Ninguém consegue imaginar o que passa nas nossas cabeças”, desabafa Antonia.

Luta da família 

Ainda era madrugada quando a casa dos Lacerda de Oliveira despertou. Moradores da Vila Ademar, na zona sul de São Paulo, mãe, pai, irmãos e amigos contavam os minutos para ir buscar Fernando. A presença dele na casa, mesmo que não física, era notada nos detalhes. O rack abaixo da televisão apoiava uma pilha de camisetas com a foto do repositor de mercadorias. Antes de ser preso, era essa a profissão que ele exercia. “Era um ótimo funcionário. Ele fazia tudo direitinho”, contou o pai Clovis.

Distribuídos no sofá da sala, mãe e pai mandavam mensagens avisando que queriam sair logo, queriam ver Fernando logo. “Se não chegar em 10 minutos, vai ficar!”, dizia Antônia ao gravar mensagem para um dos parentes. Ela, pronta desde cedo, falava que não planejou com rigor o que faria com o filho nos próximos dias. “É ele quem vai dizer o que quer. Eu vou obedecer”, disse.

A caravana partiu em direção a Parelheiros levando também faixas e fogos de artifício. “Justiça e liberdade”, lemas presentes nos cartazes, foram adotados pela família como meta a ser cumprida. Venderam carro, casa, fizeram dívidas. Tudo para pagar por advogados na esperança de provar a inocência do filho. Clovis fez até promessa para santo. Antonia aprendeu a monitorar o andamento de processo judicial. O casal, que nunca sequer tinha pisado em uma delegacia, decorou nos últimos anos as regras da cadeia. 

Os dois se dividem para levar o jumbo (itens que os presos podem receber dos familiares) e comparecer nas visitas semanais. Vão de carro próprio, Uber, ônibus, o que for, para não deixar o filho desamparado. O mesmo ocorre com a esposa de Fernando, Emily.

Leia também: Saidinhas temporárias: mitos e verdades

A primeira saída de Fernando significava para ela a primeira vez em que teria o marido e a filha em casa. Junto, o trio pôde fazer as coisas mais banais – como dormir sob o teto, dividir o espaço no sofá – mas que para eles teve um gosto especial pela chance de fazerem isso pela primeira vez. 

A presença de Fernando e da filha era a realização do sonho da recepcionista, que desejou muito ser mãe. Em função da prisão, ela teve que dar à luz sem que Fernando estivesse ao seu lado. Por muito tempo, Emily contou à filha que o pai estava no trabalho. Foi a forma que encontrou de driblar os questionamentos sobre a ausência.

Acolhimento

Eram quase 9h da manhã quando finalmente uma forma de compensação ao tempo distante pareceu surgir. Fernando saiu da Penitenciária de Parelheiros carregando apenas o salvo-conduto e alguns documentos. Foi recebido com festa, mas logo fez um pedido obedecido por todos os presentes: “vamos logo embora daqui”, disse sorrindo.

Montagem com Heloísa e Fernando | Foto: Arquivo pessoal

No tempo em que Fernando esteve preso sem direito a saídas, o mundo passou por uma pandemia. Dentro da prisão, Fernando enfrentou as incertezas sobre a Covid-19 diante de uma escassez de notícias. As visitas presenciais foram substituídas por chamadas de vídeo. Foi numa delas que o repositor estranhou a ausência da mãe. Antonia adoeceu com o vírus. Chegou a ficar hospitalizada na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). “Eu achei que iria morrer sem ver meu filho solto”, confidenciou. 

Antonia sofre até hoje com sequelas. A memória falha com frequência e a pressão alta às vezes a leva ao hospital. Para além da Covid, o estado de saúde dela foi agravado pela prisão do filho. Clovis, também doente pela ausência, ajuda a esposa a não ser engolida pela dor.

Na primeira saída, ao chegarem com o filho em casa, os dois esbanjavam um sorriso no rosto. A casa não via mais alegria desde a prisão. Não há Natal sem melancolia, aniversários sem lágrimas. A semana da saída temporária foi como se fosse possível interromper a tristeza por alguns dias. Um sentimento agridoce, com prazo de validade, mas que não deixava de ser bom. Parecia que a residência dos Lacerda de Oliveira também estava sorrindo.

O quintal nos fundos recebeu uma churrasqueira. Coisa que não faziam desde a prisão, contou Antônia. Por ali passaram os avós maternos, cunhados, amigos de infância e vizinhos. Fernando comeu churrasco, feijoada e o que mais teve vontade. Assumiu a brasa, mas também foi mimado pelos pais. Antonia diz que acordar com os três filhos em casa, tomar café da manhã na companhia deles e ir dormir sabendo que Fernando tem conforto foram a melhor parte dos dias.

Mudanças no mundo

Fernando espantou-se à distância da Penitenciária até a casa dos pais. Achou um barato os vídeos compartilhados no TikTok. O celular que ganhou logo que deixou a unidade recebeu o aplicativo logo de cara. Também aproveitou para colocar no fundo da tela uma foto com a esposa e a filha mais nova. Achou diferente também o Uber. Quando foi preso, a empresa já operava no Brasil há alguns anos, mas não era tão popular quanto hoje. O repositor só soube da existência do modelo de corridas agora ao sair. 

Ele estranhou também as interações entre carro e celular. Contou com a ajuda de Emily para botar a música que queria via bluetooth. O caminho da penitenciária até a casa dos pais foi embalado por sucessos da dupla sertaneja Jorge & Mateus, a favorita do casal. A esposa também o ajudou a fazer ligações pelo celular, mandar áudio, receber videochamadas. 

O mundo que Fernando conheceu até 2017 mudou muito. Quando for transferido para uma unidade de regime semiaberto, status atual de sua pena, quer trabalhar para se inteirar ainda mais de como está a vida fora da prisão. “Quero que isso termine logo”, disse.

Maioria dos presos retorna

“Sem choro, hein”, pediu Fernando aos pais. Era por volta das 16h quando a caravana retornou a Parelheiros. Clovis e Antônia combinaram com o filho que não iriam chorar. Naquela unidade, como não o regime de prisão não é o semiaberto, mas sim o fechado, foram poucos os que saíram temporariamente. 

Segundo a Secretaria da Administração Penitenciária de São Paulo (SAP-SP), 31.711 detentos deixaram as unidades prisionais neste período — de 11 a 17 de junho. Ainda de acordo com dados da SAP-SP, do total, 1.291 não retornaram, representando 4% dos que saíram.

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Essa situação não difere da registrada em saídas anteriores. Os dados mostram que a maioria dos presos retorna. Em São Paulo, dos 34 mil presos beneficiados no Natal de 2023, 32 mil retornaram. O cenário se repetiu nos demais períodos do ano passado (veja gráfico a seguir).

Fernando pediu para caminhar sozinho até o portão. Apresentou os documentos e em seguida andou até a área onde ficam os pavilhões. Clovis descumpriu o combinado. Chorou por alguns minutos enquanto via o filho sumir por entre o prédio. 

“Ele vai sair. Eu sei que ele vai sair”, repetiu. 

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