Uma adolescente e um jovem foram presos por terem se recusado a ser presos; para criminalistas, prática é ilegal
Uma adolescente de 17 anos foi detida por policiais militares a caminho de um ato no Primeiro de Maio, na região central de São Paulo, e passou o dia inteiro de ontem (2/5) na Fundação Casa, sendo liberada apenas à noite. E por que ela foi presa? Por não aceitar ser presa.
A jornada de ilegalidades mal explicadas atribuídas à adolescente – vamos chamá-la pelo nome fictício de Rosa, em respeito ao ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) – teve início quando a menina foi detida junto com um grupo de aproximadamente dez militantes que se dirigiam a um ato na Avenida Paulista, por volta das 18h de segunda-feira (1/5).
Na rua da Consolação, os manifestantes foram cercados por motos da Rocam (Ronda Ostensiva Com Apoio de Motocicletas) e carros do 11º BPM/M (Batalhão da Polícia Militar Metropolitano). Diante do muro do Cemitério da Consolação, foram parados, revistados, interrogados. “A abordagem não teve sentido nenhum. O pessoal subia a rua de forma tranquila”, relata Luís Antunes, do coletivo de midiativistas Tulipa Negra, que acompanhava o grupo.
Alguma ilegalidade os manifestantes deviam estar fazendo, na visão dos policiais. Eles só se confundem um pouco na hora de explicar que ilegalidade seria essa. E em outras coisas também: durante a abordagem, a reportagem da Ponte Jornalismo viu os policiais se empenhando em filmar e fotografar o que chamaram de uma “bandeira” usada pelo grupo, sem perceber que a tal “bandeira” era uma camiseta que levava o emblema da banda de rock californiana Red Hot Chili Peppers, de sucessos como Give It Away e Californication.
Enquanto os policiais ajeitavam a “bandeira” suspeita para as fotos, um dos PMs anunciou ao chefe: “comandante, olha o que eles estavam juntos” – e mostrou dois folhetos da Marcha da Maconha SP, marcada para o próximo sábado (6/5). Os PMs não tiveram dúvida: inseriram os folhetos na cena, um de cada lado da bandeira do Red Hot Chili Peppers, e fotografaram o conjunto de provas. Alguma ilegalidade naquilo devia ter, mesmo que não soubessem dizer qual.
A PM também não soube explicar que crimes Rosa e os demais manifestantes teriam cometido para merecerem ser abordados pelos policiais. No boletim de ocorrência registrado no 78º DP (Jardins), os PMs disseram que o helicóptero Águia “havia localizado um grupo de indivíduos mascarados que encontravam-se subindo pela Rua da Consolação e que aparentemente se tratava de um grupo intitulado Black Bloc” e avisou os policiais em terra, que foram até ali e abordaram “indivíduos que encontravam-se em atitude suspeita”.
A abordagem terminou com dois detidos: Rosa e o desempregado Wilson Matos Ferreira, 28 anos. Com ele, a PM afirmou, durante a abordagem, que havia encontrado um “punhal”. Mais tarde, no DP, o delegado Rogério de Camargo Nader registrou que se tratava de um canivete dobrável. Com Rosa, a PM afirma ter apreendido “uma tesoura e um pedaço de madeira”.
Alguma ilegalidade devia ter ali, ao menos na cabeça dos PMs. Mas, como o Código Penal brasileiro não qualifica a posse de canivetes, paus e tesouras como crime, Rosa e Ferreira tiveram de ser enquadrados em outros delitos.
Ferreira, que se recusou a permitir que os policiais mexessem no seu celular e registrassem o número do IMEI (sigla em inglês para Identificação Internacional de Equipamento Móvel), foi autuado 78º DP por desobedecer a ordem legal de funcionário público, crime punido com detenção de 15 dias a seis meses, e liberado em seguida.
Já Rosa foi enquadrada por resistência, que, segundo o Código Penal, significa opor-se a um ato legal usando “violência ou ameaça” contra um funcionário, o que pode resultar em dois meses a dois anos de detenção. A explicação: é que a adolescente, ao ser presa sem motivo, mostrou-se “agressiva” com os PMs, na definição do boletim de ocorrência.
E, por ter se recusado a dizer seu nome para o policial, a adolescente também foi enquadrada numa contravenção penal, a de se recusar a informar dados quando pedidos com justificativa por alguma autoridade – um delito tão fora de uso que ainda é punido, pela Lei das Contravenções Penais, com “multa de duzentos mil réis a dois contos de réis”. Ela não foi liberada, como Ferreira, mas encaminhada da delegacia para a Fundação Casa.
Dois advogados criminalistas ouvidos pela Ponte Jornalismo questionam a legalidade da prisão dos manifestantes e lembram que os crimes de resistência e desobediência só ocorrem quando alguém se recusa a cumprir uma ordem legal.
“Quando a polícia os conduz para delegacia sem que tenham praticado qualquer crime (portar madeira, tesoura e canivete não é crime) não está praticando, em tese, um ato legal, pois não existe prisão para averiguação”, afirma Humberto Barrionuevo Fabretti, professor de direito penal na Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Desta forma, não pode ser caracterizado nem como desobediência (a ordem não é legal) e ainda menos como resistência, pois essa ultima só existe se a pessoa utilizou violência física contra o funcionário público ou o ameaçou gravemente para impedi-lo de praticar o ato.”
Para André Lozano Andrade, coordenador-adjunto do laboratório de ciências criminais do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), a recusa em dizer o próprio nome para o policial não pode ser considerada desobediência se o policial não tiver um bom motivo para fazer essa pergunta.
“Não há tipificação legal para levar uma pessoa à delegacia porque ela se recusa a ser identificada. Só se justificaria se houvesse fundada suspeita de que ela cometeu um crime”, afirma. O problema todo, para o criminalista, é um só: “o poder público não sabe lidar com manifestações e continua a agir como na época da ditadura, de forma a reprimir sem embasamento legal”.
Até uma eventual violência usada pela adolescente contra os policiais seria justificável naquela situação, na visão de Lozano. “Ainda que ela tivesse agido com violência, a meu ver seria em legítima defesa, porque ela estaria agindo contra uma violência estatal. E resistir a uma prisão ilegal não é crime, é direito de qualquer cidadão”, analisa. Em seguida, o criminalista lembra que, no mundo real, dificilmente uma adolescente cercada de PMs conseguiria praticar uma violência que justificasse o enquadramento por resistência. “Não dá para acreditar que uma menina de 17 anos conseguisse praticar violência ou grave ameaça capaz de intimidar um grupo de policiais”, diz.
Advogados que acompanham o caso de Rosa acredita que ela esteja “marcada” pela polícia de São Paulo por ter sido vítima de outras prisões, cercadas de questionamentos.
Em 4 de setembro do ano passado, Rosa estava entre os 21 manifestantes presos pela PM no Centro Cultural São Paulo, numa operação que envolveu a participação de um capitão infiltrado do Exército, Willian Pina Botelho, que assediava mulheres nas redes sociais como método de espionagem.
Um mês depois, ela foi presa na Praça Roosevelt, próximo à Rua da Consolação, após discutir com policiais que haviam abordado outro jovem. Na época, foi levada à mesma delegacia, o 78º DP, e ouvida pelo mesmo delegado, Rogério de Camargo Neder, que ontem a mandou para a Fundação Casa.
Alguma ilegalidade devia ter nessa história toda, e a polícia bem que procurou por ela, em atitudes suspeitas, em bandeiras/camisetas de bandas de rock, em canivetes transformados em punhais, em tesouras, pedaços de pau e nos IMEIs de telefones celulares. No final da tarde de ontem, porém, um promotor do Ministério Público Estadual analisou todas as histórias contadas pelos policiais a respeito de Rosa e concluiu que não havia ilegalidade que justificasse a apreensão da menina. Após a audiência, ela voltou para casa no início da noite.
Outro lado
A respeito da abordagem ao grupo de manifestantes e às prisões de Rosa e Ferreira, a CDN Comunicação, empresa responsável pela assessoria de imprensa da Secretaria da Segurança Pública do governador Geraldo Alckmin (PSDB), divulgou ontem a seguinte nota:
A Polícia Civil informa que uma adolescente, de 17 anos, e um rapaz de 28, foram detidos com um pedaço de madeira, canivete e uma tesoura, após participarem de uma manifestação, às 18h de segunda-feira (01), na Rua da Consolação. O 78º DP registrou um Termo Circunstanciado de desobediência e localização/apreensão de objeto, encaminhado ao Jecrim e Vara da Infância e da Juventude. A adolescente foi conduzida à Fundação Casa para efetuar a legitimação de seus dados, já que se negou passar informações aos policiais.
[…] marcha foi pacífica, no entanto, já perto do encerramento, dois jovens foram detidos pelo 7° Baep (Batalhão de Ações Especiais) da PM e encaminhados para o…. Até por volta das 23h30, a ocorrência ainda não havia sido apresentada à autoridade da […]