Presos por furto, jovens negros alegam que estavam em outro local na hora do crime

    Mãe de um dos rapazes afirma ter ouvido policial dizer que armaria o flagrante. Ambos foram presos no centro de SP por furto de um celular, mas o aparelho não foi encontrado com eles

    Fabiano e Guilherme estão presos há quase um mês no CDP Belém II | Foto: Arquivo pessoal

    Cinco jovens, três brancos e dois negros, foram abordados pela Polícia Militar no dia 6/1, às 18h, enquanto conversavam na avenida Ipiranga, em frente a uma ocupação de um movimento por moradia onde moram dois deles, Guilherme Rodrigues de Souza, 24, e Fabiano Tirco de Souza Filho, 25 – ambos negros. Os dois jovens negros foram presos em flagrante pelo furto de um celular que ocorreu na avenida do Estado, também na região central, cerca de 20 minutos antes.

    Apesar de reconhecidos por testemunhas, eles alegam que no horário do crime estavam exatamente onde foram detidos. O aparelho furtado não foi encontrado.

    Durante a abordagem da polícia, os ânimos se alteraram, segundo relato da mãe de Guilherme, Sara Rodrigues, 39. “Ouvi o policial dizer que iria forjar o flagrante”. Ela é integrante do Movimento de Moradia na Luta por Justiça (MMLJ), trabalha na portaria do prédio, conhecido como Ocupação Ipiranga, e acompanhou tudo o que aconteceu. “Entre 17h30 e 18h meu filho estava aqui na calçada em frente conversando com os amigos.”

    Segundo Sara, abordagens policiais são frequentes ali. Ela afirma ter sido agredida pelos policiais ao se aproximar para ver se o filho estava com documento. “Me seguraram pelos braços, me jogaram para longe e ameaçaram jogar spray de pimenta na minha cara, ficaram xingando e ameaçando levar ele preso”. E foi o que aconteceu. Para a militante do MMLJ, eles foram presos porque são negros. “Por que os três rapazes brancos foram liberados?”, questiona.

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    Sara e a esposa de Fabiano foram até o 2º Distrito Policial (Bom Retiro) para onde os jovens foram levados, mas afirmam terem sido impedidas de entrar. “As supostas vítimas do furto entraram, mas para a gente os policiais militares disseram, rindo e debochando, que nós não éramos dignas de entrar em uma delegacia.”

    A esposa de Fabiano, Karen Azevedo, 22, também afirma ter sido empurrada e maltratada pelos PMs. “Disseram que a gente não podia entrar porque não éramos de boa índole, só porque somos pretos?”, questiona ela, revoltada. “Ameaçaram até me prender.”

    Imagens de câmeras foram solicitadas

    Na delegacia, foram consultados os antecedentes criminais de ambos e isso piorou a situação dos rapazes, observa a advogada de Fabiano, Maria Julia. “Por isso que ficaram presos, porque o crime não é grave”. Eles foram presos por furto qualificado.

    Ela conta ter falado apenas com seu cliente, mas diz ter orientado ambos a ficarem em silêncio. “Por enquanto, no processo só tem a versão dos policiais”. A advogada explica que os antecedentes descredibilizam muito eles. “É injusto, porque o fato de já terem cometido delitos não prova que são culpados neste outro caso”.

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    “Como o Fabiano também alega que no horário do furto ele estava em frente ao prédio, pedi as imagens das câmeras de segurança do estacionamento ao lado”, conta a advogada.

    Segundo Maria, o conteúdo das gravações foi preservado, mas não quiseram entregar sem uma autorização judicial, que ela espera saia nos próximos dias. “Quero ver se com essas imagens consigo provar que eles são inocentes”

    Versão da Polícia Militar

    Segundo o boletim de ocorrência do caso, baseado no relato dos policiais militares Saulo Xavier Albano e Rafael Henrique dos Santos, que prenderam Guilherme e Fabiano, e no depoimento de duas testemunhas e da vítima, o furto do celular aconteceu próximo ao cruzamento da avenida do Estado com a rua Senador Queiroz. A vítima estava com amigos dentro de um carro de transporte por aplicativo quando foi abordada por três indivíduos em bicicletas, um deles pegou o aparelho de sua mão.

    Ainda de acordo com o BO, registrado pelo delegado do 2º DP, Luiz Renato Gardenal Monaco, policiais que passavam pelo local foram acionados e, quatro quadras adiante, uma das testemunhas teria apontado dois indivíduos como autores do furto, Guilherme e Fabiano. A abordagem, conforme citado no documento da polícia, aconteceu na avenida Ipiranga, na altura do número 1.103.

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    Por causa da pandemia, os dois não tiveram direito à audiência de custódia, mas o Ministério Público se manifestou a favor da conversão do flagrante para prisão preventiva. O juiz Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) Fabio Pando de Matos acatou e decidiu por manter a prisão. Guilherme e Fabiano se encontram presos no Centro de Detenção Provisória Belém II (zona leste).

    Problema estrutural

    Na análise do advogado criminalista Marcelo Feller, a recorrência de casos de prisões forjadas, ou equivocadas, tem a ver com um problema estrutural. “Tribunais vêm adotando uma postura no sentido de que a palavra do policial é absolutamente verdadeira a não ser que a defesa comprove que ele está mentindo”.

    Segundo ele, ao acatar quase incondicionalmente a versão de policiais militares, a Justiça transfere para esses agentes um poder perigoso, transformando-os em ‘semideuses das ruas’. “Eles sabem que o juiz vai acreditar no que falarem.”

    Na prática – prossegue Feller – a decisão de liberdade ou não, de condenar ou não um cidadão, acaba no dia a dia quase transferida para o policial militar que tem o papel de fazer policiamento ostensivo.

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    “Há um entendimento quase hipócrita do Poder Judiciário de que não acreditar nos policiais seria um preconceito com eles, porque são cidadãos comuns sem interesse em prejudicar ou beneficiar alguém”.

    Para Feller, o uso de câmeras presas aos uniformes de policiais militares ajudaria a resolver o problema. “Protege o bom policial e protege o cidadão do mau policial”.

    “Também inibe quem queira usar esse argumento de crime forjado para se safar, o que também acontece”, acrescenta o advogado. A tecnologia pode e deve ser usada para auxiliar a prender criminosos e soltar inocentes, avalia ele.

    Em julho de 2020 o governo de São Paulo anunciou um programa que previa o uso de 3 mil câmeras nos uniformes dos policiais. O anúncio foi uma tentativa de resposta ao elevado número de casos de violência policial no estado. O programa na época foi alvo de críticas, por exemplo pela ausência de debate entre o governo e sociedade antes de o projeto ser posto em prática. 

    “Vai fazer o que com o conteúdo [das filmagens]? Processar as pessoas? Quando se pensa em uma política, com tecnologia ou não, tem que se pensar o ciclo todo. Vai resultar no quê? Em um conjunto de processos criminais”, afirmou Denise Dora, diretora-executiva da ONG Artigo 19, em entrevista à Ponte em julho de 2020.

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    A Defensoria Pública solicitou que fosse concedida a liberdade provisória de ambos e entrou com um pedido de habeas corpus no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) em favor de Guilherme, que até o momento não tem um advogado próprio.

    Outro lado

    Procurada pela reportagem da Ponte, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo enviou a seguinte resposta:

    “Os dois envolvidos foram presos em flagrante por furto qualificado e reconhecidos pela vítima e duas testemunhas. A Justiça decretou a prisão preventiva de ambos. Após realizar todo trabalho investigativo, a autoridade policial relatou, em janeiro deste ano, o inquérito policial ao Poder Judiciário.

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