Policial militar é preso com drogas e afirma que iria ‘usar em ocorrências’

    Suposto “kit flagrante” do soldado Yuri Faria Teles, preso em SP, continha cocaína, maconha e lança-perfume; PM atuava nas ruas há menos de dois meses

    Policial Militar foi preso na Rua Arquiteto Francisco Beck, na região da Ponte Rasa | Foto: Reprodução/Google Maps

    Um soldado da Polícia Militar de São Paulo foi preso com uma grande quantidade de drogas em seu carro e afirmou, em depoimento, que elas seriam para “usar nas ocorrências”, indicando que a utilização seria uma espécie de kit-flagrante, como são conhecidos entorpecentes transportados por PMs para forjar “flagrantes” de pessoas inocentes no crime de tráfico.

    O caso ocorreu na manhã do último domingo (30/8) na Rua Arquiteto Francisco Beck, Vila Domitila, na região da Ponte Rasa, zona leste. O soldado preso, Yuri Faria Teles, estava em patrulhamento nas ruas há apenas dois meses. Ele está lotado na 2° Companhia do 38° BPM/M (Batalhão de Polícia Militar Metropolitano), com sede em São Mateus, também na zona leste da capital paulista.

    Para o advogado criminalista Roberto Tardelli, ex-promotor do Ministério Público de SP, que teve acesso ao documento obtido pela reportagem a prisão como foi feita revela algo gravíssimo. “É a primeira vez que tomo conhecimento de alguém admitir essa prática, verdadeiro ‘kit-maldade’, que mostra um lado chocante da Polícia Militar. Essa não é a polícia que nos protege, mas que nos ameaça. Ao invés de combater e reprimir a criminalidade, ela simula fatos, forja falsamente a existência de crimes e prende pessoas que sabe serem inocentes”.

    Segundo o Boletim de Ocorrência ao qual a Ponte teve acesso, policiais militares na viatura M-02109 (1° Companhia do 2° Batalhão) realizavam patrulhamento pela Avenida Dom Hélder Câmara esquina com a Rua Jujiú quando, por volta das 07h30, encontraram uma aglomeração em um posto de combustível. No local, uma das pessoas contou aos policiais que momentos antes havia presenciado um homem armado dirigindo um veículo Jeep Renegade.

    Após tomar conhecimento das informações e que o automóvel teria tomado o sentido São Miguel Paulista, os policiais militares de serviço passaram a procurar o veículo com as tais características fornecidas. Pouco depois, encontraram o carro parado na Rua Arquiteto Francisco Beck, na altura do número 386. No local, uma pessoa contou aos policiais ter visto o momento que o motorista estacionou e saiu. A testemunha disse que era um jovem vestindo camiseta preta e calça jeans e rumou em direção a uma feira livre que acontecia na rua.

    Os PMs narram que ao entrar na feira se depararam com um homem com as mesmas características fornecidas. Durante a abordagem, levantaram se tratar do soldado Yuri Faria Teles, que mesmo de folga estava armado com uma pistola Glock.

    Ao deixarem a feira livre e estando já próximos à viatura, ouviram pelo rádio do carro policial que o mesmo veículo conduzido pelo soldado Teles havia passado momentos antes em alta velocidade pela área do 39º Batalhão. Questionado se havia algo de errado no interior do Jeep Renegade, o soldado de folga afirmou que tinha drogas no seu carro que seriam para “usar nas ocorrências”, não especificando mais dados no que consistira tal uso, consta em trecho do Boletim de Ocorrência.

    Durante as buscas no interior do veículo foi encontrada uma sacola no porta malas com 54 pinos e 56 papelotes contendo cocaína, 29 trouxinhas de maconha e 21 frascos de lança perfume. No total, o soldado Teles tinha em sua posse 82 gramas de cocaína, 146 gramas de maconha e 126 mililitros de Tricloroetileno, utilizado na fabricação de lança-perfume.

    Conduzido ao 24° DP (Ponte Rasa), Yuri Faria Teles confirmou a posse das drogas. Em sua versão, o soldado contou “que encontrara essas drogas na posse de um elemento, que tentara abordar, sendo que o mesmo saíra correndo e jogara as drogas ao solo, no bairro de São Mateus, Jardim da Conquista”. O encontro teria ocorrido por volta das 6h do mesmo dia 30. O homem que estaria com as drogas que acabara nas mãos do PM Teles era alto, magro e trajava moletom, segundo seu depoimento.

    O Boletim de Ocorrência também cita que, durante sua oitiva, Teles relatou ao delegado “que possui somente dois meses de policiamento de rua, o que deixara assustado com a abordagem dos policiais”.

    Diante do apurado, o soldado Teles foi indiciado pelo delegado Fabio Junqueira pelo crime de tráfico de drogas, sendo conduzido para o Presídio Militar Romão Gomes, na zona norte.

    A prisão do soldado Teles e sua confirmação de que a droga seria utilizada em seu trabalho também remete a outros casos com cobertura da Ponte que indicam possível uso de “kit-flagrante”. Em janeiro de 2017, dois soldados que atuam na região do Grajaú, zona sul de São Paulo, foram presos em flagrante com grande quantidade de drogas dentro da viatura. Já em abril de 2018, uma outra reportagem revelou a prisão de 11 PMs após encontrar armas e drogas em seus armários.

    Para o advogado criminalista Roberto Tardelli, o caso deveria atrair a atenção do governador João Doria (PSDB) e do secretário de Segurança Pública de São Paulo, João Camilo Pires de Campos.

    “É grave o bastante para chamar a atenção do governador e do secretário. É grave o bastante para provocar profundas alterações no Comando da Polícia Militar, que não se concebe, não soubesse ou não estivesse investigando, até porque essa é uma alegação muito frequente – droga plantada na cena do crime e cuja posse é falsamente imputada ao acusado”.

    Tardelli ainda deixa indagações sobre como as pessoas podem se sentir ao tomar conhecimento desse outro lado de policiais militares. “Isso é Terror de Estado. Dos pesadelos que poderíamos ter, esse é o pior. A pergunta que fica é: a cada inocente que prende, quantos culpados protege? A cada inocente que arrasta para o cárcere, a quantos outros garante a impunidade?

    Outro lado

    A Ponte teve acesso ao processo da prisão do soldado Teles. No documento consta o pedido de liberdade elaborado pela Defensoria Pública.

    Em um trecho do pedido de liberdade provisória assinado pela defensora Renata Moura Gonçalves, ela argumentou que o policial militar “por ocasião de seu interrogatório, esclareceu que as substâncias entorpecentes encontradas no interior do veículo seriam apresentadas em sede policial, uma vez que foram apreendidas em anterior ocorrência. Deste modo, não restou demonstrada a finalidade da entrega ao consumo de terceiros”.

    O pedido da advogada foi negada pela juíza Thais Fortunato Bim após levar em conta o pedido da promotora Patrícia Takesaki Miyaji Nariçawa para converter a prisão em flagrante em prisão preventiva.

    A reportagem solicitou para a Polícia Militar e para Secretaria da Segurança Pública entrevista com o soldado Yuri Faria Teles, para que ele apresentasse sua versão dos fatos. No entanto, não houve resposta.

    Procurada, a Polícia Militar encaminhou nota em que informou como o caso se deu. “A Polícia Militar esclarece que o Sd PM Teles, em trajes civis e armado, conduzia um veículo Jeep/Renegade, na data de ontem, 30, por volta das 8h30, quando foi abordado pela equipe por policiais militares na Rua Arquiteto Francisco Beck, 386, Vila Domitila – São Paulo. Na vistoria veicular foram localizadas porções de drogas: cocaína 0,110 kg; maconha 0,020 kg; e lança-perfume 0,021 ml. Ocorrência encaminhada ao 24º DP para providências de Polícia Judiciária, onde o policial militar foi indiciado por tráfico de drogas e, posteriormente, conduzido ao Presídio Militar Romão Gomes”.

    Já a SSP (Secretaria da Segurança Pública), relatou que “policiais do 2º BPM/M prenderam em flagrante neste domingo (30) um soldado PM em folga, na zona Leste da capital. O PM foi encaminhado ao presídio Romão Gomes, onde permanece preso. O caso foi registrado no 24º DP e a Corregedoria da PM acompanha as investigações”.

    ATUALIZAÇÃO: Esta reportagem foi modificada às 22h do dia 1/9/2020 para incluir detalhes do pedido da Defensoria Pública pela libertação do PM.

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