Vendedor negro foi preso em Osasco (SP) por tráfico, sem drogas, depois que um delegado, um juiz e um promotor ignoraram um laudo que dava negativo para cocaína
Em 16 de fevereiro do ano passado, o juiz Renato de Andrade Siqueira, do Fórum de Carapicuíba, na Grande SP, resolveu acreditar que um homem seria capaz de mudar.
Diante dele, estava o caso de Rogério Xavier Salles, que, dois anos antes, em 17 de outubro de 2016, “armado” com dois pedaços de cano amarrados que tentavam imitar uma arma de fogo, havia roubado R$ 32 de uma jovem de 21 anos. O juiz não teve dúvidas: condenou Rogério a quatro anos de prisão por roubo. Na hora, porém, de decidir se Rogério cumpriria a pena atrás das grades ou fora delas, achou melhor levar em conta não só o tempo de cadeia que o réu já tinha cumprido como preso provisório, mas as mudanças que ele dizia ter feito com a própria vida.
Em sua sentença, o magistrado anotou que “o réu demonstrou que desde a data do fato até a presente, deixou de usar drogas, se casou e passou a trabalhar”. Para o juiz, Rogério parecia estar arrependido: “Não consta em sua folha de antecedentes sequer a existência de algum inquérito policial em trâmite em face do réu – tudo a corroborar que ele, de fato, mudou de vida”. Para evitar, então, uma pena que impedisse Rogério de voltar à “sociedade de bem”, o juiz tomou sua decisão: o réu cumpriria a pena em “regime inicial aberto”, do lado de fora dos muros das penitenciárias.
No ano que se seguiu, segundo a família, Rogério fez de tudo para corresponder à confiança que recebera do homem da toga. Mesmo com a dificuldade de arrumar serviço por conta do passado de ex-presidiário, foi se virando como pode com os bicos que apareciam — um dos patrões, para quem trabalhou como faz-tudo, gostou tanto dele que lhe pagou um curso de limpador de piscinas. Nos últimos meses, vinha trabalhando como vendedor de balas Mentos, na Avenida Internacional, no bairro Santo Antônio, em Osasco. Já tinha até uma pequena freguesia, gente que sempre parava para comprar um dos seus pacotes de Mentos a R$ 2.
As pernas longas de uma prisão injusta
Mas a tentativa de mudança de vida para Rogério, hoje com 32 anos, acabou esbarrando em dois policiais militares: Evelyn Daniela Bressain da Silva e Thiago Barreto Madureira, da 1ª Companhia do 14º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano. Na tarde de 28 de agosto, a dupla deteve Rogério, na avenida onde costumava vender balas, segundo a família, e o levou até o 8º DP de Osasco, dizendo que havia apreendido com o vendedor uma sacola com 16 pinos de cocaína.
A versão dos policiais foi desmentida no mesmo dia por uma perícia preliminar do IC (Instituto de Criminalística), que analisou o material apreendido com o vendedor de balas e constatou que não era cocaína. As autoridades, porém, nem quiseram saber. E não foi uma autoridade, nem duas. Foram três.
Começou com o delegado Flávio Garbin, do 8º DP, que registrou no boletim de ocorrência e no relatório final do inquérito policial que o laudo do IC havia dado positivo para cocaína, exatamente o contrário do que estava escrito no documento.
No dia seguinte, Rogério foi levado, com as mãos algemadas, para uma audiência de custódia no Fórum de Osasco. Ali, nem o promotor de justiça Rodrigo César Coccaro, nem o juiz Carlos Eduardo D’Elia Salvatori parecem ter feito caso do laudo negativo para drogas que constava dos autos. O vendedor de balas recebeu prisão preventiva (sem prazo) e foi mandado ao CDP de Osasco, onde 1.576 almas ocupam um espaço destinado a no máximo 833 corpos.
Somente três semanas depois, em 11 de setembro, foi que um outro promotor, Daniel Magalhães Albuquerque Silva, resolveu mudar o rumo do processo e pedir a liberdade provisória de Rogério, chamando a atenção, pela primeira vez, para o laudo do IC que havia dado negativo para cocaína. No último sábado (21), a reportagem da Ponte perguntou sobre o caso para a Secretaria da Segurança Pública — e no mesmo dia o delegado Garbin corrigiu os documentos onde havia escrito que a perícia tinha detectado cocaína. Foi “um lapso”, alegou nos registros. Nesta segunda-feira (16), o juiz José Fernando Azevedo Minhoto concedeu liberdade provisória ao vendedor. No mesmo dia, um segundo laudo, agora definitivo, do IC confirmou que a substância supostamente apreendida com Rogério não era cocaína.
O estrago, porém, já estava feito. Lembra do roubo (este, sim, real) pelo qual Rogério tinha sido condenado ao regime aberto, fora das ruas, por um juiz que resolveu acreditar que um homem poderia mudar? Pois é. Quando o alvará de soltura pela acusação de tráfico de drogas chegou ao CDP de Osasco, o Centro Integrado de Movimentações e Informações Carcerárias da Secretaria de Administração Penitenciária informou que Rogério não poderia deixar o cárcere. É que, por causa da acusação de tráfico de 2019, a Justiça havia revogado o regime aberto concedido ao vendedor de balas pelo roubo de 2016.
“O inquérito ilegal, por um crime que não existiu, revogou o regime de cumprimento inicial aberto do Rogério”, explica a advogada Paloma Reis de Lima, da Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio, que acompanha o caso. Segundo ela, agora o juiz de execução penal precisa ser informado sobre a situação do processo por tráfico para poder restabelecer o regime aberto que Rogério perdeu. “Enquanto isso não acontecer, ele fica preso. O prejuízo dele é incalculável”, aponta.
‘Não existe justiça para os pobres’
Na terça-feira (17/9), o promotor Daniel Magalhães Albuquerque Silva pediu o arquivamento do processo por tráfico de drogas contra Rogério, apontando que o delegado declarou “erroneamente” no seu relatório que a perícia havia encontrado cocaína com Rogério. Mas ninguém sabe dizer quando o vendedor de balas Rogério Xavier Salles poderá voltar para as ruas, em busca de prosseguir com a vida que um dia resolveu mudar.
A mãe de Rogério, a também vendedora, só que de perfumes, Maria Inês Xavier de Salles, 54 anos, diz que não entende o que fizeram com seu filho. “Na minha opinião, isso é uma pouca vergonha. A Justiça continua segurando ele lá dentro, sendo que já foi mais do que provado que é inocente?”, pergunta.
Mas talvez Maria Inês entenda, sim, muito bem o que acontece. Porque logo em seguida ela acrescenta: “Na verdade, não existe Justiça para os pobres. Existe Justiça só para o lado de quem tem dinheiro. Como somos pobres, somos favelados, a gente é obrigado a passar por isso”.
MP: ‘Delito frequente em Osasco’
A Ponte enviou duas perguntas ao promotor Rodrigo César Coccaro, por meio da assessoria de imprensa do Ministério Público Estadual de São Paulo. As respostas foram enviadas pela assessoria.
Ponte – Na audiência de custódia, realizada em 29 de agosto, por que o promotor Rodrigo César Coccaro não pediu a liberdade provisória ou mesmo o relaxamento de prisão, levando em conta que a polícia não tinha prova do crime?
MP – Na audiência de custódia, com base nos dados do inquérito e também no histórico do indiciado, que inclui roubo e reincidência específica em tráfico, entendemos como razoável a manutenção da prisão, sendo essa, no nosso ver, a conduta que melhor preservaria os interesses da sociedade. De resto, consignamos que a natureza da avaliação dos fatos na audiência de custódia não é exauriente (que se esgota).
Ponte – O promotor leu o laudo pericial nº 335.261/2019, que apontou resultado negativo para cocaína? Ou se baseou apenas no boletim e no relatório final feitos pelo delegado Flávio Garbin? (Lembrando que, embora o delegado tenha informado erradamente a respeito da conclusão do laudo, ele anexou o documento com a informação correta aos autos.)
MP – O indiciado foi preso em situação de posse de suposto entorpecente, cujo laudo preliminar não afastou de forma definitiva a possibilidade de que se tratasse de substância entorpecente de uso proscrito. Tanto a forma de acondicionar a substância (eppendorf) quanto o local onde ela foi apreendida reforçavam a convicção de que se estava diante de crime de tráfico de entorpecentes, delito muito frequente em toda a circunscrição de Osasco.
Juiz não responde
A assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo não respondeu às perguntas feitas pela Ponte. “O TJSP não se manifesta em questões judiciais. Para tanto, existem os recursos e/ou representações pertinentes que cabem ao advogado da parte”, disse. A Ponte, então, pediu entrevista com o juiz Carlos Eduardo D’Elia Salvatori. Até agora, o magistrado não respondeu.
Corregedoria comunicada
Sobre o “lapso” cometido pelo delegado Flávio Garbin, a assessoria de imprensa da Secretaria da Segurança Pública do governo João Doria (PSDB) afirma que “a Polícia Civil informa que os fatos foram comunicados ao Núcleo Corregedor de Osasco”.
[…] a dar entrevista à Ponte. E o promotor Rodrigo César Coccaro não admitiu qualquer erro. Em entrevista via e-mail à Ponte, por meio da assessoria de imprensa do Ministério Público Estadual de São […]