‘Preso tem família’: ato em SP cobra fim de violações de direitos em presídios

Egressos, parentes de detentos e movimentos sociais caminharam até prédio da Secretaria da Administração Penitenciária, por condições dignas para quem cumpre pena e para familiares que visitam unidades prisionais nesta quarta (13)

Manifestantes empunham cartazes, um deles com a frase “preso tem família”, no Parque da Juventude | Foto: Jeniffer Mendonça/Ponte Jornalismo

Egressos, familiares de pessoas privadas de liberdade e movimentos sociais protestaram nesta quarta-feira (13/12) em diversas cidades do Brasil por melhores condições nas prisões do país. Em São Paulo, a manifestação começou às 11h no Parque da Juventude, na zona norte da capital, onde antes ficava a Casa de Detenção do Carandiru, implodido em 2002, uma década depois do massacre que deixou 111 mortos em 1992.

Organizada pela Articulação Nacional de Familiares de Presos (Anfap), a terceira edição do protesto incluiu falas de egressos e parentes de presos, além de apresentações de diferentes artistas do funk e do rap paulista na programação que se estendeu até as 17h.

Sobrevivente do massacre, o educador social e escritor André Araujo, conhecido como André Du Rap, contou que a cultura e a educação o salvaram, e que por isso estava no protesto a fim de disseminar informação sobre a luta dos presos e dar visibilidade às reivindicações das famílias. “Queremos o direito à inclusão social de quando o egresso sai da cadeia porque, quando ele sai, ele é discriminado. Hoje eu sou escritor, sou do rap, mas e aquele menino que tem oportunidade? Só a educação muda esse país. A cada minuto tem um preso sendo torturado dentro da cadeia e tem seus direitos violados dentro e fora do sistema prisional”, declarou.

Ele também sinalizou para a extinção do projeto que resgata a memória do Carandiru, como a Ponte revelou em outubro. “Aqui deveria ser um espaço de memória porque derrubou a Casa de Detenção mas as superlotação, as violações no sistema prisional continuam”, criticou. “Por que o destino do preto, do pobre e do periférico tem que ser a prisão?”.

Os manifestantes destacaram durante o protesto a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental  (ADPF) 347, em que o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu, em outubro deste ano, uma violação massiva de direitos no sistema prisional e determinou que o governo federal crie um plano em até seis meses para solucionar os problemas.

Geraldo Sales, vice-presidente da ONG Pacto Social e Carcerário e integrante da Anfap, destacou que as reivindicações não são novas e que não se tratam de regalias. “Os presos não têm alimentação adequada, não têm trabalho, não têm escolas, principalmente os presídios federais, onde os presos não estão tendo nem visita conjugal e nem sequer podem tocar nos seus filhos, tocar nas suas esposas. Isso é inconstitucional porque o Tratado de Mandela diz que o preso tem o direito de tocar em seu familiar e diz também que o máximo que o preso pode ficar isolado é 30 dias. No Brasil, ultimamente, os presos têm ficado isolados nos presídios federais por três, nove, 12 anos”, afirma, em referência à portaria 157/2019, de autoria do então ministro da Justiça e atual senador Sergio Moro (União-PR), que endureceu regras de visitação em presídios federais, que passou a ser em parlatório (preso e familiares separados por vidros), por exemplo.

Mas não é só em presídios federais que as violações foram denunciadas. Familiares de um jovem chamado Yago Souza, de 21 anos, denunciaram que ele morreu há 15 dias após ser agredido por policiais penais quando pedia atendimento médico para uma infecção no Centro de Detenção Provisória (CDP) da Vila Independência, na capital, onde estava custodiado desde julho. “Numa terça-feira, quando ele pediu o PS [pronto-socorro], os carcereiros espancaram, quebraram uma clavícula e a costela. Na quarta-feira, ele pediu o PS de novo, tiraram ele da cela, deram mais uma surra nele e, quando viram que ele ia falecer, levaram ele para o Hospital da Vila Formosa. O Yago só tinha 21 anos. Ele tinha uma vida inteira pela frente”, disse, em lágrimas, uma prima dele.

Parentes de Yago Souza mostram cartazes com a foto do jovem e pedem justiça | Foto: Jeniffer Mendonça/Ponte Jornalismo

Joana* e seu filho de 11 anos também contaram as dificuldades que o marido sofre na Penitenciária de Franco da Rocha, na Grande São Paulo, especialmente nos últimos meses, em que o estado atingiu o recorde de altas temperaturas. “Você chega para a visita e eles cortam a água. Lá não tem ventilador, nem deixam entrar. Eu, que tenho pressão alta, passei mal de tanto calor. Quem banca os presos lá dentro somos nós e nem tudo que você manda no Sedex eles [funcionários] deixam. Às vezes você só tem como mandar arroz, feijão e linguiça e justo no dia não permitem que a linguiça entre. Você entra no metrô com a mochila transparente, de chinelo, calça legging, as pessoas já sabem que é familiar de preso, mudam até de vagão”, conta.

O filho dela, que visita o pai desde os nove anos, falou como é discriminado. “Na escola, dizem que eu sou filho de bandido, que ele não vai voltar”, lamenta. “Mas estamos aqui para ser uma voz deles. Eles fizeram coisa errada, mas não é assim que eles têm que pagar. Eles são tratados que nem lixo”.

A dona de casa Kelly Agostino, 45, é egressa do sistema prisional há pelo menos 20 anos e tem um companheiro preso em Mirandópolis, no interior do estado, a 600 quilômetros de onde mora, na capital. Apesar de a Lei de Execução Penal prever que o preso possa cumprir a pena perto dos familiares, ela afirma que é uma saga a viagem de nove horas para vê-lo. “Já passei por revista vexatória há um ano pelo menos, denunciei, e outras presas sofreram retaliação, mas depois a unidade cumpriu em usar o scanner”, lembra. “Não posso levar meu filho porque ele é transplantado, então já tem uns nove anos que o pai não o vê.”

A dona de casa Kelly Agostino ao lado do filho em protesto no Parque da Juventude | Foto: Jeniffer Mendonça/Ponte Jornalismo

Ela afirma que conseguiu se reerguer por meio do estudo e do trabalho aos quais teve acesso quando cumpria pena, mas que essa não é uma realidade para todas as pessoas privadas de liberdade e nem para os egressos, que ainda sofrem com discriminação. “O governo não dá apoio para quem sai do sistema. As empresas olham quem tem antecedente e não empregam porque acham que vamos cometer crime novamente. Não tem como o preso ressocializar sem apoio.”

Por volta das 14h20, os manifestantes se dirigiram em caminhada e com cartazes à sede da Secretaria da Administração Penitenciária de São Paulo (SAP-SP), que fica a 160 metros do Parque da Juventude, na Avenida General Ataliba Leonel. Enquanto gritavam palavras de ordem do lado de fora, um grupo de cinco representantes, entre lideranças do protesto e parentes de presos, entrou no prédio da SAP para se reunirem com o secretário-executivo coronel Marco Antônio Severo Silva, já que o secretário Marcello Streifinger estava em agenda externa, segundo a assessoria.

“Chega de opressão” e “preso tem família” foram entoados em coro na porta do prédio. Os manifestantes ainda ocuparam as duas faixas da avenida empunhando cartazes por respeito aos familiares, pela continuidade das saidinhas e pelas visitas conjugais em presídios federais. Algumas viaturas do 5º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano (BPM/M), Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas (Rocam) e da Tropa de Choque se fizeram presentes em alguns momentos, com pelo menos três policiais empunhando escopetas voltadas a disparo de balas de borracha, mas os próprios manifestantes organizaram o ato e retornaram para o Parque da Juventude.

Por volta das 16h20, o grupo de representantes deixou o edifício da SAP informando que havia conseguido se reunir com o secretário executivo da pasta, o Coronel PM Marco Antônio Severo Silva. Segundo Geraldo Sales, a SAP criou um regimento interno para punir transgressões de funcionários, que no momento está sendo anlisado pela Secretaria da Casa Civil do estado. As organizações cobraram salas abertas em visitas na Penitenciária II de Presidente Venceslau por conta do calor.

Sales também disse que vai levar ao secretário as reinvidicações à respeito dos presos que estão há mais de três anos em unidades federais. As organizações se comprometeram a realizar um dossiê com as denúncias para poder analisar com o secretário a situação dos presídios.

O que diz a SAP

Procurada pela reportagem sobre a comissão de representantes, a pasta enviou a seguinte nota:

A Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) está permanentemente aberta ao diálogo com a sociedade civil para aprimoramento do sistema carcerário e ressocialização de todos os presos do Estado de São Paulo. O tratamento aos custodiados no sistema penitenciário é pautado pelo respeito à dignidade da pessoa humana e pelo cumprimento da legislação de execução penal. Os presídios paulistas recebem constantemente inspeções de inúmeros órgãos e entidades, e todas as denúncias recebidas são apuradas dentro dos critérios legais.

Na tarde de hoje (13) uma comissão formada por familiares de presos e de entidades representantes foi recebida pelo Secretário Executivo da Pasta, Marco Antônio Severo. Na oportunidade, a ele foi entregue uma pauta de reivindicações que já era de conhecimento da Pasta. O documento será respondido por escrito pela SAP.

A Secretaria enfatiza que a manifestação ocorre simultaneamente também em outros estados da Federação.

*Nome foi trocado a pedido da entrevistada que teme represálias.

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