Mãe diz que menina de 6 anos, que passou por traqueostomia, teve crise severa durante operação policial com gás de pimenta. Cerca de 800 famílias vivem na comunidade. Ação ocorre mesmo com desautorização da União, dona do terreno

A dona de casa Bárbara Monique dos Santos, de 28 anos, foi uma das primeiras a deixar a favela do Moinho na manhã desta terça-feira (22/4), quando tiveram início as saídas dos moradores em meio ao plano de remoção da comunidade conduzido por Tarcísio de Freitas (Republicanos). Ela vive com o marido e duas filhas pequenas — uma delas, de seis anos, passou por uma traqueostomia e tem um canal no pescoço para conseguir respirar. Em uma operação da Polícia Militar paulista (PM-SP) na última sexta (18), a menina teve crises severas devido ao gás de pimenta usado pelos agentes.
Bárbara diz que decidiu deixar o local, a última favela do Centro de São Paulo, pela repressão constante que os moradores sofrem da PM-SP e pelo medo de não ter reparação alguma. Ela vai se mudar provisoriamente para uma casa de amigos também na região central, ainda perto de um hospital onde a filha passa por tratamento médico. A mudança definitiva está prevista para o fim de 2026, quando a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) prevê entregar um imóvel financiado à família no bairro Cachoeirinha, na zona norte. Até lá, eles terão um auxílio-moradia de R$ 800.
“[A CDHU] chamou a gente em uma quarta-feira. O técnico falou que a gente teria até a sexta da mesma semana para escolher, senão a gente ficaria sem nada”, diz. Cunhado dela, José Carlos da Silva, 34, também afirma que aceitou sair pelo medo da violência policial. “Nós pegamos a carta de crédito por conta das polícias, porque tem polícia direto aqui oprimindo a gente. Jogam gás, e as pessoas não conseguem nem ficar dentro de casa. Para eles, tudo é tráfico, para terem mídia em cima de nós.”
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PM monta operação com helicóptero
Localizada na região dos Campos Elísios, a favela do Moinho abriga cerca de 800 famílias, dispostas sobre um terreno da União — a comunidade hoje se espreme entre trilhos da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), embaixo do Viaduto Engenheiro Orlando Murgel e na divisa com o bairro do Bom Retiro. A remoção dos moradores se insere no contexto da alegada revitalização da região central pelo governador: a comunidade está a menos de um quilômetro da Praça Princesa Isabel, para onde Tarcísio pretende levar parte da sede administrativa do governo.
A gestão Tarcísio diz que os moradores vivem sob risco e em condições insalubres. Além disso, ela pleiteia a cessão do terreno pela União, onde prevê construir um parque e uma estação de trem. A Secretaria Nacional do Patrimônio (SPU), submetida ao Ministério de Gestão e Inovação em Serviços Públicos, emitiu uma nota técnica no último dia 14 de abril desautorizando demolições das casas e negando que haver certeza de cessão do espaço ao Estado — um dos entraves ao processo é justamente a necessidade de ajuste no plano de reassentamento das famílias.




Apesar da indefinição, o governo Tarcísio deu início nesta terça às saídas de quem aceitou a proposta de remoção, sob presença da PM-SP no local. Por volta das 5h, moradores montaram uma estrutura na entrada da comunidade em protesto. Um helicóptero da Polícia Militar passou a sobrevoá-la no mesmo horário, despertando um clima de tensão. Uma tropa também se manteve em solo próximo à entrada da favela, mas sem interagir com a população, enquanto técnicos da CDHU se colocaram à frente para negociar as primeiras saídas. Caminhões de mudança ali estacionados deram apoio aos trabalhos.
Impasse sobre número de saídas
Josefa Flor, 74, foi outra moradora a deixar o local, depois de 25 anos no Moinho. A filha dela, Tainá Silva, 30, contou à Ponte que o imóvel de três andares no qual viviam foi erguido com o trabalho da matriarca como autônoma. Elas saíram sob choro de vizinhos, de mudança para um imóvel provisório em Itaquera, na zona leste da capital. “Procurei casa lá porque meu apartamento [definitivo] vai sair lá”, diz Josefa. “Aí já fico mais perto e vou conhecendo. É para eu não me perder lá, eu nunca fui lá.”
Em meio ao começo das remoções, houve um impasse sobre o número de famílias que aceitaram o acordo para deixar o local. Servidores da CDHU afirmaram que seriam 11. Já a associação de moradores teve acesso a uma lista e só conseguiu identificar duas famílias que realmente tinham agendamento para deixar o Moinho. O número total dos que aceitaram sair não teria sido cedido à associação. A expectativa era de que as casas esvaziadas seriam lacradas, para que não fossem reocupadas.
Segundo o governo Tarcísio, 558 famílias da favela já estão habilitadas a assinar um contrato dentro das modalidades de financiamento oferecidas pela CDHU. Uma delas tem valor máximo de R$ 250 mil, para imóveis localizados no Centro, e uma outra é de cerca de R$ 200 mil, para outras regiões. Do grupo já habilitado a assinar um acordo, 496 já teriam um imóvel de destino. Famílias que tiverem de esperar por uma habitação irão receber R$ 800 mensais como auxílio-moradia — valor que destoa dos preços de aluguel praticados na região. Será pago também um auxílio-mudança de R$ 2,4 mil.

Protestos contra demolições
Na última semana, moradores protestaram contra a política de remoção de Tarcísio em pelo menos duas oportunidades. A primeira delas foi em um ato público na terça-feira (15/4). Os manifestantes marcharam da favela até a Câmara Municipal gritando palavras de ordem contra o governador paulista e a favor do Moinho. O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) também foi cobrado.
Já no último dia 18, feriado de Sexta-Feira Santa, a Polícia Militar de São Paulo montou uma operação dentro da favela. Ao UOL, moradores relataram que os agentes chegaram pela manhã e jogaram bombas de gás lacrimogêneo e spray de pimenta contra um grupo que estava em um bar. Ainda na ocasião, pessoas que vivem na comunidade protestaram contra a violência policial e chegaram a fechar temporariamente a circulação de linhas dos trens da CPTM que passam pelos trilhos à beira do local.
Uma pessoa foi presa por suspeita de tráfico de drogas durante a operação no feriado religioso, que teve policiais do Batalhão de Ações Especiais de Polícia (Baep) e da Rocam (Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas). À Ponte, a Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP-SP) atrelou a ação à reintegração de posse do terreno. “Para o local, o Estado propôs o reassentamento de famílias da comunidade com o objetivo de levar dignidade e segurança a essa população, que vive sob risco elevado em condições insalubres, com adesão voluntária de mais de 87% da comunidade até o momento”, disse.
Violência policial recorrente
Os moradores do Moinho relatam que houve intensificação das operações policiais após o projeto de remoção se concretizar. Contudo, a violência policial contra quem mora ali não é novidade. A principal justificativa dada para a entrada dos agentes armados é o combate ao Primeiro Comando da Capital (PCC), facção à qual supostamente a favela estaria submetida e que faria dela base para o tráfico de drogas na região chamada de Cracolândia — cena aberta de uso de drogas.
A Ponte já denunciou diversas violações ocorridas contra os moradores sob esse pretexto. Em uma delas, de agosto do ano passado, policiais invadiram casas e revistaram até mochilas de crianças, segundo moradores. Em outro caso, dois policiais militares foram condenados por tortura contra um jovem — os agentes esfaquearam a mão da vítima, causando um corte profundo, durante operação em 2020. Na ocasião, eles ainda haviam cometido o crime ao invadir a casa dele.
O que dizem as autoridades
A Ponte procurou a SPU, a SSP-SP e a CDHU para obter posicionamentos sobre o processo de retirada dos moradores. A primeira delas, vinculada ao governo Lula, comunicou entender que ainda não estão claros os endereços e os prazos de entrega dos imóveis prometidos pelo governo Tarcísio às pessoas que serão retiradas do Moinho. A pasta federal disse ainda apoiar a mudança da comunidade, “desde que essa seja a efetiva vontade das famílias e feitas sem intervenção de força policial”.
“Ainda não há previsão para a cessão, pois o processo transferência do terreno está condicionada à garantia do direito à moradia das famílias que vivem no local e depende de ajustes e complementações, por parte da CDHU/SP, no plano de reassentamento enviado em abril deste ano”, reforçou a SPU.
Já a SSP-SP encaminhou um posicionamento assinado pelo governo do Estado no qual defende que os trabalhos iniciados nesta terça são parte de um plano de reassentamento que “tem como objetivo levar dignidade e segurança a essa população”. Na nota, a gestão Tarcísio afirma ainda que a adesão pelas famílias é voluntária e que a favela do Moinho seria um “entreposto para o tráfico de drogas”.
“Foram oferecidas unidades em 25 empreendimentos para escolha dos moradores, além da possibilidade de irem ao mercado buscar imóveis para financiamento via Carta de Crédito Individual. Nos dois casos, as parcelas comprometem 20% da renda familiar, de acordo com a legislação que rege a política habitacional paulista. Para quem recebe um salário mínimo, o subsídio do Estado chega próximo de 70% do total do valor do imóvel”, escreveu o governo estadual.
Leia a íntegra do que diz a SPU
O Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI), por meio da Secretaria de Patrimônio da União (SPU), está em diálogo permanente com o governo de São Paulo para encontrar uma solução para as mais de 800 famílias que moram na Favela do Moinho em SP. A principal preocupação é onde as famílias serão realocadas. As informações até agora disponíveis ainda não são claras sobre o endereço efetivo e o prazo de entrega dessas unidades. O governo federal apoia as ações de mudança das famílias que já possuem um novo endereço, como as que estavam programadas para esta terça-feira (22), desde que essa seja a efetiva vontade das famílias e feitas sem intervenção de força policial.
A SPU/MGI esclarece ainda que o governo do estado solicitou a cessão da área para a implantação do Parque do Moinho. Ainda não há previsão para a cessão, pois o processo transferência do terreno está condicionada à garantia do direito à moradia das famílias que vivem no local e depende de ajustes e complementações, por parte da CDHU/SP, no plano de reassentamento enviado em abril deste ano.
A SPU também aguarda a entrega do detalhamento do projeto a ser implantado na área pelo governo de SP, a fim de que seja definido o instrumento de destinação a ser utilizado. Somente após esse acordo será possível avançar nos trâmites administrativos para a formalização do contrato de cessão.
Leia a íntegra do que diz o governo de São Paulo
O Governo de São Paulo iniciou nesta terça-feira (22) as mudanças de famílias da Favela do Moinho. A mobilização é resultado de um processo que vem sendo realizado ao longo do último ano e já conta com 87% de adesão da comunidade. O reassentamento tem como objetivo levar dignidade e segurança a essa população, que vive em condições insalubres e sob elevado risco. Neste primeiro dia, estão previstas 11 mudanças.
A ação do Estado se dá tendo em vista o alto risco a que as pessoas estão submetidas: a comunidade está localizada entre linhas de trens, em uma área murada, com apenas uma entrada e baixa possibilidade de escoamento. Há ainda a alta densidade de moradias e a elevada incidência de fiação exposta. Na última década, foram registrados dois incêndios de grandes proporções que deixaram mortos e centenas de desabrigados.
Além disso, a linha férrea está no mesmo nível da comunidade, expondo as pessoas, principalmente crianças, a risco nos momentos em que os trens passam pelo local. Esse conjunto de características inviabiliza a regularização da área.
CONSTRUÇÃO PELO DIÁLOGO
O plano de reassentamento foi construído com base em diálogo contínuo. Foram 13 reuniões em grupo com a comunidade, envolvendo também a Defensoria Pública, advogados indicados pelos moradores, Superintendência do Patrimônio da União, Prefeitura e lideranças dos movimentos, além da CDHU. Além disso, foram realizados mais de 2 mil atendimentos individuais, facilitados pela instalação de um escritório da Companhia a apenas 500 metros da favela, o que garantiu acesso à informação, atendimento individualizado e liberdade de escolha para os moradores quanto ao futuro.
ADESÃO VOLUNTÁRIA EM MASSA
A adesão voluntária da comunidade já passa de 87% do total de famílias: são 719 que iniciaram o processo de adesão, de um total de 821. Destas, 558 já estão habilitadas, ou seja, já estão aptas a assinar contratos e receber as chaves assim que as unidades estiverem prontas. Até agora, 496 já escolheram o imóvel de destino para atendimento final, mesmo número que já iniciou o processo para recebimento de auxílio moradia.
MORADIA GARANTIDA NO CENTRO
Das mais de 1,5 mil moradias que foram disponibilizadas para os moradores da comunidade, mais de mil estão localizadas no centro da capital — em bairros como Brás, Vila Buarque, Campos Elíseos e Barra Funda — quantidade suficiente para atender todas as famílias da comunidade. As demais 499 unidades estão distribuídas por outras regiões da cidade, como Jaraguá, Vila Matilde, Chácara Califórnia, Ipiranga e Cachoeirinha, entre outros. A escolha da moradia é feita por cada família, conforme suas necessidades e vínculos com a região.
REGRAS DE FINANCIAMENTO
Foram oferecidas unidades em 25 empreendimentos para escolha dos moradores, além da possibilidade de irem ao mercado buscar imóveis para financiamento via Carta de Crédito Individual. Nos dois casos, as parcelas comprometem 20% da renda familiar, de acordo com a legislação que rege a política habitacional paulista. Para quem recebe um salário mínimo, o subsídio do Estado chega próximo de 70% do total do valor do imóvel.
Famílias cujas unidades definitivas ainda não estão prontas receberão auxílio mudança, no valor de R$ 2,4 mil, e auxílio moradia de R$ 800 a partir do segundo mês. Os valores serão divididos igualmente entre Estado e Prefeitura de São Paulo.
EMPREGO, RENDA E ASSISTÊNCIA SOCIAL
No escritório da CDHU próximo ao Moinho, também estão sendo desenvolvidas ações complementares para auxiliar a comunidade sob os pontos de vista social e econômico. Em parceria com a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS), foi disponibilizada uma van por uma semana para atualização cadastral no CadÚnico. A ação resultou em 180 atendimentos e 125 cadastramentos. A manutenção do CadÚnico em dia permite acesso a tarifas sociais de serviços públicos essenciais, bem como a programas assistenciais de transferência de renda, como Bolsa Família e Benefício de Prestação Continuada (BPC), entre outros.
Também em parceria com o município, por meio da Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Trabalho (SMDET), foi realizado um mutirão do CATe, nos dias 9 e 10 de abril, para oferecer 400 vagas de emprego aos moradores do Moinho. Para capacitação profissional, foi realizada uma mentoria da Adesampa (também vinculada à SMDET) para capacitação de microempreendedores individuais (MEIs), com foco tanto na abertura de empresas quanto na qualificação de negócios já existentes, com 60 atendimentos registrados.
PARQUE DO MOINHO
A Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) planeja requalificar toda a área da Favela do Moinho, localizada nos Campos Elíseos, região central da capital paulista. Está prevista a implantação do Parque do Moinho, ao longo do trajeto de intervenção, como forma de devolver o espaço público para a cidade e impedir novas ocupações.
Para dar andamento ao projeto, a Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação (SDUH) pleiteia junto ao Governo Federal a cessão de parte da área da Favela do Moinho pertencente à União para a construção do equipamento público.
CRIMINALIDADE
Durante o combate à criminalidade nas Cenas Abertas de Uso, no centro de São Paulo, investigações realizadas pelas forças de segurança do Estado apontaram que a Favela do Moinho é um entreposto para o tráfico de drogas, ou seja, um ponto estratégico para a distribuição de entorpecentes na região.
Na Operação Salus et Dignitas, o Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Tráfico de Drogas) denunciou 11 pessoas por crimes de organização criminosa, tráfico de drogas e lavagem de capitais. Os acusados, ligados ao PCC, tinham como base de suas atividades ilícitas a Favela do Moinho.
Os trabalhos desmantelaram, inclusive, um sistema de antenas para interceptação de sinais de telecomunicações das polícias, o que permitia aos criminosos antever ações de combate ao tráfico.
A operação é resultado de mais de um ano de trabalho de inteligência e investigação das forças de segurança do Estado. Ao todo, cinco mandados de prisão foram cumpridos, entre eles o de Leonardo Monteiro Moja, que foi preso na Praia Grande. Conhecido como Leo do Moinho, ele é um dos líderes do PCC e apontado como proprietário de hotéis e estabelecimentos no centro da capital. Os locais eram registrados em nome de laranjas e funcionavam como pontos de tráfico de drogas.